São apenas 16 segundos - tempo mais que suficiente para reforçar o machismo ainda dominante em nossa sociedade. No primeiro quadro, vestido curto branco, coçando a cabeça, a modelo Gisele Bündchen surge constrangida para dizer ao marido que "bateu o carro dele". A tela estampa: "errado". Em seguida, Gisele, agora sedutora, calcinha e sutiã vermelhos, expressão marota e mãos na cintura, quase rebolando, volta a anunciar - "amor, bati seu carro, de novo". E essa é a maneira considerada "certa" pela peça publicitária (trata-se de uma campanha da marca Hope) de dar a informação ao marido.
Pois bem, nada contra Gisele Bündchen. Mas o anúncio de fato ajuda a reforçar e consolidar preconceitos e uma imagem distorcida da mulher. A mensagem final que fica é que, em condições normais de temperatura e pressão, apenas usando argumentos e sendo sincera, a esposa não será capaz de conter a ira do marido (que aliás parece preocupar-se mais com o automóvel avariado do que com a própria companheira acidentada). Já quando se expõe de forma apelativa, anunciando-se apenas como objeto sexual, mercadoria do desejo, uma coisa que promete barganha, recompensa e prazer (ao macho), aí sim reunirá as condições para muito provavelmente ouvir do marido "tudo bem, benzinho, não se preocupe, não tem problema... agora chega de conversa e vamos para a cama".
A Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM, popularmente conhecida como Ministério da Mulher), mobilizada por reclamações e protestos indignados, publicou nota de repúdio à campanha, lembrando que a propaganda "promove o reforço do estereótipo equivocado da mulher como objeto sexual de seu marido e ignora os grandes avanços que temos alcançado para desconstruir práticas e pensamentos sexistas. Também apresenta conteúdo discriminatório contra a mulher, infringindo os artigos 1 e 5 da Constituição Federal".
A SPM solicitou ainda ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) que recomende a suspensão da campanha. Vale lembrar que o próprio Conar, no artigo 19 de seu Código de Ética, diz que “toda a atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e aos símbolos nacionais”. Determina ainda o artigo 20 que “nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou de discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade”.
Sem demora, a solicitação feita pela SPM ao Conar já vem sendo tratada como “prática de censura”. Em artigo (disponível para assinantes) publicado nesta sexta-feira na Folha de São Paulo, o jornalista Fernando de Barros e Silva reconhece o que chama de “fashion-cafajestada” da propaganda, destacando ainda seu machismo vulgar; escreve também o colunista, no entanto, que a iniciativa da Secretaria das Mulheres é “uma medida obscurantista, além de desencadear o efeito contrário ao pretendido por essas feministas de tesoura”.
Certamente a liberdade de expressão é pilar fundamental da democracia – e a censura, uma prática a ser sempre repudiada e combatida. Mas será que a livre manifestação de ideias pode servir de álibi para falas e imagens que só fazem agredir a dignidade humana? Será que a liberdade de expressão não deve estar acompanhada da garantia e efetivação de outros direitos, além de harmonicamente articulada com deveres e responsabilidades? Pode ser considerada de forma isolada? Em nome dela, humorista pode impunemente dizer que “comeria a mãe e o bebê” ou “judeus de Higienópolis não querem ver o metrô por lá porque não desejam ser lembrados dos trens que os conduziam para os campos de concentração”? Será que, por conta da liberdade de expressão, deputados têm a prerrogativa absoluta de detonar e de se referir de forma mais que pejorativa e agressiva aos homossexuais? Pode uma peça publicitária, em nome de suposto humor, menosprezar a condição e a inteligência femininas, fazendo funcionar o vale tudo mercadológico, o vender a qualquer custo, pois se não for assim a liberdade de expressão estará sendo cerceada? Pode o livre pensar e dizer garantir o “direito” de pronunciar atrocidades contra negros e pobres, manifestando livremente preconceitos e exclusões? A trabalhar com esse raciocínio (perigoso), no limite Hitler teria todo o “direito” de vociferar publicamente e de defender a perseguição aos judeus, não? Caso contrário, se alguém ousasse pedir ou sugerir que o líder nazista fosse contido, estaria praticando censura... É assim que funciona? Mesmo? Notem só o terreno pantanoso por onde estamos nos arriscando caminhar.
Quem me conhece e acompanha meus textos neste Blog sabe bem que sou desde sempre, desde antes de nascer, convicto adversário da censura e fervoroso defensor da liberdade de expressão – que deve vir acompanhada, andar lado a lado, de forma coesa e coerente, do respeito à dignidade humana. Preocupa-me tremendamente o fato de “hoje em dia, o uso da expressão censura ter sido deturpado e estar servindo para sustentar o discurso dos empresários da comunicação quando a sociedade civil toma medidas contra veículos. A palavra (censura), que tem finalidades específicas, vem sendo usada para defender interesses comerciais”, como alerta com precisão o advogado e jornalista Rogério Farias de Tavares, professor do Centro Universitário UMA, de Belo Horizonte (MG), em entrevista recentemente publicada pelo Sindicato dos Professores de São Paulo (SINPRO-SP).
Penso que o Conar prestaria de fato um serviço à democracia brasileira caso acatasse a solicitação (não é imposição) da Secretaria de Mulheres e recomendasse a suspensão da exibição do anúncio da Hope (porque o órgão de classe é instância consultiva e também não tem poder para simplesmente tirar a peça do ar). Não se trata de censura. Mas de respeito à dignidade humana e de responsabilidade social.
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Em tempo - o anúncio da Hope não é, claro, o único a desconstruir e menosprezar a condição feminina. Que o digam os comerciais de cervejas... Que o debate seja então ampliado. A democracia brasileira só terá novamente a ganhar.