sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SETE PECADOS BOLEIROS CAPITAIS

Ira - Começa quando você abre os jornais do domingo e lê a escalação do seu time. Uma incontrolável onda de raiva se forma no fígado, rebate no estômago, queima o esôfago, dá gosto ruim na boca. Só zagueiros pangarés, volantes brucutus, meias cabeças de bagre, atacantes bem limitados. Como é que se pode disputar um campeonato com esse elenco? As vísceras se voltam contra a diretoria, burra e incompetente, que não sabe contratar e mente com o tal "bom e barato". Mas você é teimoso, apaixonado pelo time, pega o ônibus, o metrô, paga o estacionamento, fica na fila, banca o ingresso abusivo, os sorvetes e salgadinhos a dez contos nos estádios, senta num lugar ruim, quase ponto cego, vê um zero a zero insuportável, debaixo de um temporal com pé de vento e relâmpagos explodindo ao seu lado, Na volta, todo encharcado, ao buscar um bom banho quente e o descanso do lar, você descobre que seu bairro está sem luz. 'Sem previsão de volta', avisa a eficiente Eletropaulo.
Gula - Sabe aquele torcedor afoito que chega mais cedo só para comer aquele delicioso churrasquinho de gato feito na porta do estádio? O cheiro é irresistível, alega. Tem toda razão. E o sanduba de calabresa? De pernil? Porçãozinha de amendoim medida pela mão grande do vendedor já nas arquibancadas é obrigatória. Tem o sorvetinho de limão, de chocolate, de coco. Clássicos. E a pipoca deliciosamente fria e murcha. Agora pense naquela sua pelada de final de semana, solteiros x casados, com camisa x sem camisa, colete amarelo x colete azul. Você está sozinho, quase na linha do gol. Levanta a mão. Grita. Pede a bola. Seu companheiro de time, firuleiro de marca maior, inventa mais uma pedalada improdutiva, dá uma voltinha, tenta um rolinho, põe a mão na cintura, sempre de cabeça baixa, sem olhar o jogo. Você insiste. 'Solta essa bola'. O cara ignora. Rabisca mais um drible e sai com bola e tudo pela linha de fundo. Você não aguenta. "Fominha fdp". Pois é. Imagine o que sentiu o Rei Pelé, no histórico San Siro de Milão, em 1990, jogo que comemorava os 50 anos do Atleta do Século, quando o ilustre Rinaldo resolveu assumir a condição de estrela da festa. O atacante que atuava pelo Fluminense arrancou pela esquerda. Pelé corria ao lado dele, livre, livrinho da silva, sem marcação. De frente para o gol. Pedia a bola. Rinaldo deve ter pensado 'agora eu se consagro' (valeu, Milton Leite!). Ignorou apelos reais. Chutou. Para fora. Deveria ter sido sumariamente condenado por "gula exacerbada", incisivo terceiro, parágrafo segundo do artigo 16 do Código de Comportamento Futebolístico. Crime com agravantes, já que Pelé deixou de marcar o gol 1285.
Soberba - Esse é fácil. Basta lembrar daquele torcedor que nunca foi a um estádio e que, nos momentos de graça do time para quem ele acha que torce, veste aquela camisa vintage retrô com cheiro de naftalina que estava esquecida numa gaveta e fica te ligando, mandando mensagens e postando selfies nas redes sociais para perguntar 'você viu meu time? Você viu a vitória? E o nosso estádio? Que jogão, hein? Cara, o que vocês ganharam nos últimos tempos? ‪#‎seremossemprecampeões‬,‪#‎pracimadeles‬. Timinhos, jamais serão!'. Quando a fase é ruim, draga, seca, o time dele não ganha nem bolinha de gude, o malandro some, esquece futebol, guarda a camisa no fundo de um baú da avó. 'Futebol? Que bobagem. Coisa de gente pouco inteligente. Nada a ver. Onze imbecis correndo atrás de uma bola. Não gosto'. Prefere conversar sobre assuntos mais cultos. A crise na Síria, quem sabe. Terá todas as respostas para o conflito. Sabe tudo.
Luxúria - Melhor perguntar no posto Ipiranga. Ou para boleiros que costumam organizar festinhas bem apimentadas e movimentadas, às vezes até mesmo em vésperas de jogos decisivos. Um conhecido dirigente de grande clube italiano - chegou até a ser primeiro-ministro da Itália, imaginem vocês - tem verdadeira obsessão por essas comemorações. Aqui no Brasil, esses exageros não existem. Nossos atletas de cristo se reúnem apenas para ler a bíblia, orar em grupo e tomar suco de laranja. Com gelo e sem açúcar.
Vaidade - Alô, Cristiano Ronaldo, já terminou de arrumar o cabelo, antes de bater a falta? Está bonito na imagem do telão, fique sossegado. Salva de palmas também para as empresas fornecedoras de material esportivo, que a cada ano lançam uniformes novos, modelos e camisas com cores escalafobéticas, que por vezes não guardam qualquer relação com as histórias dos clubes. Têm as camisas comemorativas também. A gente vai comprando todas, fazendo a coleção, ano a ano. Por quê? Sei lá. Instintos mais primitivos. Pura vaidade.
Avareza - "Apego excessivo ao dinheiro". Blatter. Valcke. Platini. Grondona. Havilla. Leoz. Teixeira (de Miami). Eurico. Aidar. Mustafá. Teixeira (de Santos). Sanchéz. Del Nero. Marin. Webb. São tantos...
Preguiça - É sempre uma experiência deliciosa ver o craque do seu time, aquele que foi contratado a peso de ouro para comandar a equipe e liderá-la na conquista de títulos, pisar no gramado com um legítimo e estiloso chinelo havaianas, última moda em muitos centros de treinamento, e desfilar sua empáfia descompromissadamente pelo gramado, pensando no aumento salarial e nas luvas que ele pretende pedir na próxima renovação contratual, a negociação com o exterior, a multa rescisória. Parado na intermediária, o garotão põe as mãos na cintura. Faz pose de açucareiro. No primeiro pique - nada de extraordinário, um galope de uns cinco metros, bola lançada na frente -, ele corre com o freio de mão puxado. Trava repentinamente. Coloca a mão na parte posterior da coxa direita. Agacha. Faz cara de muito sofrimento. Olha para o banco de reservas. Com aquele gesto típico, girando os dedos indicadores, pede substituição. Sai mancando. Na entrevista coletiva, media training, vai dizer que a contusão foi grave, vai precisar provavelmente de três a quatro meses no departamento médico, para somente então retomar os trabalhos com bola. Não quer arriscar previsão de volta. 'Uma pena, estava começando a me entrosar, a encontrar meu melhor jogo', lamenta. Dá uma raiva.
Volte ao primeiro pecado.

sábado, 17 de outubro de 2015

BRIGA EM FAMÍLIA

Não há racionalidade num torcedor de futebol. O mesmo decreto inglês (ou chinês? Há controvérsias) que criou o ludopédio, definindo as regras do esporte, determinou também por tabela que espasmos de tensão, estados de espírito fortemente alterados e reações escalafobéticas e estapafúrdias acompanharão comportamentos boleiros, sempre que a redonda rolar (e até mesmo quando ela estiver descansando). Que o digam a mesa da minha sala, amistosamente esmurrada, e a porta de entrada do apartamento, graciosamente chutada em tardes ou noites de jogos do Santos. Os vizinhos já se acostumaram aos palavrões. Nem ligam mais. Acho até que se divertem. Suspeito que tenham anotado alguns impropérios novos em seus caderninhos. Acho que ouvi alguns deles em serenas reuniões de condomínio. Controles remoto da TV a cabo? Já quebrei - e troquei - um montão. Até óculos entortei e esmaguei, numa disputa em que perdemos a vaga na final aos 48 do segundo tempo. Fiquei estatelado no chão por mais de meia hora, imóvel, mudo, no escuro, ao final da partida. No estádio, não há perdão para um bandeira que marca impedimento inexistente. Para árbitro que anula gol legítimo. Para atacante que erra gol feito. Para chinelinho que faz corpo mole e não corre. Para técnico que faz substituição errada. Para torcedor novato e virgem de arquibancada que senta a seu lado e, no lance decisivo, resolve puxar papo e discutir a má campanha do time. O campo, Luiza e Daniel sabem, é território livre do palavrão. Assim ficou combinado. Os amigos que me conhecem de longa data preferem não cutucar a onça. Dizem que me transformo, que as expressões de meu rosto mudam. Fico transtornado, garantem. Outro Chico. Uma amiga muito querida já me disse, não uma só vez, que não entende como um sujeito racional, controlado e cerebral como eu pode se deixar abalar tanto por um mísero jogo de futebol. É que é... futebol. Sinto muito. Jamais vou conseguir convencê-la de que não tem jeito. No futebol, vísceras cantam e batucam mais alto que neurônios. O coração acompanha o ritmo. Além do mais, sou ariano. Torto. Dia desses li num desses precisos e rigorosos testes de facebook que mesmo o cérebro de um ariano é muitas vezes regido pelas batutas dos instintos mais primitivos. É mais forte que eu. Os conhecidos menos chegados, sem muitas intimidades e não acostumados às explosões, invariavelmente deixam escapar um perplexo "você fica assim com o Santos? Com a Seleção? Sobe em mesa de bar para torcer? Não acredito. Não consigo imaginar você nesse estado!". Não tenham medo. Podem continuar por perto. Sou bonzinho. Sou normal. Continuo comunista, mas não como criancinhas batidas no liquidificador. Já fui para Cuba, sem ninguém precisar me  andar. #ProntoFalei. Para o pobre torcedor, há ressacas mais longevas (perder de goleada ou clássicos é osso duro de engolir). Outras são quase instantâneas (derrota quando a classificação já está garantida). O fato inexorável, amigos boleiros, amigas boleiras, é que tudo passa. A crise econômica vai passar. O mandato da Dilma vai passar, em 2018. O Eduardo Cunha vai passar (sei não). O transe provocado pelo futebol sempre passa. A única coisa que não passa é a vontade de ser presidente a qualquer custo do Aécio. E do Serra. São os pontos fora da curva. Exceções que confirmam a regra. Aos que se preocupam solidariamente com meus ataques e minha saúde, minha gratidão. E uma convicção, para tranquilizá-los - mesmo no máximo do descontrole, no auge dos xingamentos, no ápice do diálogo com o fígado, nunca, nunquinha me meti ou me envolverei em brigas de futebol. Nesga de lucidez sempre resta. Recorro a ela. Tudo bem, há a rusga numa mesa de bar, a discussão por telefone, uma provocação nas redes sociais. Depois a gente resolve com abraço, carinho e cerveja. Rivalidade. Ficamos nisso. Jamais violência. Abomino a selvageria da força bruta, qualquer circunstância. Já corri de confrontos entre organizadas. Piquei a mula e me escondi atrás de banca de jornal quando a cavalaria da sempre bem preparada Polícia Militar paulista apareceu descendo o sarrafo em quem viesse pela frente deles. Ajudei a formar cordão de proteção para a entrada de torcedores adversários na Vila Belmiro. Separei porrada em arquibancada. No currículo boleiro de mais de 40 anos que tanto me orgulha, para não mentir, apenas um cartão amarelo, uma advertência leve por "ter chegado às vias de fato movido pela maldita bola". Foi em casa. Briga com meu irmão. Também santista. Motivo - um jogo do Santos. Contra o Guarani. No estádio Brinco de Ouro. Campeonato Paulista de 1997, dia 19 de fevereiro, noite abafada de uma quarta-feira. Eu já estava formado, quase casado. Ele estava terminando a faculdade, dois anos mais novo. Eram os tempos das vacas magras, o Santos não ganhava nem disputa de par ou ímpar. O time era pavoroso. Comecei vendo a partida sozinho, pela TV, conformado com mais um fracasso alvinegro. Até saímos na frente. Nem resmunguei quando o Guarani empatou. Marcamos o segundo. Seguramos o resultado até os 40 do segundo tempo, o time de Campinas com um a menos em campo. Pensei, é hoje, vitória fora de casa, coisa linda. Vou até abrir uma breja e comemorar. Ouvi o barulho da chave na fechadura. Calafrios. Meu irmão nem tinha chegado na sala, o corredor de entrada era longo. Gol do Guarani. Empate. Falei nada. Fuzilei com o olhar. Pelos códigos boleiros que nos unem umbilicalmente, ele sabia perfeitamente que eu estava dizendo, com raiva, 'porra, por que não esperou o jogo acabar para voltar? Estava dando tudo certo". Não deu tempo dele sentar no sofá. Gol do Guarani. Virada em três minutos, a cinco do final do jogo. Explodi. "Cacete, que puta pé frio! Pé gelado! Conseguiu fazer virar um jogo que estava ganho! Sai daqui! Vai embora porque a gente ainda vai perder!". Não vimos o final da peleja. Só depois fui confirmar que tinha acabado mesmo 3 a 2 para o Bugre. Não lembro a sequência exata. Acho que o que veio em seguida foi assim. Meu irmão, de terno e gravata (eu de pijama), avançou com fúria na minha direção. Tentou me acertar um soco. Uma voadora. Decidi entrar de vez naquela esparrela. Nos atracamos e começamos a rolar pela sala. Derrubamos banquinhos e cinzeiros, esbarramos em mesinhas de canto e de centro, demos cabeçadas no chão. Eram chutes, murros e pernadas para todos os lados. Esbaforida, sem saber o que fazer, minha mãe só conseguia pedir 'parem, por favor, parem. Vocês vão se machucar'. Encarecidamente. Maternalmente. Meu pai, que já dormia (era quase meia-noite), tentou controlar o enrosco com berros do quarto, Adiantou nada. Desafiamos. Éramos duas bestas feras desferindo sopapos. Minha irmã dormia o sono dos anjos. Nem se abalou. Chegamos rolando ao quarto, abrimos a porta com coices, o cabideiro coalhado de roupas foi ao chão. Quem tentou agir como pacificador foi meu irmão mais novo. Acordou assustado, todo descabelado, desceu aparvalhado do beliche e tentou tomar pé da situação, meio babeta: 'o que está acontecendo?'. Olhos ainda quase fechados, colocou uma mão no meu peito, a outra no ombro do irmão briguento. Tentou nos afastar. Saiu faísca. Virou o alvo. Levou porretada dos dois. 'Não se meta'. Voltou rapidinho e esbaforido para a cama. 'Imbecis. Vou dormir. Vocês que se resolvam'. Deitou, cobriu-se e apagou. A quebradeira só teve fim quando meu pai apareceu na porta. Só precisou pronunciar um 'chega. Agora'. Os exércitos recuaram, internamente jurando revanche e segundo tempo, talvez prorrogação e cobrança de pênaltis. Disputa num outro torneio. Os vizinhos nem ousaram reclamar da algazarra. Além de general das tropas do apartamento 61 da saudosa rua Lisboa, meu pai era sub-síndico. Respeitadíssimo. Acho que fiquei uma semana sem falar com meu irmão. Uns dois jogos do Santos, vimos em cantos distantes. No terceiro, já estávamos juntos, como sempre foi, rindo e xingando o time em uníssono. Sempre fomos parças alvinegros da Vila, na alegria e na tristeza. A história da briga - desvio único de conduta - faz parte do folclore da família. Quando nos encontramos para mesas-redondas com rodadas de cerveja, lembramos e rimos do episódio bizarro. Claro que nos arrependemos. Patético. Infantil. As versões, no entanto, permanecem diferentes. 'Você me ofendeu', ele alega. 'Você veio para cima de mim, Só me defendi', respondo. O pé frio naquela noite? Nem ele nega. Sai, zica! Pega aí a cerveja gelada. Um brinde.                    

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

LEGIÃO, 25 ANOS DEPOIS

Guardo poucas lembranças do almoço daquele Dia dos Pais, 12 de agosto de 1990. Acho que engoli a comida com duas ou três garfadas, dez mastigadas. No máximo. Não prestei atenção às normalmente divertidas conversas familiares. Estava nada preocupado em degustar ou apreciar o sabor ou tempero do macarrão ao sugo, do bife acebolado, da salada de tomate, batata frita. O cardápio não deve ter escapado muito disso, é o tradicional em nossas reuniões. Está bom de sal? E o molho? Quer esquentar mais um tiquinho? Quer mais? Sei lá. Tinha trabalho da faculdade. Ficou para depois. Paciência. Dou um gás durante a semana. Juro, não era só a ressaca da balada da noite anterior. Naquele domingo, apenas o show da Legião Urbana, no Parque Antártica, tinha importância. Estado máximo de excitação. Geração coca-cola. Os ingressos tinham sido comprados fazia mais de mês. Horas na fila, numa loja na rua Augusta, acho. Senta, levanta, anda. Espera. Senta, levanta, anda. Discute. Reclama. Ombradas, malandros tentando passar na frente, ele estava guardando para mim. Cai fora. Lá no fim. Compra pela internet? A gente nem imaginava que um dia seria possível. Também não tinha corredor exclusivo de ônibus, bilhete único, ciclofaixa, embora a então corajosa prefeita Luiza Erundina travasse uma batalha hercúlea para garantir a qualidade do transporte público na cidade. Subimos no primeiro Lapa 175-H que passou, linha que cortava a avenida Sumaré, do viaduto Paulo VI à praça Marrey Junior. Melhor dizendo, nos penduramos na porta de trás (ainda era por onde se entrava) no ônibus superlotado. Não nos mexíamos, Torcíamos para o motorista ser bonzinho e compreensivo e não arriscar qualquer manobra mais ousada. O escapamento soltava uma fumaça preta horrorosamente fedida. Respiramos tudinho. Na esquina do estádio, o trânsito travou. Bateu aquele dilema - e agora, como vamos pagar essa porcaria? Nem pensar em chegar até a catraca. Impossível. Princípio de confusão e gritaria. Pula, pula, salta, sai logo. Vai começar o show. Não vamos pagar? Não era momento para arroubos de honestidade. A massa ensandecida começou a empurrar. Entendi a mensagem - ou pula ou será pulado. Quando armei e calculei o salto acrobático, sei lá se foi de sacanagem ou porque precisava avançar mesmo, o motorista acelerou. Não tão de leve. Foi o suficiente. Tombaço. Caí estatelado no meio da rua. De joelhos. Agora reza e pede perdão pelo calote, moleque babaca, deve ter pensado o motorista. Para não passar mais vergonha, tentei levantar rapidinho, cara de paisagem, como se nada tivesse acontecido. Ficou pior ainda. Ainda sem equilíbrio, sem saber ao certo aonde estava, atordoado, caí de novo. Que vergonha. Tudo bem, tudo bem. Sem machucados. Só a calça rasgada. Estilo. Óbvio, na madrugada, depois do show, sem a adrenalina, doeu para cacete. Até hoje, nas rodas de amigos e em encontros familiares, a queda legionária é motivo de gargalhadas. Finalzinho de tarde, o velho Palestra já estava iluminado. Vinha gente de todos os lados - da Turiaçu, da Pompeia, da Diana, da Tucuna, do viaduto Antártica. Gente cantando, gente bebendo, gente gritando, gente correndo. Vários rolezinhos. Sempre que conto essa história, Luiza, minha filha mais velha, cheia de pudores éticos (que bom), manda um "pai, não acredito que você furou fila! Você, todo certinho, furou fila no show do Legião!". Não, filha. não furei. Sério mesmo. Porque não existia fila. Eram multidões que se empurravam nas apertadas portas de acesso. Godos, visigodos e ostrogodos deviam se comportar dessa maneira em espetáculos que frequentavam. Decidimos entrar de vez naquela dança e tomar de assalto o Império Romano. Assumimos nossa porção bárbara. Seguimos o embalo. Sobrevivemos. Nem sonhem com lugares marcados, numerados. Senta no primeiro centímetro quadrado vazio que encontrar. Andamos até o setor oposto ao palco. Ali, ali, rápido. Chegamos. Uns dez minutos antes do início do show. Coincidência – dali, vi muitos jogos do Santos. Ali, oito anos mais tarde, perderia - e reencontraria – a aliança de casamento. Corre à boca pequena que é por conta dessa façanha que a arena passou a se chamar Alianz Parque. Bem, é outra história. O gramado era um formigueiro humano. Cadeiras e arquibancadas superlotadas. Lá fora, a confusão continuava. Muita gente ainda tentando entrar. Ficaríamos depois sabendo que teve rolo com ingresso falso. Biógrafos estimam que foi o maior show da história da banda. Há quem fale em cem mil pessoas no estádio. Exagero. Umas sessenta mil. A Legião subiu ao palco pouco depois das oito da noite. Renato Russo vestia a tradicional bata branca. Carregava uma rosa também branca na boca, que colocou bem perto do microfone. Antes de dar boa noite, avisou: “nenhuma guerra pode ser santa”. O Iraque acabara de invadir o Kwait. Os Estados Unidos, preocupadíssimos em preservar acesso às reservas de petróleo do Oriente Médio, já se movimentavam para combater as tropas de Saddam Hussein, na primeira Guerra do Golfo. A invasão aconteceu em janeiro de 1991. Vivíamos os tempos difíceis do Plano Collor. Contas e poupanças tinham sido confiscadas e bloqueadas. O desemprego era galopante. Havia um pessimismo que tomava conta de todos. Muita gente queria ir embora daqui. Via meus pais perdendo o sono, fazendo contas. Cortando gastos. Meus irmãos mudando de escola. Eu procurava estágio. Virava adulto. Naquela noite de agosto, o líder da Legião estava inspiradíssimo. Elétrico e incrivelmente sóbrio – no que podia ser a sobriedade de Renato. Entrei em estado de transe. O show foi meu divã. Durante pouco mais de duas horas, me deixei transportar para outra dimensão. O mundo real ficou para trás. Esqueci o medo de uma guerra mundial, deixei de lado a angústia da falta de projeto nacional. No palco, a Legião enfileirava petardos. Renato cantava “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, “quem me dera, ao menos uma vez, provar que quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante e fala demais por não ter nada a dizer”, “temos todo tempo do mundo”, “quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar pra todo o mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”, “quero colo, vou fugir de casa, posso dormir aqui com você. Estou com medo, tive um pesadelo”, “por que é mais forte quem sabe mentir?”. Cantei. Pulei. Sonhei. Como se não houvesse amanhã. Legião, já no nome, era a antítese ácida daquele espírito individualista e negativo que insistia em nos contaminar. Um sopro, um respiro. Quando as luzes do Palestra foram acesas, eu estava esgotado. Feliz. Realizado. Até achava que dava para ser , quem sabe, um pouquinho mais otimista. Duraria pouco. Eu sei. Eram dias duríssimos.  Não foi tempo perdido. Já não somos tão jovens. Mas Legião continua embalando meus sonhos, pensamentos, lembranças, dúvidas, agonias. Minhas dores e meus amores. E os da Elisa, da Luiza e do Daniel. Paixão de família. Basta entrar no carro para ouvir o pedido “pai, coloca o CD do Legião”? É aquele duplo, ao vivo, com a gravação do show daquela noite mágica de 1990. Emoções nostálgicas. Conto e reconto essas histórias. Eles se divertem. Na semana passada, saindo da aula, piscou o zapzap. Mensagem da Luiza. “Pai, você não acredita... vai ter show da Legião! Vamos? Precisamos ir!”. Como eu posso recusar um convite desses? Chegou outra mensagem. “O Dani também quer ir”. Há quem diga que é nessas horas que um pai explode de satisfação. Corremos para comprar os ingressos. Sem filas. Vinte e cinco anos depois. Que país é esse? Ainda não sei. A ansiedade é a mesma. Maior, talvez.