terça-feira, 15 de novembro de 2016

A MATEMÁTICA DO FUTEBOL


Salve, salve, torcedor brasileiro, torcedora brasileira. Estamos iniciando mais uma jornada boleira pela sua rádio Tique-Taca, a emissora que toca a bola, faz a tabelinha e tem o rabo preso só com você! E hoje a partida é decisiva. O Ganhamos nas Urnas, líder isolado do campeonato, 61 pontos, 16 vitórias, 13 empates e apenas três derrotas, joga fora de casa e tem pela frente a experiente, ardilosa e traiçoeira equipe do Vamos Dar o Golpe, vice-líder do certame, 54 pontos, 14 vitórias, 12 empates e seis derrotas. O comentarista Nerval Azedo, imortal das ondas sonoras e sempre rápido nos gatilhos seletivos, me lembra aqui que a fanática torcida do Golpe já realizou seis grandes manifestações de rua para exigir a anulação das seis partidas em que o time do coração foi derrotado. Alegam que atletas adversários fizeram mais gols do que poderiam fazer, pelo regulamento. São as chamadas pedaladas boleiras. O Parlamento da Bola Inquisidora deverá julgar em breve a questão. Impedimentos à parte, no campo e sem artimanhas, a vantagem é toda dos vermelhos das Urnas, que acumulam, desde que se enfrentaram pela primeira vez, em 1920, 138 vitórias contra os amarelos golpistas, que contabilizam 86 triunfos. Aconteceram ainda 92 empates entre as duas agremiações. Sem mistérios, os técnicos já divulgaram as escalações. O time da casa vai a campo num tradicional 4-4-2, que pode se transformar num 4-3-3 quando estiver atacando e num 3-5-2 na defesa. O visitante parece querer surpreender e abandona seu vencedor 4-2-3-1 para apostar num bem fechadinho 4-5-1. O líder tem o ataque mais positivo do campeonato, média de 2,65 gols por partida; a defesa menos vazada, 0,6 gol sofrido por jogo, além de se destacar também nos quesitos chutes a gol, 15,3, em média, e nas faltas recebidas, 28,9 de média. O segundo colocado tem protagonismo nas faltas e golpes baixos deflagrados. São 45 a cada jogo, média elevadíssima e assustadora, principalmente se considerarmos que são 18 pontapés abaixo da linha da cintura, 12 saltos no vácuo com joelhadas laterais, 8 cotoveladas, cinco cabeçadas no peito e outras duas dedadas nos olhos. Os levantamentos mais recentes apontam que, a seis rodadas do final do campeonato, o Ganhamos tem 87% de chances de conquistar o título. Será o pentacampeonato, o quinto caneco seguido. Já as possibilidades do Golpe de alcançar em campo sua primeira taça depois de um jejum de catorze anos são de 7%. Sem contar o tapetão, claro. No tribunal parlamentar, os horizontes são bem mais promissores para o atual vice. O embate de hoje reúne equipes posicionadas em extremos quando observamos as idades dos jogadores. São doze atletas com menos de vinte anos vestindo a camisa vermelha, contra nove com mais de trinta anos atuando com o fardamento amarelo, considerando titulares e reservas.
Cabralzinho arranca bruscamente os fones dos ouvidos e dá um murro na mesa. O jogo nem começou e ele já está arretado e irritado com a overdose de cardinais, ordinais e percentuais metralhados pelos narradores e comentaristas da rádio. Sente-se como se estivesse numa reunião de departamento do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada. De que adianta essa numerologia toda? E se o cara deu trinta passes certos no jogo, mas todos eles de lado, burocraticamente? E se a equipe teve 80% de posse de bola, tendo ficado, no entanto, enrolando e trocando passes inúteis no campo de defesa, apenas esperando o tempo passar, sem chutar a gol durante os 90 minutos? E se o centroavante pegou só três vezes na bola, mas numa dessas oportunidades fez uma jogada linda, daquelas de entrar nas chamadas de todas as mesas-redondas televisivas, deixou dois zagueiros no chão, driblou o goleiro e marcou o gol do título? Números contam histórias, resmunga Cabralzinho. As matemáticas futebolísticas precisam transpirar também personagens, diálogos, enredos, conflitos e clímax. Os dois, três, terceiro, quarto e tantos por cento nasceram com evidente vocação literária. Não se orgulhe de apenas vociferar os números, me conte o que eles significam, pede o desolado torcedor, olhando para o celular ainda sintonizado na rádio, chiando em cima da mesa. Chega dessa história de fria exatidão. #Chateado.
Antes de voltar ao jogo, Cabralzinho decide: quando for ministro da Educação, vai incluir as questões de Matemática no caderno de Humanidades. Na reforma do ensino médio que irá sugerir, promete criar uma grande área transmegainterdisciplinar chamada Matemática Humanista do Futebol. Tudo isso será feito, ele se compromete, com amplo debate público, a representar a vontade popular, sem precisar recorrer a medidas provisórias. Primeiramente… Um pra lá, dois pra cá. É fogo no boné do guarda. Ripa na chulipa, pimba na gorduchinha. A bola ficou pedindo me chuta, me chuta… ele encheu o pé. E que golaço! Aguenta, coração. Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo, torcida brasileira.

Originalmente publicado em www.ciencianarua,net, 14 de novembro de 2016

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

BOLEIROS DO ÉDEN


Nem bem tinha chegado ao Paraíso dos Craques (sim, ele existe, é uma ala especial do Jardim do Éden, acessível apenas aos boleiros fenomenais), ainda tentando entender o que tinha acontecido e se adaptando à nova morada, e Carlos Alberto Torres foi logo dando as ordens.
- Vamos jogar sempre no 4-3-3, com laterais atacando o tempo todo. E vai ser um futebol bonito. Arte, como fez a Seleção de 1970. Nada de bicões ou caneladas.
Mauro Ramos e Bellini se apressaram a receber o mais novo e ilustre morador.
- Dá cá um abraço, Capita!
Um abraço de três gênios que levantaram a taça de campeões do mundo.
Ressabiado, Zito, o dono da bola do Éden, também com faixa de capitão (alvinegra) no braço, resmungou.
- Carlos Alberto, aqui quem define esquema de jogo sou eu.
Doutor Sócrates apaziguou.
- Calma, moçada. Podemos resolver essa parada democraticamente.
- Tudo bem, vamos pensar nos esquemas. Mas vocês já combinaram com os russos?, quis saber um baixinho das pernas tortas. Era o Mané.
- Só jogo se for no time do Garrincha, resmungou Nilton Santos.
- Topo ser reserva do Félix, sem problemas, disse mansamente Gilmar.
- E eu revezo com o Castilho, completou Félix.
Atento à conversa, Dener treinava embaixadinhas. 301, 302, 303, contava. Sem deixar cair a pelota.
- Vai demorar muito? Quero mais é jogar!, gritou o moleque.
Carlos Alberto e Zito terminaram de distribuir os coletes.
- Vai começar!, avisaram, juntos.
Um minuto de silêncio.
- Posso treinar esse time?
Todos olharam para o Capita e para o Zito.
Os dois sorriram. E responderam ao mesmo tempo, numa tabelinha ensaiada.
- Claro, Telê. Mestre Telê. Ninguém melhor que você para treinar esse time.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

TRISTEZAS

Acordou com a firme disposição de reverter o estado de espírito que tinha sido apontado pela filha no dia anterior, depois de ler mais uma das tantas crônicas que ele anda escrevendo. 'Pai, o texto está bacana. Mas o final é muito triste. Você anda muito triste'. Ainda era cedo. Resolveu tirar um dia de folga. Arriscou ligar para um amigo de infância, com quem não falava há anos. Conversaram um tanto. Muitas risadas. Preparou um belo café da manhã. Pão na chapa. Queijos. Sucos. Frutas. Bolos. Sentiu-se revigorado. Olhou de relance as manchetes dos jornais. Prefeito eleito de São Paulo vai privatizar até o Parque Ibirapuera. E a velocidade nas marginais vai subir de novo. Bateu desânimo. 'Vou sair para caminhar'. Viu na televisão do bar da esquina o discurso da primeira-dama vestida de princesa. Bela, recatada e do lar. Longe se vão os tempos da presidenta grosseira e histérica. Brasil angelical. Princesas. Vamos tirar o país do vermelho. Voltou para casa macambúzio. Entrou no banho. Deixou a água da ducha massagear as costas durante quase meia hora. Bateu a vontade de almoçar numa churrascaria. Lá se foi. Refestelou-se com alcatras e picanhas apimentadas, suas carnes preferidas. Voltou a sorrir. Sacou o celular e mandou uma selfie para a filha, fazendo uma careta. 'Melhor assim?'. Na mesa ao lado, um grupo de gestores, pulôveres coloridos amarrados nas costas, comemorava a aprovação, na Câmara dos Deputados, da medida que entrega o pré-sal brasileiro a empresas estrangeiras. Terminou de almoçar sem nem bem sentir o gosto da sobremesa. Torta de limão. Mastigava, mastigava, mastigava. Engolia. Mirava o infinito. Foi tirado do estado de transe pelo garçom. 'Mais alguma coisa?'. Pediu um café. Pagou a conta, mecanicamente. Débito. 'Eu prometi para minha filha'. Esboçou outro sorriso. Parou numa livraria. Sentiu-se acolhido. Passeou pelas prateleiras. Folheou lançamentos. Não resistiu. Comprou os novos do Vargas Llosa, do Cristovão Tezza, do Daniel Galera e da Elvira Vigna. Em êxtase, correu para chegar em casa e começar as leituras, interrompidas apenas para acompanhar, já início da noite, a partida do time do coração no Brasileirão. Vila Belmiro. Reta final do campeonato. Estreia da camisa nova. Vai dar Libertadores? Acho que sim. Alegria, alegria. Por impulso, puro vício, zapeou e parou no jornal global. Governo já tem os votos para aprovar a proposta de emenda constitucional que vai cortar gastos públicos. Supremo Tribunal Federal decide que prisões podem acontecer após condenações em segunda instância. Sem os repasses do Fies, cai número de alunos matriculados no ensino superior. Governo finaliza nesta quinta-feira texto da reforma da previdência. Sorumbático, desligou a TV. 'Filha, eu tentei. Me desculpe. Quem sabe amanhã'. Começou a escrever mais uma crônica. Triste.

sábado, 20 de agosto de 2016

RECADO DE NELSON RODRIGUES



Nelson Rodrigues já tinha cantado a bola - o escrete nacional precisa de carinho. Melhor ainda se for uma abundância de afagos, de beijos e abraços, transformados em intensa paixão, fundamental para para embalar a canarinho (e também para chupar um picolé). Nelson tinha orgulho danado da linda e extraordinária história dessa Seleção. Era a pátria dele. A pátria de chuteiras. Nos últimos anos, no entanto, se vivo fosse, desconfio que os textos inigualáveis dele estariam destilando raiva e transbordando impropérios sem fim. O que estão fazendo com a Seleção?!, esbravejaria. Por obra e graça dos intensos esforços da Confederação Brasileira de Falcatruas, entre Parreiras e Dungas, Teixeiras e Del Neros, Marins e gaúchos de bigodes, Paraguai e Peru, sete a um martelando na cabeça, apagões e eliminações vergonhosas acumuladas, futebol burocrático e brucutu desfilando em campo, o Brasil que encantou o planeta boleiro e foi imortalizado em verso e crônicas por Nelson passou a ser achincalhado. Motivo de piada. Bordoadas de todos os lados. Quando o Brasil entrava em campo, ele sentia falta "do choro que vem das entranhas, da dor que irradia e derrama dos olhos, do grito que rasga a garganta". Não havia mais paixão. Da sua cadeira cativa no Maracanã, talvez Nelson escrevesse - está uma porcaria mesmo. Mas não são os jogadores, estúpidos. Não maltratemos nossos jogadores. Não vamos destruir nosso craque. É a engrenagem. A cartolagem. "Em futebol, o pior cego é o que vê só a bola". Demitam todos. Deixem nossos boleiros jogar. Com a alma e a arte do nosso futebol. Nelson não conseguiu conter a alegria quando o anãozinho mudo foi defenestrado. Quem sabe? Cerrou os punhos e comemorou a contratação daquele outro gaúcho que fala bonito nas coletivas e que acha que os adversários falam muito. Será? Aplaudiu a manutenção do técnico que já estava no comando da olímpica. Bravo! Torceu o nariz e deu murros na mesa, é verdade, nos dois primeiros jogos do escrete. Com todo o respeito, mandou, não dá para empatar com África do Sul e Iraque. Continua faltando alma! Temeu a tragédia da desclassificação na primeira fase. Abriu um discreto sorriso de canto de boca na vitória contra a Dinamarca. Está com mais cara de Brasil. Voltou a chamar de canarinho após a goleada contra Honduras. Fazia tempo que não se referia dessa maneira à Seleção. Antes da final, avisou logo: não é revanche. Não tem nada que pensar em devolver os sete a um. Nelson chegou cedo hoje ao Maraca. Estava apreensivo. Tomou assento no lugar de sempre. Passou os cento e vinte minutos, mais os pênaltis, sem dizer uma palavra. Apenas mirava o campo. Comemorou como Pelé, saltando e socando o ar, o inédito ouro olímpico. No celular (sim, Nelson achou por bem aposentar a velha olivetti), ainda em êxtase, antes da cerimônia de premiação, digitou a crônica do campeão. "Amigos, falemos ainda do Brasil. Nesse momento, o mundo todo está de novo de olho no fabuloso escrete brasileiro. Eis a caridade que nos faz o escrete: dá ao roto, ao esfarrapado, uma sensação de onipotência. Não há distância entre nós e a equipe verde-amarela, ou por outra: há uma distância falsa, uma distância irreal. Na verdade, estamos encarnados no escrete". Não, ainda não é a redenção, completaria Nelson, já em casa, mais comedido, banho tomado, adrenalina da final já tendo passado. Talvez tenhamos começado a renascer. Hoje, continuou, vimos dribles e triangulações em campo. Tabelas. Um jeito mais alegre de jogar. Esquema mais bem definido. Alma. Oxalá seja mesmo um recomeço. Do além, do olimpo dos cronistas, terminou mandando um recado: 'Tite, não se esqueça. O escrete precisa de carinho'.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

POKEMON GOL


Entrei em grande estilo e de supetão no quarto da filha adolescente (vai hoje à primeira festa de quinze anos) e lasquei um tapão na porta, pulando e comemorando: “matei um pokemon”. Muito bem-humorada, como manda o manual internacional na adolescência, ela explodiu num espasmo de ira. “Não é assim que se joga, pai! Se liga, véi!”.
Eu me penitencio publicamente, sem necessidade de segredos de confessionário. Não faço a menor ideia de que jogo é esse. Sei que chegou tardiamente ao Brasil, depois de muitos resmungos e insistentes pedidos dos fãs enlouquecidos, incluídos aí os atletas olímpicos que já estão por aqui. Deve ser excitante mesmo.
Ontem vi um jovem que bufava e falava sozinho no vagão do metrô, esmurrando o celular e chacoalhando o aparelho no ar, enquanto desancava e xingava os pokemons de todos os nomes. Talvez quisesse matá-los. É possível? Mas não é só para capturar e treinar as tais criaturas? E depois, o que se faz delas?
Sou dos tempos em que a gente corria mesmo era para coletar pistas e decifrar enigmas para caçar um tesouro. Na avenida Paulista, final de tarde com vento gelado, casais andavam abraçados, celulares em ação... caçando pokemons. Já teve até gente que teve o aparelho móvel roubado enquanto corria alucinadamente atrás dos bichinhos. Especialistas sugerem que os pais sejam cautelosos e orientem os filhos sobre como lidar com a nova parafernália tecnológica, que mistura realidade e mundo virtual, tornando tudo muito mais confuso. Imaginem se na final olímpica dos cem metros rasos, poucos segundos antes do tiro de largada, alguém mais afoito na arquibancada levantar e gritar a plenos pulmões, para o estádio inteiro ouvir: ‘Fora, Temer!”. Não, perdão, esse grito é de outra crônica. O maluco grita mesmo é “tem um pokemon perto do pé direito do Usain Bolt!”. Que temeridade.
Já com espírito de Pierre de Coubertin à flor da pele, sem sair da frente da televisão, canais esportivos funcionando vinte e quatro horas por dia e invadindo madrugadas, tenho acompanhado todos os jogos de futebol – feminino e masculino – da Rio 2016. Num gole de café, mordida na barra de chocolate, um estalo. Deu vontade danada de pedir a um desses gênios empreendedores que desenvolvam um game capaz de me transportar, com todos os cheiros, cores e sons originais, reproduções perfeitas, às arquibancadas dos estádios em que, por razões diversas (não era nascido, falta de grana, não deu para viajar...), aconteceram pelejas futebolísticas que não consegui presenciar e acompanhar in loco. Já tem até nome a diversão. Pokemon GOL.
Com dois ou três cliques, tudo muito simples e intuitivo (não sou exatamente alguém afeito às tecnologias, como já devem ter percebido), o bichinho me empurraria e eu desembarcaria no Maracanã, 16 de julho de 1950. Tudo bem, vai ser sofrido, uma tragédia, vou ficar em silêncio depois do segundo gol do Uruguai, vou chorar no ombro do torcedor do lado quando o juiz apitar o fim da partida. Mas seria sensacional poder testemunhar aquela final de Copa do Mundo, ainda que virtualmente.
Avançaria em seguida mais alguns anos e comemoraria, no estádio da Luz, em Lisboa, Portugal, o primeiro título mundial de clubes do Santos, conquistado depois de goleada memorável sobre o Benfica (5 x 2, sem contar o baile). Pelé e Eusébio em campo. Para muitos, a melhor partida de futebol de todos os tempos. Com alguns ajustes e atualizações e uma versão mais avançada, pokemon GOL 2.0 (ou pokemon GOLAÇO), poderia levar comigo ao estádio meu avô (já falecido), o pequeno Daniel, meu filho, além do meu irmão Eryx, juntando três gerações de santistas.
Mais um tantinho de upgrade e alcançaríamos a possibilidade de interagir com os jogadores em campo. Meu destino seria então o estádio Sarriá, em Barcelona, na Espanha, 5 de julho de 1982. Brasil do mestre Telê Santana contra a Itália. Quando Oscar, zagueiro canarinho, no finalzinho do jogo mandasse aquele balaço de cabeça, eu, bem atrás do gol, gritaria para o Zoff, goleiro da Azzurra: “ei, bambino, olha o pokemon aí, no pé da trave!”. A maldita defesa linda que ele fez em cima da linha estaria apagada da história. Gol do Brasil. Empatamos, três a três. O resultado nos colocava na semifinal. Trituraríamos a Polônia, amassaríamos a Alemanha na decisão, 10 x 1, devolvendo com três extras a humilhação que aconteceria em 2014 (no meu pokemon GOL, Neymar não se machucaria contra a Colômbia nas quartas no Brasil, faria chover na semi e despacharíamos os germânicos, eternos fregueses, com um rotundo 7 x 1. Para o Brasil, reforço. Quem manda nesse pokemon GOL sou eu).
Tenho ainda uma vontade danada de ver na Vila Belmiro (tinha ingresso para aquele jogo, mas fiquei doente) o Santos x Flamengo do Brasileirão de 2011. Prometo não interferir nesse resultado final. Aceito a derrota, 5 x 4 para o Mengão. Só quero poder estar na minha cativa para me deliciar com a pintura de gol do Neymar. E com a arte renascentista boleira que o Ronaldinho desfilou em campo, um dos últimos suspiros de vontade de jogar bola do Gaúcho.
Na memória do meu pokemon GOL, cabem todos os jogos já disputados na história do futebol. O game seria permanentemente alimentado, ao final de cada rodada. Os filtros permitiriam que as escolhas fossem feitas por data, time, campeonato, estádio... é clicar, escolher e aproveitar. Não exige prática nem competências especiais. Não precisa capturar nem treinar ninguém. Diversão garantida.
Pokemon GOL. Alguém se habilita a desenvolver e me presentear com essa engenhoca? Gratidão boleira eterna. Como? Tem um pokemon na minha testa? Você quer capturá-lo? Sério? Tudo bem. Vá em frente

sábado, 23 de julho de 2016

GOL DA ALEMANHA



Numa quadrinha minúscula - uns cinco metros de comprimento - improvisada na frente do portão principal do estádio do Pacaembu, linhas laterais e de fundo desenhadas imaginariamente, golzinhos móveis montados, dois garotinhos corriam atrás de uma bola murcha. Pelada disputadíssima, com dribles, carrinhos, caneladas, muita catimba e resmungos. 'Você só faz falta!'. 'E você só reclama'. Nenhum dos dois queria perder. Palmeiras x Corinthians? Santos x São Paulo? Nada. Era um clássico internacional, talvez mata-mata da Copa dos Campeões da Europa. Um dos garotos vestia a camisa do Milan; o outro, a do Paris Saint-Germain. As respeitadas escolas italiana e francesa duelando, cinco títulos mundiais em campo. 

Já no auditório do Museu do Futebol, abrigado no mesmo Pacaembu, quem deu o tom da conversa neste sábado, 23 de julho, foi o badalado e não menos poderoso futebol alemão (quatro conquistas mundiais), em duas mesas de debates que marcaram o lançamento, no Brasil, do livro "Gol da Alemanha" (título original 'Franz, Jürgen e Pep'), escrito pelo espanhol Axel Torres e pelo germânico André Schön. Na obra, os dois autores, amparados por refinada pesquisa, trocam impressões e conversam animadamente sobre as transformações vividas pelos clubes e pela Seleção da Alemanha nas últimas duas décadas, até a conquista da Copa do Mundo de 2014. "Prepare-se para uma viagem no tempo ao lado de Franz Beckenbauer, Gerd Müller, Jürgen Klinsmann, Thomas Tuchel, Ralf Rangnick, Jürgen Klopp, Pep Guardiola e muitos outros", anuncia a apresentação à edição brasileira.

A constatação de que esse renascimento deve-se fundamentalmente a uma mentalidade e um projeto que foram coletivamente desenhados e implementados não impede que "Gol da Alemanha" reconheça também que, em grande medida, o rencontro alemão com o sucesso e o protagonismo boleiro precisa ser creditado a um protagonista específico, figura-chave responsável pelas transformações: Klinsmann, ex-atacante do Bayern de Munique e da Seleção, treinador da Alemanha na Copa de 2006 e atualmente técnico dos Estados Unidos. "Ele quebrou paradigmas", afirmou o jornalista Gerd Wenzel, da ESPN/Brasil, em um das mesas realizadas no Museu. Wenzel lembrou que, quando foi contratado para treinar a seleção, em 2004, Klinsmann sofreu muitas críticas, porque havia outras boas opções no mercado. "O salto de qualidade dele foi ter se cercado de uma equipe altamente competente, na preparação física, de goleiros, abrindo ainda a possibilidade de adequar o jogo de acordo com o adversário. A partir dele, o técnico deixou de ser o todo-poderoso que tomava decisões sem consultar mais ninguém. Nascia ali o novo futebol alemão, de muita intensidade e trocas rápidas entre defesa e ataque, que não era mais só carrancudo ou mecânico e disciplinado", completou.  

O jornalista da ESPN/Brasil elogiou ainda a firme e convicta atuação de Klinsmann para vencer as resistências da torcida alemã a jogadores imigrantes que poderiam atuar pela Seleção. Não foi um processo suave nem tranquilo. Um choque de culturas explodiu. Os clubes não estavam inicialmente muito dispostos a aceitar a mistura, as torcidas reagiram de forma intensa contra a miscigenação. "Foi aí de novo que entrou o Klinsmann, brigando a todo instante contra essa mentalidade, dizendo que não era necessário apenas tolerar, o que é muito pouco, mas conviver com todas essas culturas e estilos no futebol, inclusive dentro de campo. Gradativamente, os estrangeiros foram futebolisticamente integrados", reforçou. Atualmente, o turco Özil, o tunisiano Khedira e o ganês Boateng são alguns dos destaques e ídolos da seleção alemã.     

Depois dos títulos mundiais de 1990 e da Eurocopa de 1996 (já visto muito mais como fruto da sorte do que do talento), sinais evidentes de que o futebol alemão havia parado no tempo e perdido o rumo surgiram com a desclassificação para a Croácia (derrota por 3 x 0) nas quartas-de-final do Mundial de 1998 e, principalmente, com o fiasco na Euro de 2000, quando foi eliminada já na primeira fase, tendo ficado em último lugar no grupo. "Até ali, estavam acomodados. Bem ou mal, ganhavam títulos, a moeda era forte, podiam comprar jogadores, os clubes não se preocupavam com as categorias de base. Com a desclassificação em 2000, a ficha caiu. Entre 2002 e 2014, foram construídos 52 centros de excelência na formação de novos atletas, diretamente ligados às escolas. A Alemanha tem atualmente 1.300 técnicos profissionais, atuando em tempo integral, trabalhando apenas com as jovens promessas. São mais de 25 mil clubes de futebol em funcionamento e 15 mil atletas, diversas categorias, registrados na federação. A premissa era clara: se houver um bom jogador perdido ou esquecido num vale ou nas montanhas, vamos encontrá-lo e formá-lo. Uma das exigências da Liga alemã, aliás, é o investimento em novos talentos", resgatou Leonardo Bertozzi, comentarista da ESPN/Brasil, durante o lançamento do livro. A média de público da Bundesliga, aliás, é a maior do mundo: quase 43 mil torcedores por jogo. 

Para João Paulo Medina, da Universidade do Futebol e que também participou do evento realizado no Museu, a mudança no futebol alemão aconteceu não apenas por conta de investimentos feitos em gestão, mas principalmente a partir da compreensão de que era preciso mudar o comportamento dos jogadores em campo. "Gestão não é apenas governança administrativa. mas também técnica, de estilo, como a gente deseja ver o time atuando. Hoje, países como a Islândia, com 300 mil habitantes, fazem um trabalho de preparação técnica muito mais qualificado do que aquele que é feito no Brasil", comparou. Para ele, não se trata de copiar e transportar para cá o chamado modelo de sucesso alemão, mas de buscar inspirações nas lições que os germânicos podem nos oferecer, em direção às nossas mudanças singulares.  Gustavo Vieira, gerente de futebol do São Paulo, completou o raciocínio destacando que os brasileiros ainda nos apegamos a um sentimento de identidade muito incentivado durante a ditadura militar, um "somos os melhores e sabemos fazer" repetido à exaustão, o que acaba por consolidar a concepção de que seríamos imbatíveis, eternos melhores do mundo, por inércia, e que as dificuldades atualmente enfrentadas seriam apenas momentâneas e serão naturalmente superadas. "Não é verdade. Precisamos construir objetivos e dizer o que queremos do futebol brasileiro no longo prazo, para cuidar e formar tecnicamente os talentos que temos e diminuir as distâncias que hoje nos separam dos países europeus". 

No livro "Gol da Alemanha", a tragédia do Mineirão, o histórico 7 x 1, é narrada em pouco mais de uma página. Nada além disso. "Fico constrangido em dizer isso, mas, para os germânicos, passou", reconheceu Wenzel. Segundo ele, a Alemanha já se debruça a analisar desafios que surgiram após a conquista do quarto título mundial, como o ritmo dos treinamentos e a intensidade com que passou a atuar a seleção (seriam responsáveis por frequentes contusões musculares dos boleiros?), além de procurar alternativas para substituir jogadores que estão se aposentando. "Estão mirando o futuro. Não é mais a Alemanha de 2014", concluiu.     

quinta-feira, 21 de julho de 2016

LÁ SE VAI JESUS



Um toque maroto e sutil de calcanhar, para deixar os zagueiros perdidos e Lucas Barrios na cara do gol. Oito minutos de jogo. Um a zero Palmeiras. Aos vinte e oito, escorou com categoria um cruzamento da esquerda. Verdão dois a zero. Quatro minutos depois, entrou rasgando pelo bico da área direita. Deixou o zagueiro sentado no gramado. O pé de apoio faltou, quase se desequilibrou. Até poderia ter cavado o pênalti. Sustentou. Não caiu. Direita, para a linha de fundo; não, esquerda, puxando de letra e buscando o ângulo do chute. Uma tacada seca de sinuca, rasteira, cruzada, que morreu no pé da trave direita do goleiro Fabio, estendido, atônito e sem reação. Trinta e dois minutos. Um, dois, três a zero Palestra e ponto de exclamação!, comemoraria o fanático alviverde Roberto Avallone, em êxtase catártico. Naquela noite de 26 de agosto de 2015, no Mineirão da tragédia dos 7 x 1, quando o Palmeiras eliminou o Cruzeiro nas oitavas-de-final da Copa do Brasil, Gabriel Jesus, credenciais boleiras já conhecidas, mas ainda promessa, passou a ser idolatrado e louvado pelos cânticos da galera palmeirense. Glória. Aleluia. Menos de um ano depois, titular absoluto e destaque do time, atacante arisco e habilidoso, já na condição de insubstituível, foi convocado para a Seleção olímpica. No time leve e ofensivo que o técnico Rogério Micale está montando, deve jogar ao lado de Neymar e de Gabriel, o xará do Santos. Baita ataque. Cabe até na principal. Oxalá (Jesus é ecumênico) dê certo. A água transformou-se em vinho, dos bons. E o perfume da bebida encorpada chegou ao Velho Continente. Deixai vir a mim os clubes europeus. A Juventus, da Itália, foi a primeira a flertar com o garoto. Turim, cidade moderna, passeio à margem do Rio Pó, a ligação com os babos e com as mammas, pátria de Andrea Pirlo e Del Piero, a possibilidade de jogar a Champions League com Buffon, Khedira, Daniel Alves e Dybala, dois títulos continentais, dois mundiais. Gabriel Jesus chegou a acionar os assessores para que o matriculassem num bom curso de italiano, até porque a segunda investida forte também veio da terra da Bota. A Inter de Milão sondou os empresários do boleiro. Enquanto a boataria crescia, o moleque, bem assessorado, o vírus do midia training já devidamente inoculado no sangue, tratava de despistar e de fazer juras de amor ao Palmeiras, sempre com sorriso no rosto, garantindo que sua intenção era cumprir o contrato até o final de 2019. 'O Palmeiras é minha casa, minha verdade, minha vida'. Bem-aventurados os que permanecem, porque deles é o reino da Academia. Mas... as cruzadas pelo futebol do brasileiro atravessaram a fronteira, saindo do berço do cristianismo para desembarcar na Espanha não menos fervorosamente católica. Perigo à vista. Catalunha versus a Capital. Guerra Civil Espanhola. O Barcelona despachou olheiros para acompanhar jogos do Palmeiras no Parque da Velha e Boa Aliança. Negócio fechado. A tentação é grande. Afasta esse cálice. Vale a pena ser reserva de luxo de Neymar, Messi e Suárez? O contrato não chegou. Esfriou. O Real Madrid, atual campeão europeu, deu o bote e decidiu usar a influência de Ronaldo Nazário, sempre próximo do clube merengue e conselheiro de Gabriel Jesus, para tentar seduzir o atacante. Os vendilhões do Templo não sossegaram. A Arca de Noé cruzou o oceano. Foi parar na Grande Ilha. Na Granja Comari, no intervalo de um dos treinos da olímpica, o celular do garoto (ainda) do Verdão tocou. Inglaterra. Manchester. Do outro lado da linha, um sotaque meio catalão, meio espanhol, um tanto alemão bávaro, já com pitadas de inglês. Pep Guardiola. O deus dos professores-treineiros. Quinze minutos. 'Sim, professor. Entendo, professor. Claro, professor. Puxa, imensa alegria. Quem não quer jogar no seu time, professor? Pode contar comigo'. Fechado. Trinta e dois milhões de euros, cento e quinze milhões de reais. Pai Nosso. Salve, Rainha. Ave, Maria. É muita grana. O Palmeiras ficaria com cerca de dez milhões de euros (30% dos direitos econômicos). Mas ainda tentaria avançar e abocanhar mais uma bolada do percentual dos empresários e investidores (porque jogador de futebol é fatiado em vários filetes). Agora vai. Negócio fechado. Nada. Ainda não. Não cobiçarás o jogador pretendido pelo próximo? Esquece. José Mourinho, o agora todo-poderoso treinador do outro gigante de Manchester, o United, fez birra e resolveu deixar explodir a rivalidade dos infernos (perdão, Jesus) vivida com Guardiola nos tempos de Barça x Real. Entrou no circuito e exigiu a contratação de Gabriel. A oferta: trinta e cinco milhões de euros. Milagre da multiplicação da grana. Duelo de titãs. Anjos e demônios. Virou questão de honra. De camarote, o Palmeiras se delicia com o leilão. Espera chegar aos quarenta milhões de euros. Negócio. Não roubarás. Por tudo que é sagrado. À noite, na Granja, Gabriel Jesus rezou. Demorou a dormir. O sono foi agitado. Teve visões. Esteve no paraíso. Jogando futebol, claro. Subiu o túnel e entrou em campo com a nove listrada, clássica, preta e branca. Juventus. Quando o aquecimento começou, vestia uma listrada. Azul e preta, belíssima, sem número. Internazionale. No primeiro toque na bola, saída de jogo, viu-se com a famosíssima, imponente e respeitada grená e azul. Barcelona. Ao tentar o drible, sofreu falta. Preparou-se para a cobrança. Olhou para o telão. Ajeitou o uniforme todo branco, liso. Real Madrid. Mirou o ângulo. Camisa azul celeste. Manchester City. Com o manto vermelho sangue vivo do Manchester United, viu a bola passar por cima da barreira, fazendo exatamente a curva e o caminho que tinha imaginado. Acordou entusiasmado, mas sem saber se a pelota tinha entrado. 'Será que foi gol?'. Sentou na cama. Aproveitou para tomar um gole d'água. Garganta seca. 'No meu paraíso não tinha camisa verde'. Fez o sinal da cruz. Voltou a dormir.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A MALDITA JANELA DE TRANSFERÊNCIAS



Há quinze anos, para não ir muito longe, se algum boleiro ou boleira lhe dissesse 'não demora muito e vai chegar o dia em que o time para quem você torce vai começar a disputa do Brasileirão com uma escalação e terminar o campeonato com outra, muito diferente da original', você encararia esse maluco ou maluca com expressão blasé, descrédito total, como se conversasse com alguém completamente desconectado da realidade. 'Que doideira é essa? Tomou chá de cogumelo. Só pode'. Diante da insistência convicta do interlocutor, você anotaria num pedacinho de papel o nome do seu psiquiatra e recomendaria que o profissional fosse procurado com a máxima urgência. 'Você precisa de ajuda médica. Está parecendo um daqueles profetas barbudos das seitas religiosas que pregavam nos desertos nos primeiros tempos do cristianismo, tentando adivinhar o futuro'. (sim, ainda estou tocado pela leitura de 'O Reino', de Emmanuel Carrere). Em tom desafiador, gostinho de revanche no ar e sorriso de canto de boca, esse amigo ou amiga aproveitou um encontro na semana passada para mandar o seguinte petardo: 'e aí, você já crava que o Palmeiras será o campeão brasileiro de 2016? Bom elenco, técnico competente, quase imbatível em casa, fazendo pontos fora, quase metade da disputa, três de vantagem para o segundo colocado. Crava? Banca ao menos que o Verdão estará entre os quatro classificados para a Libertadores de 2017?'. Segundos de silêncio depois, que pareceram eternidade, quase pedindo ajuda aos universitários, você, engolindo seco, engasgando, lembra da tal profecia de que tanto desdenhou e toma posição no ponto mais garboso e elegante do muro. 'É, veja bem, não dá para arriscar, é provável, mas é difícil, hoje diria que sim, tudo leva a crer, é um dos favoritos, mas... tudo vai depender mesmo da janela".

Maldita janela de transferências.

No último Brasileirão disputado no sistema mata-mata (pontos corridos é muito mais legal, mas essa é outra conversinha), em 2002, o time-base do Santos, campeão daquele ano, foi praticamente o mesmo, consideradas as tradicionais turbulências do futebol (contusões, cartões amarelos, expulsões, opções do treinador): Fabio Costa, Maurinho, Alex, André Luiz e Leo; Paulo Almeida, Renato, Elano e Diego; Robinho e Alberto. Caiu um cisco aqui no meu olho, que está cheio d'água. Choque de realidade: logo nas primeiras rodadas do campeonato deste ano, 2016, o Peixe recebeu presentão da CBF (que se esmera em atrapalhar o próprio certame que organiza) e precisou se virar nos trinta para tentar substituir Ricardo Oliveira (depois se machucaria), Lucas Lima e Gabriel, convocados para a Seleção Brasileira humilhada com a desclassificação na primeira fase na Copa América Centenário. Agora por conta da Olimpíada, em mais uma jogada de mestre da Confederação Brasileira de Falcatruas/Fracassos (pode escolher), o Santos perde novamente três atletas fundamentais (Zeca e Tiago Maia, além, de novo, de Gabriel) para suas pretensões no Brasileiro (Palmeiras, Grêmio, São Paulo, Inter, Atlético Mineiro e Vasco também foram duramente prejudicados). Para além das barbaridades patrocinadas pela entidade máxima do nosso futebol, que desfalca os times ao bel-prazer do esdrúxulo calendário que 'organiza', os clubes sofrem ainda com as úlceras crônicas provocadas pela indigesta janela.

Maldita janela de transferências.

Éramos felizes e não sabíamos quando nossos medos se concentravam nos poderosos times europeus.Barcelona, Real Madrid, Manchester United, Bayern de Munique, Milan, Juventus... Seduzidos pelos euros e pelas promessas de se destacar em centros mais competitivos, nossos boleiros faziam a mesma viagem dos produtos primários durante a era da colonização ou das commodities que alavancaram nosso espasmo de desenvolvimento nos últimos anos, saindo das chamadas periferias e desembarcando nos países ditos mais modernos e desenvolvidos, em mais uma faceta da novíssima divisão internacional do trabalho e da globalização assimétrica que cria abismos entre nações. Os vilões se multiplicaram. Passamos a temer (primeiramente, ForaTemer!) os mercados japonês, russo, ucraniano a árabe. Mais recentemente, geopolítica e economia mundial novamente em cena, a liga estadunidense e as estratosféricas ofertas dos clubes chineses nos dão calafrios. Fatiados em direitos econômicos que pertencem ao empresário x, ao fundo de investimento y, ao banco parceiro z, as jovens promessas voam cada vez mais cedo. Mergulhados em dívidas e marcados também por administrações desastrosas, não são poucas as ocasiões em que clubes nacionais aceitam merrecas que lhe são oferecidas, para desafogar o caixa e cuidar das dívidas imediatas. Em outras negociações, é mesmo difícil resistir aos caminhões com milhões de euros que estacionam nas depauperadas contas bancárias dos nossos times. É muita grana. Negócio. Aceita que dói menos.

Maldita janela de transferências.

Sem muita margem de manobra ou capacidade de reação, o Santos vê serem assediadas suas principais estrelas: Lucas Lima, Ricardo Oliveira, Gabriel, Zeca, Tiago Maia e até Gustavo Henrique. O técnico Dorival Junior esbravejou. Com razão. Tem meu apoio. Após a eliminação na Libertadores, o São Paulo já perdeu Calleri, Paulo Henrique Ganso, Alan Kardec e, provavelmente, Rodrigo Caio. Como lidar com o desmanche? Gabriel Jesus, principal revelação palmeirense em muitos anos, atual artilheiro do Brasileirão (dez gols), é disputado a tapa - e euros - por Real, Barça e Inter de Milão. Mas vamos ficar preocupados com a saída de um único jogador? Bem, diga isso a um palestrino. Prepare-se para ouvir um rosário de palavrões cabeludos. Em junho, o zagueiro Felipe zarpou do Corinthians para o Porto. Elias é sempre citado como possível negociável. Nilton, do Inter, foi para o Japão. Luan, do Grêmio, Lucas Pratto, do Galo, Guerrero, do Flamengo aparecem invariavelmente nas casas de apostas dos que podem ainda dizer adeus ao Brasileirão em curso. A lista é interminável. A Olimpíada vai funcionar como mas uma vitrine para os jovens boleiros. Empresários e investidores já distribuem pernadas e cotoveladas na concentração da Seleção.

Maldita janela de transferências.

O que resta aos torcedores é dividir suas torcidas em duas frentes: pelas vitórias do time no campeonato... e para que o tempo voe e a janela, esse portal nada colorido de angústias e pesadelos, seja rapidamente fechada. Como a gente torce. Contamos os dias, riscando o calendário. Respiramos aliviados e dizemos 'ufa, fechou a chinesa, menos um tormento'. Temos receio de acompanhar o noticiário do nosso time. 'Será que saiu alguém?'. Disparamos zapzaps para amigos boleiros bem informados. 'Alguma novidade?'. Suamos frio quando pisca no celular a informação urgente e de última hora sobre futebol. 'Leio ou não? E se for má notícia?'. Otimistas (melhor seria dizer românticos), desejamos também mudanças no calendário, o fortalecimento das finanças dos clubes (um dia vão entender de fato que o patrimônio maior são seus torcedores), verbas publicitárias mais condizentes com o potencial de mercado e a histórias e as tradições de nossos times, relações com transmissões de TV menos promíscuas e também mais vantajosas para as equipes, medidas que ao menos ajudariam a criar mais obstáculos e dificuldades para essa debandada boleira. A gente entende as planilhas, os balancetes financeiros, os conselhos fiscais. Mas o torcedor, esse pobre coitado movido por paixões e entregas, quer mesmo é ver seus ídolos em campo, vestindo a camisa do seu clube, comemorando gols. Com a certeza de que poderá vê-los escalados na rodada seguinte. E na outra, E na terceira, Até o final do campeonato.

Maldita janela de transferências.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

PERIPÉCIAS EM GRAMADO

05 de julho

Quando a ordem é tirar os pezinhos do chão e 'tripulação, decolagem autorizada' para viajar a sei lá quantos pés de altitude, esse papinho de 'a viagem até que foi boa' nunca me convenceu. Em uma hora e meia, o avião furou três zonas de turbulência. Chacoalhou, deu estranhas rabeadas. Acende e apaga o sinal de afivelar cinto de segurança. Tanto faz, não tiro o cinto nem levanto da poltrona. Nem sob decreto de condução coercitiva do juiz de Curitiba. Dos casarões portugueses e das ruas de pedras feitas para equilibristas, em Paraty, desembarcamos na Gramado das casinhas alemãs com telhados inclinados. Foi tarde de dizer 'olá, chegamos, muito prazer. Encantados'. Primeiro contato. Expedição desbravadora pelos quase quatro quilômetros da avenida principal, a Borges de Medeiros. Parada para poses e fotos no Palácio onde acontece o tradicional festival de cinema da cidade. I am the king of the world. Tudo bem, está valendo, embora esse tenha conquistado o Oscar. Every night in my dreams. Na Rua Coberta, também ponto badalado da cidade, um chocolate quente de lamber os beiços e fazer tilintar a alma, daqueles de sorver bem devagarinho e de deixar em êxtase boleiros do Inter e do Grêmio antes de final do gauchão. A catedral de São Pedro, todinha construída com blocos retilíneos de basalto, é arquitetonicamente belíssima. Palavra de um ateu que termina ainda hoje a leitura de 'O Reino', romance do francês Emmanuel Carrere que narra as origens do cristianismo e os entreveros e os bem bolados entre Pedro, Paulo, Lucas, João. O teu jeitinho não nega, turista, porque és turista no andar, falar, olhar, perguntar. Os turistas paulistanos ainda tivemos tempo de quase cair numa pegadinha. Sabe aquela das facas ginsu, 'e não é só isso'? Os mais velhos vão se lembrar. Pois então, nos ofereceram dois ingressos para o Snowland, uma das atrações turísticas mais concorridas daqui, patinação e tobogã no gelo, em troca de 'meia hora para ouvir sobre um novo empreendimento nosso'. Desconfia, cara, desconfia. Muita moleza. Óbvio, o desejo não inicialmente revelado era nos vender frações de um super, mega, blaster e incrível novo resort que será inaugurado em breve, para passarmos todas as nossas férias, até o fim dos tempos. Uns dez mil reais para começar a brincadeira. Atiraram no alvo errado - um ariano odiado pelo sistema porque nem cartão de crédito tem, uma escorpiana que sente de longe o cheiro de roubada e duas crianças que nos pediam 'vamos sair daqui e continuar nosso passeio' com os olhos. Antes que a tal apresentação pudesse chegar aos quinze minutos, interrompi a mocinha, muito simpática, agradecendo educadamente a tentativa. 'Não é o nosso perfil. Vamos parar por aqui'. Ela ficou aparvalhada, sem saber o que dizer. 'Está tudo bem, você está fazendo o seu trabalho. Apenas somos as pessoas erradas'. Depois de consultar o supervisor, voltou muito constrangida e decepcionada e gaguejou que poderíamos ficar com os ingressos, como cortesia. Era só assinar um papelzinho. Nada de assinaturas. Nem que o Janot tussa. Grato. Fica para a próxima. Jantamos de nos entupir num rodízio de pizzas. Quando saímos do hotel, quatro da tarde, o termômetro marcava vinte graus. Um blusão e nada mais. Ousei fazer troça de um amigo sulista que dissera 'te prepara para conhecer o frio'. Agora, nove da noite, já estamos na casa dos quinze graus. A massa de ar polar deve chegar durante a madrugada. Previsões sugerem entre quatro e seis graus até o final da semana. Quem disse que reclamo? Quem vem a Gramado quer ver geada. Você quer brincar na neve? Tudo bem. Daniel e Luiza esperam mais um episódio do Master Chef. De pijamas. Debaixo das cobertas. O quarto é quentinho. Por via das dúvidas, o aquecedor está ao alcance das mãos. É só dar um clique. Vai que...


06 de julho

'Pai, pai, olha, já está saindo fumaça da boca quando a gente respira!'. O tempo virou. Choveu durante a madrugada. Céu cinzento. Friaca. Prenúncio daquele friozão que meu amigo sulista tinha cantado em verso e prosa. Malhas, gorros, luvas, cachecóis, galochas, jaquetas e botas desfilam no café da manhã. Éramos todos branquinhos e branquinhas naquele nababesco salão, banquete de pães, cafés e doces. Não fosse a presença feminina, diria que era uma imagem digna de foto de posse do ministério do Vice Vigarista. Adoro de paixão a democracia racial brasileira. Cotas para quê? Para quem? Façam por merecer. O Brasil, aliás, continua firme em sua disposição de reparar injustiças históricas. Li logo cedinho que o Usurpador da República indicou um general da reserva que defende a ditadura para a presidência da Funai. A demarcação das terras indígenas estará agora submetida à segurança nacional, sob a batuta de um viúvo dos anos de chumbo. Agora vai. Todo dia voltará a ser dia de índio. E nós, aqui em Gramado, vamos fazer o que nesse dia de chuva? Tínhamos programado passeios de ônibus, paradas em vários pontos, mas o aguaceiro é inimigo dessas andanças abertas. Melhor buscar atração em lugar coberto. Resolvemos vestir as fantasias de Frozen e investir em aventuras em Snowland, o parque da neve. Chegar lá foi fácil. Mas, claro, todos os turistas de Gramado tiveram a mesmíssima brilhante ideia. Passamos a perambular por aquela que é verdadeiro símbolo nacional, instituição já tombada pelo nosso patrimônio histórico, celebridade que desafia ao limite nossa paciência... com vocês, a fila. As filas. Amigas e amigos, respondam com honestidade: o que seria de nossas vidas se não fossem as filas? Os portugueses organizavam filas para fazer escambo com os índios. Até o futebol, manifestação de nossa identidade, apropriou-se da expressão: ficar na fila é um tormento para qualquer torcedor. Significa seca de títulos. Sei bem o que é isso. Fiquei longos dezoito anos numa dessas. Vá lá, não tem um gostinho especial buscar posição no fim de uma fila, andando bem devagarinho, esperando chegar a vez de ser atendido? Não é estranho chegar num banco, num restaurante, num parque e perceber que está tranquilo e favorável, é só entrar? Como assim? Não tem fila? A gente inventa uma. Por favor, encostem aqui na parede, um atrás do outro. Organizadamente. Vida de gado. Povo marcado. Povo feliz. Snowland achou por bem levar ao extremo máximo essa percepção de que fila é uma delícia. O parque era uma fila só - ou uma infinidade de filas. Anda dois passos. Para. Espera. Mais três passos. Leva ombrada. Leva mochilada. Leva pisão no pé. Segue em frente. Tem gente que é vip, mais igual que os outros, e pula lá para os primeiros lugares da fila. A senhora reclama que a porcaria não anda. O marido tenta consolar e diz que até que está andando bem. Tem início uma DR. 'Você nunca concorda comigo'. Uma fila abala casamentos. A criança chora. A mãe berra, histérica. Pede paciência. Tem gente que guarda lugar para só mais uns trinta amigos. E a pessoa que estava bem atrás deles volta trinta casinhas no tabuleiro da fila. Tem neguinho à espreita, pronto para dar o bote e tentar furar a fila. Quando achávamos que estava acabando, desembarcávamos em outra fila. Era uma fila de filas. Paciência. Foi o nosso mantra. Depois de umas duas horas, conseguimos finalmente vestir as roupas quentinhas, as luvas e as botas para entrar - mais uma fila, claro - na montanha de neve. Com aquelas jaquetas laranjas e os capacetes, parecíamos pilotos da Aliança Rebelde de Star Wars seguindo em fila não para pegar os aviões e enfrentar a Estrela da Morte do Império, mas para apanhar nossas boias e deslizar deliciosamente por um enorme tobogã gelado. As risadas e as caras de realização da Luiza e do Daniel nos deram a certeza de que as filas tinham sido apenas detalhe tão pequeno de uma tarde que eles aproveitaram de montão. Alegria, alegria. Fizemos ainda guerra de neve, arriscamos tirar as luvas para testar resistência ao frio (com seis graus negativos, os dedos começavam a doer e enrijecer em segundos), demos boas risadas com os narizes vermelhos com o vento gelado, brincamos de afundar os pés no gelo e marcar as pegadas, pulamos e cantamos para esquentar os corpos. Ainda assim, decidimos que só estaríamos aquecidos de novo e de verdade com um bom chocolate quente. Motorista, por favor, toca para o Museu do Chocolate. Na entrada, absurdo dos absurdos, não tinha fila. Tudo bem, vai sem mesmo. Para compensar o tanto que já penamos. Nossa cota diária de filas já tinha sido cumprida (e comprida). O lugar é espetacular, muito divertido. Uma perdição para um chocólatra compulsivo. Praticamente todas as peças do museu - animais da Amazônia, gôndolas de Veneza, muralha da China, pirâmides do Egito - são feitas do mais puro chocolate. Na última sala, degustação à vontade. E chocolate quente. Se tivesse fila, entrava nela de novo. Só para saborear mais chocolate. Não quero outra vida. Uma querida amiga sempre diz que, a cada três meses de trabalho, deveríamos ter o direito de desfrutar de trinta dias de férias. Assinado. Revogam-se todas as disposições em contrário. Apesar das filas.


7 de julho

Não há semáforos em Gramado. Nos principais cruzamentos, o trânsito é distribuído e organizado por rotatórias. Regrado por bom senso. Funciona, acreditem. Sem buzinas. Nada de estresse. Basta você colocar o pé na rua, mesmo fora da faixa de segurança, para que os motoristas imediatamente freiem e garantam sua travessia. Pedestre tem sempre a preferência. Incrível, ninguém te xinga. A gente acena e agradece, por instinto. Eles acham estranho. Por que agradecer? Seria bom que os paulistanos afoitos e irascíveis fizéssemos estágio de direção por aqui. Um workshop rápido já faria diferença. A delegacia da cidade não funciona nos finais de semana e nos feriados. Nesses dias de recesso, se houver ocorrência, o delegado deve ser acionado em casa, por telefone. Está lá a dona autoridade tranquilona, poltrona confortável, quando vibra o celular no bolso. 'Alô, seu delega, perdoe o transtorno, sei que é folga merecida de vossa senhoria, mas é o seguinte... a casa caiu'. Gramado ficou três anos - entre 2010 e 2012 - sem registrar assaltos ou assassinatos. 'Depois a coisa piorou, com a chegada do tráfico de drogas. Mas ainda é bem seguro', conta nosso guia. Hoje foi dia de Raízes, passeio pelas comunidades italianas que vivem na área rural da serra, interior da cidade. O sangue Marconi da família comemorou. Aquele abraço caloroso do nonno, tapas nas costas, beijo estalado da nonna, 'como vai você, guri, prazer recebê-lo na nossa casa'. Com as falas sempre eufóricas e entusiasmadas, minha nossa, sotaques ainda misturados, dio mio, as mãos dançando no ar, gestos a definir entonações e ritmos, ma que belo, nos ensinaram como funciona o moinho d'água usado para amassar milho, trigo e arroz. 'Farinha é de milho seco. Fubá é de milho molhado'. Também revelaram os segredos - nem todos - da arte ancestral de processar a erva mate para fazer chimarrão. Daniel adorou a bebida. 'Parece chá de hortelã no começo, depois fica amargo. Mexi sem querer na bombinha e entrou farelinho da folha no canudo. Estão grudados nos meus dentes'. Luiza foi mais exigente. 'É muito amargo. Não gostei'. Sentamos para ouvir a nonna Maristela narrar deliciosamente as aventuras e peripécias dos bisavós dela que chegaram ao sul do país para formar os primeiros vilarejos italianos. A agricultura, as roupas, as cantorias, os tropeiros, a alimentação, os casamentos e as festas. Ela nos apresentou o papel higiênico usado pelos avós: uma bela e formosa espiga de milho, já sem os grãos. 'E funcionava que era uma beleza, viu! Tudo limpinho! Era o Neve deles'. Com galhardia e lucidez, chamou a atenção de um garotinho. 'Mamma mia, eu aqui contando todas essas histórias e você aí com fone no ouvido e jogando no celular?'. Pois é. Eles não têm aquela reunião urgente de trabalho, o e-mail que precisa ser respondido agora, só mais uma espiadinha no face, as tantas horas no trânsito infernal e a conferência por skype, demandas que tanto nos orgulham e longe das quais nos sentimos vazios, perdidos e culpados. Improdutivos. É evidente que eles também viram-se obrigados a aceitar imposições da dita modernidade. O senhorzinho simpático que nos ofereceu o chimarrão não tem mais autorização para produzir o chá, apenas para empacotá-lo. O forno dele é artesanal, de madeira, não mais aceito pelos controles de qualidade. 'Só podem ser de inox', diz, resignado. Cadeias produtivas, pressões do sistema. Não vivem isolados, em guetos. Ainda assim, o tempo deles passa mais devagar. Paz de espírito. Transpiram felicidade. Olham nos olhos e conversam. Firmeza e sinceridade nas palavras. Como se fôssemos grandes e antigos amigos. Na casa da nonna Zulmira tem queijo, salame, café e pão que acabou de sair do forno à lenha. Tem cantoria e dança. 'Mérica, Mérica, Mérica, cossa saralos ista Mérica'. Para terminar com a festa do 'quando se mangia la bela polenta'. Sol lindo, céu azul. Sem nuvens. Mas o vento é gelado, daqueles de fazer o pinguim não querer sair da casa que tem aquecedor e de obrigar a mamãe urso polar a colocar gorro e luvas no filhote. Fiz questão de ver Alemanha e França numa cervejaria alemã. Achei que teríamos comemorações e muitos brindes com as canecas de cerveja. Quem sabe outro sete a um, dois anos depois. Mas o juiz em dia de Marcio Rezende de Freitas (eita pênalti mandrake) e um Neuer em dia de Dênis (saiu do gol caçando borboletas) acabaram estragando a festa. Marselhesa na final. Só me resta tomar mais um chocolate quente.


8 de julho

A tocha olímpica passou por Gramado. A cidade travou. Várias ruas tiveram os sentidos de direção alterados. Outras foram totalmente bloqueadas. Funcionários da CET local confusos. Engarrafamento nas avenidas principais. Helicópteros de televisão e segurança sobrevoando o Centro. Estudantes aglomerados cantando nas esquinas. O garçom chegou atrasado para começar o turno de trabalho no restaurante. O taxista precisou se virar nos trinta e dar uma imensa volta para deixar um passageiro perto do Palácio do Cinema. Moradores reclamaram da confusão. Faixas e balões verdes e amarelos enfeitavam as janelas das casas e dos hoteis. Há dois anos, seria tudo bem. Hoje deu ruim, aperto no peito. Instintos mais primitivos. Lembro das manifestações golpistas na avenida Paulista. Do pato. Dos cartazes pedindo intervenção militar. Das selfies sorridentes com a tropa de choque da Polícia Militar. Da proposta de aposentadoria aos 70 anos. Da aberração da jornada de trabalho de oitenta horas semanais. Caminho calado. Bateu tristeza. Voltei a sorrir só quando chegamos a uma ruazinha que dá acesso ao Lago Negro, onde um garoto e uma garota distribuíam brindes dos patrocinadores da festa da tocha. Correram até a gente, aliviados. Nos encheram de bugigangas. 'Levem, levem. Por favor. Mandaram a gente entregar tudo. Mas fecharam as ruas por perto. Ninguém passa por aqui. Vocês são os primeiros'. Rimos também. Pegamos os apetrechos. Desejamos boa sorte. Seguimos. Os vinte minutos de pedalinho no Lago serviram como academia ao ar livre, até porque Daniel, nada competitivo, resolveu apostar corrida. Os músculos das pernas estão até agora doloridos. No ônibus turístico vermelho, dois andares, nos sentimos em Londres. Da janela, quase dava para colher laranjas nas árvores. No Mini Mundo, parada obrigatória em Gramado, nos sentimos como Gullivers em Lilliput. Aeroportos, pontes, navios, igrejas, vilarejos, casas e prédios em perfeitas e minuciosas réplicas miniaturas. Vinte e quatro vezes menores que os objetos originais. Tinha até ciclofaixa minúscula, pintada em berrante cor vermelha. Desconfio que o pequeno maldito prefeito desse micro lugar seja um desprezível petralha. É uma máfia. Impressionante, estão em todos os lugares. Atormentam até em miniatura. Vou sugerir que a musa Janaína entre com pedido de impeachment contra esse figurinha também. Apesar do PT, o passeio é obrigatório. Diversão certa. Almoçamos numa deliciosa e aconchegante cantina italiana. Visitamos o Mundo do Chocolate (diferente do Museu do Chocolate), que narra a história do cacau, da bebida dos deuses que alimentava imperadores e do doce cremoso e sem igual que embala minhas leituras nas madrugadas desde os tempos dos maias e dos astecas. Elementar, pausa para mais um chocolate quente. Esplendoroso. No Museu de Cera, já no final da tarde, espanto e encanto. Cento e dez bonecos distribuídos por salas temáticas - alguns, vagas lembranças dos personagens que representam; outros são perfeitos. Com tanta gente especial e importante reunida, aproveitei para ter um teretetê ao pé do ouvido com alguns deles. Papo curto e reto, para não atrapalhar a fila e os outros visitantes. Perguntei ao Marlon Brando/Vito Corleone, logo na primeira sala, se ele já tinha ouvido falar em Eduardo Cunha e Michel Temer. Para sir. Paul, dos quatro de Liverpool, um singelo aceno e um let it be. Bob Marley perguntou do nosso Santos. Indiana Jones/Harrison Ford, quando criança eu sonhava ser arqueólogo! Abraço apertado para o Han Solo. Com Muhammad Ali, a conversa foi séria. Jovens negros assassinados por policiais brancos nos Estados Unidos. Neymar, deixa de mimimi e joga bola também na Seleção. Entende, Pelé? Fica, Messi! Passei reto por Cristiano Ronaldo. Harry Potter, mestre Dumbledore tinha razão. São tempos obscuros. Dilma, minha querida, seu governo é péssimo. Mas você é a presidenta democraticamente eleita. Cinquenta e quatro milhões de votos. O resto é golpe. Cínico e hipócrita. Não há, aliás, boneco do Vice Vigarista. Fora, Temer! ET, te ajudo a ligar para sua casa. Ao mestre Yoda, desejei que a força esteja sempre com ele. Mandei um grunhido para o Chewbacca. Com a rainha Elizabeth foi tenso também. Que porcaria os ingleses fizeram na semana passada! Ela ouviu calada. Sem reação. Parece ter concordado. O último ambiente simula o salão oval da Casa Branca. É o momento da foto oficial, ao lado de Barack Obama, tendo a mesa presidencial como cenário. A imagem só pode ser registrada pelo fotógrafo do Museu, para depois ser comprada pelos visitantes. Cada família passava uns cinco minutos ali, clicada em várias poses. Os pais sempre sentados na cadeira do Obama, mães, filhos e filhas atrás, em pé. Quando chegou a nossa vez, resolvemos subverter a ordem e quebrar o protocolo. Combinamos que Elisa seria a presidenta. Eu, Daniel e Luiza ficaríamos ao lado dela. Assumimos nossos lugares. E deixamos o fotógrafo completamente desconcertado. Ele ainda tentou insistir. 'Mãe, o pai senta aí'. Elisa respondeu de bate-pronto. 'No nosso país, a presidenta é mulher'. O cara, com muita má vontade, foi ligeirinho. Só tirou duas fotos e nos dispensou. Devem ter saído tremidas. Borradas. Quem sabe até queimadas. Não importa. Nem quisemos ver. O que importa e que está reverberando até agora no salão oval é que, no Brasil, a presidenta é uma mulher. Até o Obama sabe disso. Ele riu junto com a gente. Discretamente, mas riu. Deu uma piscadela. Fez sinal de positivo. E disse, bem baixinho: 'sim, vocês podem'.


9 de julho

No livro 'Vozes de Tchernóbil', a escritora bielorussa Svetlana Aleksiévitch conta que os animais da região foram os primeiros a perceber a presença da radiação no ambiente, depois do acidente na usina nuclear. As abelhas ficaram sete dias sem sair das colmeias. Os pássaros silenciaram, deixaram de voar. Foram os bichos que alertaram os moradores dos vilarejos próximos à usina sobre os riscos e os perigos que estavam todos vivendo. Hoje, em Gramado, resolvemos enfrentar uma chuva ranheta e insistente e conhecer o zoológico da cidade, que abriga apenas espécies da fauna brasileira. Devidamente paramentados - agasalhos e capas, guarda-chuvas -, achamos que todos os bichos estariam festivamente à nossa disposição, para nos receber com confetes, serpentinas e fanfarras, agradecendo nossa presença e dizendo 'que bom que vieram, tchê'. Não foi bem assim. Encontramos muitos animais - onça, jaguatirica, macacos, jacaré, quatis, capivaras - escondidos e abrigados em tocas e cavernas, protegendo-se da chuva e buscando o quentinho e o aconchego de suas casas. Estavam a nos dizer - é tempo de silêncio e de descanso; voltem para o hotel e aprendam a aproveitar o valor e a delícia do fazer nada. A natureza é extraordinariamente inteligente. Arrogantes e soberbos que somos, achamos que podemos controlá-la, embora ela nos mostre cotidianamente que a relação é exatamente contrária. Tolos que somos, quem sabe até aceitemos trabalhar doze horas por dia, até os setenta anos, para garantir eficiência e produtividade. E ainda achamos que merecemos ser chamados de Homo sapiens.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

HEROICOS PORTUGUESES

Não foi uma Eurocopa de lamber os beiços nem de encher os olhos de quem ainda se delicia com as pinceladas e rabiscadas artísticas do futebol. Inchaços políticos - 24 participantes, contra 16 na última edição, em 2012, na Polônia/Ucrânia - nos brindaram com uma primeira fase em que garantir o resultado e se cacifar como até um dos quatro melhores terceiros colocados acabou sendo o objetivo de muitas seleções. Jogaram com o regulamento debaixo do braço, como se diz no jargão da bola. Pragmaticamente corretíssimas, travaram as batalhas com as armas e os barões assinalados, as normas que estavam combinadas. Segue o jogo.
Que foi não raro ranheta, truncado, arrastado, sonolento. Confesso que, em algumas pelejas, tive de buscar força espiritual extraordinária para não tirar uma pestana enquanto a redonda rolava. Tive de recorrer aos palitinhos para manter os olhos abertos. Até mesmo na grande final, ontem, no Stade de France (que definitivamente não suporta um Ronaldo), Luiz Figo, craque do escrete lusitano que chegou a a ser eleito o melhor do mundo em 2001 e se aposentou em 2009, foi flagrado bocejando pelas câmeras no televisão, no final do primeiro tempo. Estava chato mesmo.
Romênia, Croácia e Bélgica despontaram como ameaças às seleções de camisas mais pesadas. Jogaram como nunca, perderam como sempre. A Inglaterra foi a Inglaterra. Sem surpresas. A principal contribuição dos ingleses está em terem inventado essa maravilha arrebatadora chamada futebol. E a uma Copa do Mundo que venceram em casa (a gente sabe como). A anfitriã França, narrada em prosa como o esquadrão que, depois de tempos de crises, prometia voltar a fazer jus aos anos memoráveis de Balzac, Victor Higo, Platini e Zidane, uma nova geração de craques, alternou altos (alguns lampejos) e baixos (muitos). A Alemanha esteve distante daqueles jornadas embaladas pelas pajelanças dos índios pataxós vividas na Copa de 2014. Aos trancos e barrancos, a Itália fez até mais do que se esperava dela. A Espanha voltou a ser coadjuvante, para desespero de Cervantes. País de Gales e Islândia empolgaram pela animação, entrega e empenho manifestados em campo e pelas festas das torcidas nas arquibancadas. Campanhas estupendas. Fizeram história. Inesquecíveis serão as narrações de locutores de rádio galeses e islandeses a exaltar as peripécias de suas seleções em gramados franceses. Torci junto com eles. Agora, futebol que é bom...
Ora, pois, tenha a coragem, Chico Bicudo, você que também é Pereira por parte de pai, de família materna Ferreira de Castro, de profanar todas essas heresias ao patrício Manuel Joaquim Rodrigues Oliveira Ferreira Magalhães da Silva II, que estava ontem naquele mar vermelho numa das curvas do Stade de France (tinha estado também na tragédia do Estádio da Luz em 2004, quanto Portugal perdeu a final da Euro para a zebraça Grécia). O raparigo fica fulo da vida quando lhe dizem que a classificação na primeira fase veio com três empates chorados. E por acaso a Alemanha não empatou com Gana no Mundial de 2014? Quase não perdeu para a Argélia nas oitavas? Irrita-se e coça fortemente os bigodes roliços e bem aparados ao ouvir que o triunfo sobre a Croácia só veio na prorrogação. Pois, meu deus do céu, e a Alemanha também não levantou assim o caneco no Brasil? Fica rubro de raiva como a camisa dos heroicos boleiros descendentes de Vasco da Gama e com as bochechas inchadas tremendo de indignação se lhe dizem que a Polônia apenas foi despachada nos pênaltis. Faça-me um favorzinho e responda rápido - de que maneira o Brasil venceu a Itália na final em 1994? E explode num discurso saramaguiano sem pontuações a quem lhe provoca insistindo que Portugal derrotou a França na final por apostar num ferrolho de retranca e nos contra-ataques, porque foi exatamente essa artimanha, estás a ver, a que os franceses recorreram para ultrapassar a Alemanha na semi-final, e foram elogiadíssimos por essa postura, portanto tentem outra bobagem porque essa não está a funcionar, ora, que cacete.
Bravo, bravo! O gajo é preciso como as técnicas de navegação desenvolvidas pela Escola de Sagres. Está mais que coberto de razão. Futebol é também estratégia, entrega, vontade, desejo, sonho, sorte, gana. Alma. Mandingas. Treinamento. Oração. Ele rezou com fervor à nossa Senhora de Fátima quando Cristiano Ronaldo saiu machucado de campo. Pediu só mais um milagre. Suou frio e lembrou das histórias contadas nas rodas de família sobre um tal dom João que abandonou seu povo e fugiu de Lisboa na calada da noite com receio da invasão das tropas de Napoleão - mas que também não se ajoelhou nem jurou obediências ao general usurpador - quando Gignac mandou bola malemolente e traiçoeira na trave lusitana, aos 46 do segundo tempo. Esteve perto de um infarto, santinho roçando entre os dedos, quando foi a vez do balaço luso estourar no travessão dos azuis, na prorrogação, em falta cobrada por Guerrero. Para explodir num choro de transe com tons de quem assina o Tratado de Tordesilhas revisto e atualizado e volta a mandar no mundo, ó pá, quando a cruzada de fora da área de Éder, herói negro da Guiné-Bissau, finalmente venceu o estupendo arqueiro francês.
"Chegou a tua hora, Portugal!. Je T'aime, Portugal Je suis Portugal! Campeones!", berravam os locutores da rádio pública portuguesa, sem saber se narravam ou se comemoravam a épica conquista. Entre um grito e outro da torcida em êxtase no Stade de France, o patrício Manuel Joaquim Rodrigues Oliveira Ferreira Magalhães da Silva, agora campeão da Europa, declamava, com a mão no peito e os olhos cerrados, os versos decassílabos heróicos de "Os Lusíadas". Foi possível ainda ouvi-lo dizendo, quase num sussurro, 'deus do céu, muito agradecido, meu Fernando Pessoa, gratíssimo, meu Eça de Queirós, salve, Eusébio, salve, Figo. Leicester na Inglaterra, Audax no Paulista que ainda tanto me agrada, Chile em duas Copas Américas, Portugal no topo deste Velho Continente. Pois olha que esse mágico futebol estás a ficar interessantíssimo, belíssimo!'.
Fez questão de abrir os olhos para aplaudir o gajo Cristiano Ronaldo, com quem tem assumidas divergências ludopédicas-midiáticas (quantas vezes já não disse 'deixe de olhar para o telão e jogue bola, ora, pois!'), reconhecendo no camisa sete o coração valente de um líder e o talento dos boleiros especiais. Pulou e cantou com Rui Patrício, com Cedric Soares, com Pepe, com Jose Fonte, com Raphael Guerrero, com Renato Sanches, com William Carvalho, com Adrien Silva, com João Mario, com Nani, com João Moutinho, com Quaresma. Quando Éder aproximou-se do alambrado, ajoelhou-se, esticou os braços e reverenciou e prestou lealdade ao novo rei de Portugal. Mandou beijos para Fernando Soares. Desenhou no ar a cruz de Malta. Na saída do estádio, sem voz, bateu um zapzap para amigos e amigas que estavam hospedados numa casa perto do estádio: 'preparem o bacalhau e o vinho do Porto! Estou chegando com a taça!".

quarta-feira, 22 de junho de 2016

PRECISAMOS FALAR SOBRE PLÁGIO

Dá um trabalhão. É cada vez mais comum. Corta um pedaço do primeiro parágrafo, sobe um trecho do segundo. Troca o ‘dizer’ por ‘afirmar’, o ‘amigo’ por ‘colega’, o ‘três meses’ por ‘quase um ano’. Tira o ‘em São Paulo’ e coloca ‘no Rio de Janeiro’. Acrescenta frases de outro artigo, distribuídas em blocos distintos do texto. Importa algumas tabelas e gráficos, para dar mais credibilidade e ficar menos modorrento. Bate tudo no liquidificador. Agora o ingrediente final: é só substituir o autor original pelo próprio nome. Está pronto. É só entregar. O professor nem vai perceber. Mandei bem demais. Duvido que leia todos os trabalhos. Se for muito zicado e o mala pegar, paciência, digo que, na correria, imprimi e entreguei o arquivo errado, por engano. Sem querer. Esse era só o rascunho, a base para o que eu queria escrever. No final, dá tudo certo. Fica frio.
Plágio. Apropriação indevida, antiética e criminosa de trabalho intelectual produzid0 por outra pessoa e que o plagiador tenta convencer que é dele. “Não é um crime sem querer, mas um ato deliberado de quem acredita que não será pego e punido. Não se surrupia uma música ou um texto de alguém, apagando-se a assinatura de seus autores e registrando como de sua lavra sem querer, sem intenção. É um crime intencional, doloso, portanto”, define Rogério Christofoletti, jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em artigo publicado pelo Observatório da Imprensa em 2010. Trata-se de sacanagem que se popularizou entre estudantes do ensino fundamental – grave -, usada por alunos do ensino médio – mais grave – e também da graduação – muito grave, e que também já contaminou estudos científicos, não raro feitos por pesquisadores de renome e reconhecimento internacionais – gravíssimo elevado à enésima potência.
Em 2011, veio à tona escândalo que envolveu a demissão de um professor de dedicação exclusiva da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, depois que ficou comprovado que ele tinha sido o principal autor de um trabalho que copiou imagens de pesquisas feitas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) entre 2003 e 2006, sem dar os devidos créditos aos autores. Em 2014, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) tornou públicos, pela primeira vez em sua história, cinco casos de fraudes científicas (plágios e fabricação de dados) registradas, além da USP de Ribeirão, no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, em Campinas. Em março de 2013, o jornal “O Estado de São Paulo” publicou reportagem que alertava: “número de casos de denúncias de má conduta envolvendo plágio, falsificação e fabricação de dados em trabalhos científicos cresceu significativamente nos últimos dez anos”. Não é lenda urbana: figura querida e admirada na área, ex-secretário de Educação (da cidade e do estado de São Paulo), conhecido pelos muitos livros publicados (primeiro nome de anjo e sobrenome que começa com CHA e termina com LITA), foi pego em flagrante pela ‘Folha de São Paulo’ (matéria de 2012) por fazer autoplágio. De acordo com o jornal, cerca de 75% da segunda dissertação de mestrado dele (defendida em 1997, Direito) é uma reprodução da primeira dissertação (1994, Ciências Sociais). Os dois capítulos principais e a conclusão são idênticos.
A enxurrada estarrecedora de registros de trabalhos plagiados obrigou a Fapesp, por exemplo, a publicar manual com recomendações para evitar ‘má conduta científica’. É de fazer cair o queixo – dizer para mestrandos, mestres, doutores, doutorandos e pós- doutores como eles devem escrever seus artigos, o que é aceitável e o que é indecente e criminoso. Lembrá-los a respeito daquilo que é estupidamente simples. Cara pálida, o conhecimento está aí, disponível, cada vez mais acessível, ao alcance de um clique. Ideias não surgem por geração espontânea. É preciso dialogar com autores. Essa conversa, no entanto, precisa ser honesta e transparente. Basta fazer as devidas referências e citações. Porque o plágio representa dupla mentira – atropela o autor original, negando o que ele fez e modificando a autoria, para também enganar o leitor que, numa relação de confiança, acredita no que o autor (na verdade, outro autor) está narrando para ele. Aos que ainda tem a ousadia hipócrita de recorrer ao cinismo para tentar justificar a cretinice e perguntam em tom de deboche desafiador ‘mas onde está escrito que a gente não pode copiar o autor?’, costumo responder com um singelo e objetivo ‘bem, já estava escrito na grade do berço que a gente usou quando bebê’.
É elementar. Tão óbvio que me sinto imensamente ridículo ao escrever uma crônica com tantas obviedades. Bem… talvez faça sentido. Assim como se tornou imprescindível e urgente afirmar e reafirmar, em todos os espaços possíveis, o valor da democracia, a necessidade de combater, sempre, o racismo, a homofobia e a violência contra a mulher, a impossibilidade de ser tolerante com a intolerância, é momento também de agir para não aceitar que a ciência estabeleça pactos com o plágio.
Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão que viveu na primeira metade do século XX e conheceu de perto os horrores do nazismo e do fascismo na Europa, já se perguntava: ‘Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?’.
É o nosso tempo.
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Publicado originalmente no Ciência na Rua - www.ciencianarua.net (13 de junho de 2016)

domingo, 22 de maio de 2016

A CABEÇA DO TORCEDOR

Li a escalação do time no jornal. Uma lástima. Só cabeça de bagre. Como foi que essa diretoria conseguiu juntar tantos jogadores ruins numa equipe só? Não passo nem perto da televisão. Não quero ver esse jogo. Pega ali o controle remoto, por favor. Vai começar. Eu sei, tinha dito que não ia ver, mas vai que… senta aqui do meu lado. São nossos lugares da sorte. Peloamor, o que é isso, já? Dois minutos e a bola passa raspando na nossa trave? Começou cedo. Tragédia anunciada. Toca, toca, toca. Vira o jogo. Lá na esquerda. O lateral está passando sozinho. Não, não aí. No meio está todo mundo marcado. Jogador de futebol não pensa? Não enxerga? Não tem cérebro? Não consegue raciocinar? É tão fácil. Faz o básico, moleque. Chega de firulinha e lance de efeito. Faz o arroz com feijão. Já está de bom tamanho. Muita chuteira colorida, marra  e cabelo moicano. Pouco futebol. Peraí, tem alguma coisa errada aqui. Está usando sua camisa pé quente? Aquela das finais? Dos títulos? Não pode mudar. Não se brinca com a sorte. Nossa, olha lá, que jogada linda. Que passe espetacular. Sabe tudo de bola esse garoto. Vai, rasteira, no cantinho do goleiro… UHHHHH! Opa, já sei, lembrei, está faltando aquela tradicional cerveja gelada de todas as pelejas. Sempre me acompanha. Faz parte do ritual mandingueiro vencedor. Vou lá pegar na geladeira. Mas o jogo ficou chato, né? Cansativo. Paradão. Ninguém ataca, só chutão , estourão e bicão para cima. A gente precisa ganhar para encostar lá na zona de cima da tabela. Se perder? Vira essa boca para lá. Sem mau agouro, caramba. Bate aí na madeira. Mais forte. Três vezes. Eita, os caras estão melhorando, dominando a partida. Olha lá, o centroavante deles sozinho. Encosta. Marca. Zagueiro imbecil, como pode levar um drible desses? Rolinho no meio das pernas. Ficou estatelado no chão, não viu nem a cor da bola. Técnico burro, tira esse cara. Burro. Substitui. Agora. Não dá mais. Aliás, faz melhor, manda esse traste para algum outro time. Qualquer um. Menos o meu. Não aguento mais. Já deu. Outro chute perigoso, que passou raspando a nossa trave. Sai, zica. Arruma esse time, professor. Que bagunça, um amontoado de perebas correndo em campo feito baratas tontas. Eu sabia que não devia ver essa pelada. Pura perda de tempo. E agora esse zagueiro irresponsável resolveu se aventurar no ataque? Volta, rapaz. Se atrás você já é limitado… Opa, ganhamos escanteio. Quem sabe numa bolinha parada salvadora. Capricha. Está livre, está livre… sobe… testada… sobrou… rebote… de carrinho… GOL! GOLAÇO! QUE GOLAÇO! Foi de quem? Ali na confusão na área não vi quem tocou por último. Foi do zagueiro? Foi do nosso zagueiro artilheiro? Sempre acreditei no potencial desse garoto. Espana, às vezes, mas tem talento. Acabei de xingar o cara? Imagine, foi só desabafo. Faz parte. É o calor do momento. O rapaz merece ser convocado para a Seleção. Vamos ganhar esse jogo!
Não há ciência capaz de explicar a cabeça de um torcedor de futebol. Sobram rumores que sugerem que Gregor Mendel – parece que era confesso admirador do futebol bretão – até se animou. Não conseguiu financiamento. Projeto recusado. Desistiu. Optou por continuar misturando ervilhas amarelas e verdes para determinar dominantes e recessivos. Albert Einstein foi desafiado por colaboradores a estudar o tema. Recuou depois de apenas cinco minutos de conversa. Teria dito aos interlocutores ’não dá, é muito complexo. E deus não joga bola’. Quem mais se aproximou da tarefa foi Sigmund Freud. Chegou a anotar alguns rabiscos iniciais sobre futebol e seus torcedores. Jamais publicou esse material. Empacou. Achou mais fácil concentrar as atenções no estudo da sexualidade humana.