domingo, 4 de maio de 2014

A PRIMEIRA TAÇA

"MINHA PARTIDA INESQUECÍVEL DE COPA DO MUNDO"

FRANCISCO JOSÉ BICUDO PEREIRA, ADVOGADO



Vinte e nove de junho de mil novecentos e cinquenta e oito. Domingo ensolarado, dia de São Pedro e também da partida final da Copa do Mundo, realizada na Suécia. A decisão aconteceria na capital, Estocolmo. Assim, no meio da tarde, se não me engano, por volta de 15 horas, estávamos reunidos eu, meu pai, irmãos e minha mãe na copa de nossa casa, onde o rádio estava colocado em uma prateleira bem ao lado da porta que dava acesso ao quintal. A seleção brasileira, dentre tantos outros craques, era formada por Garrincha, Zagallo, Bellini, De Sordi, Mazzola, Gilmar, Nilton Santos, Vavá, Didi e o menino Pelé. O técnico era o gordo Vicente Feola e o massagista, o inesquecível Mário Américo. Após os hinos, a partida teve início. O locutor da rádio narrava com muita precisão todos os lances, todas as jogadas. Meu pai, até então calmo, tomando sua cervejinha, acompanhava atento à narração quando ouvimos, com muita tristeza e raiva, o grito de gol da Suécia, fazendo 1 x 0. Meu pai não teve dúvida, pegou uma das cadeiras de madeira da copa e a atirou para o quintal, arrebentando-a toda. Daí para frente ouvíamos o jogo mais tensos, mas o nervosismo passou rápido, a tensão terminou e muita alegria tomou conta de todos, quando o apito final encerrou aquela partida, com a virada e o placar de 5 x 2 para o Brasil. A partir daí o Brasil inteiro explodiu em alegria e emoção, eis que, pela primeira vez, éramos campeões do mundo. Na rua Cristiano Viana, onde morei até casar-me, em 1970, do quarteirão que vai da Avenida Rebouças até a Rua Arthur de Azevedo, viviam famílias muito próximas, todos se conheciam e eram amigos. Assim, naquela euforia, um entrava na casa do outro, com gritos de campeão, abraços, comes e bebes. Foi um domingo inesquecível e, na verdade, a minha partida de futebol mais emocionante, pois tinha 11 anos e já assistia o Brasil campeão do mundo. No final da transmissão, o locutor narrou Bellini recebendo e levantando a taça Jules Rimet e, novamente, explodimos em muita alegria, muita festa, muita emoção, apesar da cadeira da mobília da copa, que permanecia estraçalhada no quintal de casa.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

VALEU, SENNA!

TEXTO ESCRITO EM PRIMEIRO DE MAIO DE 1994, QUANDO EU TINHA 22 ANOS...



A gente tinha certeza que as coisas começariam a mudar no domingo, 1º de maio. Para nós, o campeonato mundial de Fórmula 1 começaria neste dia, no circuito de Imola. Senna é pole na sexta. Rubinho sofre grave acidente. Senna confirma a primeira posição no sábado, mas não treina, em protesto contra o acidente e a morte do piloto austríaco Roland Ratzemberger. Acordei assustado. Acho que ouvi minha mãe falar que o estado de saúde de Senna era grave. Pulei da cama. Era verdade. Triste verdade. Naquela manhã de domingo, a corrida terminou sem a narração de Galvão Bueno e sem Senna na pista. Apesar disso, milhões de brasileiros continuavam estáticos, em frente ao aparelho de TV. Não, não queríamos saber de pódium, de comemorações. Estávamos angustiados, ansiosos por receber notícias do hospital de Bolonha, onde Senna estava internado depois de sofrer grave acidente na 7ª volta da corrida. Tivemos que esperar por longos e tortuosos minutos para que o 1º boletim informasse que "Senna não tem mais suas funções cerebrais". Era difícil imaginar que aquilo estivesse realmente acontecendo. Não, não com o Senna. Ele é super-homem. Ainda éramos capazes de ver estampado no vídeo o sorriso aberto do piloto, comemorando mais uma vitória, erguendo mais uma taça, carregando a bandeira verde e amarela pelo autódromo, tomando mais um banho de champanhe. Deve haver algum engano, os médicos vão reverter a situação, em Mônaco ele vai estar lá, no primeiro lugar do grid, no pódio com sua coroa real. Vai ser a primeira vitória, caminho aberto para o tetra. Plantão do jornal da Globo. Entendi tudo, um arrepio percorreu o corpo inteiro, o coração ficou pequeno, a garganta apertou. Os olhos de Roberto Cabrini estavam vermelhos. "Uma notícia que nunca gostaríamos de dar. Morreu o piloto Ayrton Senna. Ayrton Senna da Silva está morto". Explodi num choro incontido, incrédulo.
 
E agora, como fica a Fórmula 1? O show acabou? E o carro branco, o preto que virou amarelo, depois vermelho e branco e há pouco tempo era azul, não vai mais ter dono? O tri ia virar tetra, penta ...O que vamos fazer nas manhãs de domingo, nas madrugadas de sábado? Não vai mais ter foto dele nas capas dos jornais de segunda? Nem reportagem no Fantástico, no Globo Esporte, no Show do Esporte? Quem vai subir no pódium carregando a bandeira do Brasil? Uma enorme sensação de perda, de vazio, tomou conta de todos nós.
 
Sabe, Senna, a gente nem te conhecia, mas é como se você fosse um amigo muito próximo. Você fazia parte do nosso cotidiano, era responsável por muitas de nossas alegrias. Um herói, um gênio veloz, maluco perspicaz, invencível. Um obstinado. Um ser insaciável, que corria atrás dos próprios recordes, já que os dos outros...ora, os outros eram meros coadjuvantes. Um dos poucos que ainda acreditava, sem esmorecer, que é possível vencer, que é possível ser feliz. Um homem que, alheio a todas as críticas e ataques, insistia em colocar o coração acima de tudo, fazendo da profissão uma paixão. E da emoção sua maior arma. Com certeza, o último romântico. Correr, pelo simples prazer de correr. Quanta lição de vida, amigão! Você fazia das corridas espetáculos inesquecíveis. Mostrando lá fora, para quem quisesse ver, que brasileiro é gente de fibra, de garra, que não foge, jamais, à luta. Quantas vezes, no sofá da minha casa, não gritei com ultrapassagens suas! Olhos fixos na telinha, atentos a cada manobra, querendo saber quantos segundos você tinha de vantagem, tentando adivinhar quando você ia parar no boxe, como faria para ultrapassar os retardatários. Puxa, e aquela corrida no Japão, hein, amigão? Você parou na largada, caiu para 17º, mas como uma bola de fogo veio passando por cima de todo mundo, até dar um drible sensacional no Professor Prost e conquistar a vitória. E o seu 1º título. Você chorou feito criança. A gente chorou junto, em plena madrugada. Nossa, e aquela sua primeira vitória no Brasil, com o câmbio quebrado? Grande! E a segunda, então! Fazia sol. Mas a fé da torcida fez chover. E aí, não tinha prá ninguém! Você comemorou a vitória nos braços do povo. Do teu povo. As brigas com o Prost, depois com o Piquet, o Mansell... lembra quando ele rodou quando te perseguia, também no Japão, e você se tornou o mais jovem tricampeão de Fórmula 1? Na Espanha, em 86, você ganhou dele por causa do bico do teu carro! E em Mônaco, em 92? O Leão se deu mal. Tinha o melhor carro, saiu na frente. Mas bobeou, você passou, assumiu o primeiro lugar, ele tentava, você não deixava, ele abria, você fechava. Um balé maravilhoso, inesquecível. Arte pura. Foram muitas voltas assim, até o final da prova. E o Leão teve que aplaudir tua audácia, tua perícia, e se contentar com o segundo lugar. E ele não podia mesmo ganhar. Pôxa, em Mônaco, você é rei. Na Inglaterra, o circuito se chama "Silvastone". Suzuka é a terra de seus títulos. A melhor primeira volta de todos os tempos, em Donington Park, em 93. No Canadá, ninguém ganhava de você. Portugal, sua primeira vitória. Ah, tem a Bélgica, em Spa, onde você gostava de correr. E de ganhar. Áustria, Austrália, México, EUA, Hungria, Alemanha, Itália...não houve país que não se rendesse ao seu talento, aos seus shows. No Brasil...bem, no Brasil você é ídolo. Herói. Fenômeno. Fantástico. Incomparável. O eterno Ayrton Senna da Silva, brasileiro de tantas glórias e conquistas.
 
Depois de confirmada a sua morte, o domingo ficou triste. Era um dia como outro qualquer, mas não tínhamos mais o nosso Senna. Sei lá, era uma sensação tão estranha, uma vontade de não fazer nada, de ficar quieto, calado, acompanhando pela TV cada peripécia sua. Não sei se já te contaram, mas o país parou para te homenagear, amigão. O Brasil chorou, sem vergonha de mostrar as lágrimas. No Maracanã lotado, vascaínos e flamenguistas se juntaram para cantar "Ole, ole, ole, olá, Senna, Senna". No Morumbi, o Cesar Sampaio e o Gilmar se ajoelharam durante o minuto de silêncio em sua homenagem. O grito de guerra das duas torcidas era o mesmo do Maracanã. A torcida do São Paulo até levou uma faixa onde estava escrito "Valeu, Senna". E como valeu! Os carros andavam com faixas pretas, bandeiras verde-amarelas eram colocadas nas janelas dos prédios.E a gente chorava com cada imagem sua que aparecia na telinha. "Senna, o que você acha da morte? Não sei, a gente nunca sabe. A gente só sabe que um dia ela vem, para todo mundo. Pode ser hoje, pode ser daqui cinquenta anos. Mas ela vem. Como e quando é que é a diferença". Pena. Na porta do seu prédio, um garotinho de 3 anos, com o seu macacão, chorava e pedia para o Senna não morrer. Ah, o Milton Nascimento também não esqueceu de você. No show do Ibirapuera, cantou a "Canção da América", aquela que você tanto gostava. É, amigo, qualquer ia a gente volta se encontrar. E eu chorei mais um pouco...
 
Vai ser muito estranho, Senna, ligar a TV daqui a 15 dias e não ver você treinando em Mônaco. Justo em Mônaco...Quando os carros se alinharem para largar, não veremos o nº 2. Não vai mais ter aquela musiquinha gostosa, tradicional, que lavava a nossa alma a cada vitória tua. E cujos acordes cada brasileiro conhecia de cor. Também não vamos ouvir o Galvão Bueno gritar "lá vem ele, última curva, o diretor acena a bandeira quadriculada, ele ergue o braço direito, comemora mais uma vitória,...Ayrton Senna do Brasil!". Não vai mais ter bandeira brasileira tremulando no mastro maior, nem hino, nem banho de champanhe. O pódium vai estar vazio, campeão. Desculpa, tricampeão. Eterno tricampeão. Fantástico tricampeão. Insuperável tricampeão. Um tricampeão que fez questão de partir como sempre sonhou: no cockpit de uma Williams, dirigindo a quase 300km/h, na liderança da prova. É Ayrton, você morreu líder. E a Fórmula 1 perdeu um grande líder. O Brasil perdeu um de seus filhos mais ilustres. O mundo perdeu um Esportista. Assim mesmo, com "E" maiúsculo. Os guerreiros perderam seu chefe. Os mágicos perderam seu mestre. Os malucos perderam sua estrela-guia. Os que acreditam que ainda é possível acreditar perderam um exemplo. Os que querem ser felizes viram seu exemplo maior encontrar um muro de concreto pela frente. E o show terminou, porque todos perdemos o nosso artista principal.
 
Ayrton Senna da Silva. Ayrton Senna do Brasil. Simplesmente Ayrton, um brasileiro. Paulistano da zona norte, 34 anos. 161 Grandes Prêmios disputados. 41 vitórias. 65 poles positions. 13460 quilômetros de liderança de provas e 610 pontos em dez anos de carreira. Um fenômeno. Um maluco-mágico-genial, destes que aparecem a cada mil anos, capaz de fazer da difícil arte de dirigir um carro a 300 por hora uma brincadeira de criança. Mas, para você, dirigir era mesmo uma brincadeira. Uma gostosa brincadeira. Um ritual cumprido a cada domingo. Colocar as luvas lentamente, o capacete. Concentração. Você se ajeita no carro. Pronto. Motor ronca alto. Adrenalina. A corrida em busca da perfeição. Uma paixão. Coração bate forte. Sinal verde. Acelera Ayrton! E lá vai você. Veloz. Feliz. Apaixonadamente apaixonado. Senna da Silva. Um super-homem que fez nascer em cada brasileiro um sentimento diferente, gostoso. Um sentimento verdadeiro de brasilidade colocado à flor da pele cada vez que ouvíamos os acordes do Hino Nacional. Senna nos mostrou como é bom sermos brasileiros!
 
Pois é, Ayrton, o sonho acabou. Numa curva cruel de um lugar tão distante. E a gente viu pela TV e não pode nem correr para te ajudar, te arrancar daquele maldito carro e te trazer de volta à vida. A vida que você tanto amava! E que te foi arrancada pela ganância e prepotência de alguns dirigentes movidos a dólar. O Brasil, revoltado e coberto de preto, chora a morte de seu tricampeão. Em silêncio e numa última homenagem, agradecemos tantas alegrias, tantas lições, tanta paixão, tanta bravura, tanta vontade de vencer. Nos corações de todos os brasileiros, crava-se o "S" de seu nome. O "S" do Senna. Uma marca inesquecível, capaz de nos unir sem se importar com as distâncias. Valeu, Senna! Descanse em paz, amigão!