quarta-feira, 25 de junho de 2014

25 DE JUNHO - A COPA NA ARGENTINA ME ENSINOU O QUE É DITADURA

Começo dizendo um sincero e sonoro muito obrigado. O amigão que fechou a tabela da Copa do Mundo do Brasil não poderia ter sido mais parceiro. Parece até que fui consultado. E que pude palpitar, ajeitar aqui, ajustar acolá. Bonito. Não posso reclamar. Só comemorar. O Mundial começou numa quinta-feira. Para escapar da sexta, 13. No jogo de estreia, feriado na cidade de São Paulo. Como manda o bom senso, atributo que depois se revelaria artigo de luxo para vereadores paulistanos. Sexta-feira não dou aulas. Tranquilo. Segue o jogo. Veio o final de semana. Que beleza! Em Fortaleza, vi todas as partidas. Na segunda, 16, começou a semana de vista de provas na universidade. Agora eu me consagro. Calendário acadêmico. Rotina mais leve, suave, já reduzindo a marcha e desacelerando. Terça, dia 16, Brasil x México. Não tivemos atividades no período noturno. Semana curta. Novo feriado prolongado, a partir de quinta. A bola ficou pedindo me chuta. Ele encheu o pé. Quatro dias de overdose televisiva de Copa. A regra doméstica, inscrita em nossas tábuas sagradas de aliança, manda que o aparelhinho da NET fique permanentemente ligado na ESPN Brasil. Sem intervalos comerciais. A partir de segunda, 23, semana de substitutivas e exames. Para você, para mais ninguém. Terapia indicada - futebol na veia, em doses cavalares. Várias vezes ao dia. Terceiro jogo do Brasil. No final de semana começam as oitavas. No dia 30, próxima segunda, entramos em férias. Recesso na universidade e fase decisiva do Mundial. Romeu e Julieta. Pelé e Coutinho. Casamento perfeito. Regime de dedicação exclusiva à Copa. Por obra e graça do bondoso e perspicaz organizador da tabela, ficou mais fácil dar cabo de meu projeto "ver os 64 jogos do Mundial". Promessa até aqui cumprida. Ainda que algumas pelejas eu resgate nos corujões da madrugada. Chico, olha a sua cara, você está com sono. Bingo. Muito sono. Rotina puxada. É por uma boa causa. Porque também tem o pré-jogo, o show do intervalo, o bate-bola, a linha de passe, o terceiro tempo, a zona mista, os programas especiais, as entrevistas coletivas, os treinos, as crônicas do Veríssimo e do Prata. Conversinha de futebol. Por favor, alguém tem os contatos do cara que vai organizar a tabela da Copa da Rússia? E-mail? Celular? Face? WhatsApp? Preciso falar com ele, com urgência. Sim, é importante. Não adianta deixar recado. É para acertar os ponteiros. Tem a questão do fuso horário. É bom combinar com antecedência. Fico no aguardo. Depois de corrigir as substitutivas de hoje, lá estava eu no camarote da Arena Marconi Bicudo, setor 2, portão Z, fila VV, cadeira 5, para ver Argentina e Nigéria. Nem bem tinha me acomodado e pimba! Messi abriu o placar para os sul-americanos. Sempre ele. Olhei para o lado. Quase perdi o gol de empate da Nigéria. Cinco minutos iniciais empolgantes. Tsunami. Que foi aos poucos se transformando em brisa fraca. Jogo mais estudado. No final, falta cobrada com maestria. Messi. Quarto dele no torneio. Está agora empatado com Neymar na artilharia. Vai ver os times combinaram no vestiário que o roteiro se repetiria no segundo tempo. Empate da Nigéria. Terceiro da Argentina. Não foi do Messi! Cinco minutos da segunda etapa. Aí foi só administrar. Hermanos classificados em primeiro. Primeira seleção africana a garantir vaga nas oitavas. Cem mil argentinos colocaram em prática o projeto Ocuppy Wall Street/Porto Alegre. O Beira-Rio ficou azul. Para desespero dos colorados. Por provocação do primo Luiz Paulo Castro Montes, fico aqui imaginando o que seria uma final Brasil x Argentina. Seleções invictas. Messi e Neymar empatados na artilharia da competição. Disputando, chapéu a chapéu, trivela a trivela, caneta a caneta a honraria de melhor jogador do torneio. Maracanã lotado. Sonho. Ou pesadelo? A Copa merece essa final. De minha parte, por via das dúvidas, já reservei leito na UTI do Instituto do Coração. Esse jogo eu vejo lá. Monitorado por aparelhos. Cercado por cuidados médicos. Mais prudente. Sou fã da Argentina. Apaixonado pelo aconchego hipnotizante de Buenos Aires. Salve, Borges; salve, Pérez Esquivel; salve, madres de Mayo. Mas... futebol é caso à parte. Faço coro com o amigo Fabio de Castro - não quero ver os hermanos levantarem a taça em gramados brasileiros. Rivalidade futebolística é coisa séria. Maradona no es mas grande que Pelé. Aliás, caros amigos argentinos, me digam aí como é que é ter uma Copa a menos que o Pelé. Obrigado. Cedinho, no banho, que é onde a gente tem boas ideias, estava recordando que minha relação com o binômio futebol-Argentina é antiga. Tinha seis anos. Copa de 1978 - a da horrenda ditadura sangrenta no país vizinho. É a primeira de que me lembro. Engraçado, tenho flashes bem marcados. Nítidos. O gol anulado contra a Suécia, quando a bola já viajava para a área adversária, na cobrança de escanteio do Zico. A bola que o Amaral salvou na linha contra a Espanha. A classificação suada contra a Áustria, gol do Dinamite. A batalha de Rosário contra a ... Argentina. Aquela estranha goleada deles em cima do Peru, que tirou o Brasil da final. Campeões morais. Grande budega. A taça ficou com quem mesmo? Naquela Copa, aprendi o que é ditadura. Depois da vitória da Seleção contra a Polônia, saí com minha tia pelas ruas do centro de São Bernardo, terra das greves metalúrgicas, para fazer buzinaço. Fusquinha verde. Estacionamos o carro. Resolvemos andar com a multidão. Rojões estouravam. Peguei minha bandeira do Brasil e fiz menção de amassá-la. Para conseguir carregá-la. Era enorme, um bandeirão; eu, menino franzino. Um policial com cara de pouquíssimos amigos começou a andar em nossa direção. Nervoso. Consigo sentir agorinha o frio que percorreu minha espinha. Gelei. O PM acelerou o passo. Tem alguma coisa errada, fiz bobagem. Mas não sei o que é. Minha tia deu um pulo. Foi falando bem alto 'vamos abrir a bandeira, você segura aqui, eu pego a outra ponta. Bem esticada'. O policial, que estava uns cinco passos distante da gente, fez meia volta e tomou posição na fileira de origem. Capacetes. Escudos. Cassetetes. Cavalos. Cachorros. Carrego na memória e em cada célula minha aquela cena. Paúra. Mais tarde, minha tia explicou - tem um jeito certo de dobrar a bandeira. Não pode amarfanhar. Símbolo pátrio deve ser respeitado. Ofensa, Inocência de criança. Cretinice de milico. Só queria comemorar a vitória. Até hoje, quando lembro, sinto calafrios. Muito medo. Ditadura civil-militar brasileira, muito prazer. Trinta e seis anos depois, o Mundial voltou à América do Sul. Os argentinos estão chegando. São Paulo é a próxima cidade a ser ocupada pelos hermanos. Jogam aqui na terça, primeiro de julho. no Itaquerão, contra a Suíça. Imagina a Vila Madalena. No bolão da família, sigo aos trancos e barrancos. Ainda na parte de cima da tabela de classificação. Imagina depois da Copa. Amanhã acaba a fase de grupos. Sexta-feira não tem jogo.Vazio existencial. Tremedeira. Síndrome de abstinência. O que fazer? Nem o camarada Lênin sabe. O cara que organizou a tabela diz que o intervalo foi friamente calculado. Descanso não apenas para boleiros, mas também para torcedores. Vinte e quatro horas para recuperar energias. Respirar. Preparar os nervos. Fortes emoções estão a caminho.

Um comentário:

  1. Órfã como você, suando frio e torcendo muito como você.Parabéns pela memória e pela detalhada redação. Vamos lendo, vamos nos emocionando e sentindo como se nós é que estivéssemos vivenciando tudo isso. Estamos esperando, desde já, a crônica sobre o jogo de amanhã!

    ResponderExcluir