sábado, 29 de março de 2014

50 ANOS. NUNCA MAIS





Central do Brasil. O governo reafirma seu firme propósito de lutar para garantir as mudanças que a sociedade brasileira exige. Reformas de base. O povo está com Jango. Vamos distribuir as terras e garantir justiça social. Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. Não é mais possível aceitar que empresas estrangeiras remetam indiscriminadamente seus lucros para o exterior. É preciso taxar o capital. A família brasileira marcha com deus pela liberdade. Salve rainha, mãe de misericórdia. Terço enrolado nos dedos. Velas acesas. Nossa bandeira não é vermelha, é verde e amarela. O Brasil quer ordem. Fora, Jango! Ave maria, cheia de graça. Jornais pedem saída do presidente. Pai nosso. Não ao comunismo, não à república sindicalista. As tropas do general Olímpio Mourão estão a caminho do Rio de Janeiro. Operação Brother Sam. A quarta frota estadunidense está na costa brasileira. Os Estados Unidos estão prontos para invadir o Brasil, se preciso for. Declaro vago o cargo de presidente da República. Cadê a resistência? João Goulart fugiu para o Uruguai. O general Humberto Castelo Branco assume o poder. Jura ser leal à Constituição do Brasil. Era para ser uma intervenção jurídica. Era? Mandatos parlamentares cassados. Militares nacionalistas cassados. Sindicalistas cassados. Professores universitários aposentados compulsoriamente. Fogo na sede da União Nacional dos Estudantes. Partidos políticos proibidos. Prisões arbitrárias. Opositores do regime começam a sair do país. Exílio. Saudades. Vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar. Deus e o diabo na terra do sol. Abaixo a ditadura. Passeatas estudantis. Greves operárias. O povo no poder. É proibido proibir. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar. Mataram um estudante. Podia ser seu filho. Cem mil nas ruas. Discurso do deputado Marcio Moreira Alves. Congresso de Ibiúna. Às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência. Ato institucional número cinco acaba com direito ao habeas corpus. Institui a censura prévia. Admite a tortura como prática de Estado. Pega, mata e come, carcará! Dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações. Anos de chumbo. Operação Condor. O terror. Conhece a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Pois esqueça. Aqui ela não vale. DOI. CODI. CENIMAR. Operação Bandeirante. DOPS. Empresários financiam a tortura. Empresários acompanham sessões de tortura. Empresários se regozijam com sessões de tortura. Jornais emprestam viaturas para transportar presos políticos para sessões de tortura. Fala, comuna filho da puta! Onde estão os outros terroristas? Pancadas, choques, afogamentos, pau-de-arara, violência e estupro de muitos corpos, frio, calor, barulho, sono, inferno, silêncio, pancadas, choques, afogamentos, cadeira do dragão. Corpos esquartejados. Corpos queimados. Corpos rasgados. Corpos jogados ao mar. No rio? Na mata? Em sacos plásticos? Matei, torturei, escondi corpos. E continuo impune, livre. Não me arrependo. Não há tortura no Brasil. Esse é um país que vai pra frente. Noventa milhões em ação. Brasil, ame-o ou deixe-o. Educação Moral e Cívica. Organização Social e Política do Brasil. Professores calados. Escolas controladas. Censura. Fila para cantar o hino. Mão no ombro direito do colega da frente. Direito. Jamais o esquerdo. Jamais a esquerda. Costa e Silva. Médici. Geisel. Figueiredo. Poemas de Camões e receitas de bolo. Pasquim, Movimento, Bondinho, Versus. Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados. Afasta de mim esse cálice. Cale-se. Milagre econômico. Muitos perdem, poucos ganham. É o bolo dividido. VPR, ALN, Var-Palmares, Colina, PCBR, PC do B, MR-8. Sequestrado o embaixador dos Estados Unidos. Essa é uma guerra revolucionária. Não aceitaremos que nossos companheiros continuem sendo torturados nos porões da ditadura. Agora é olho por olho, dente por dente. Militantes libertados chegam ao México. Guerrilheiros no Araguaia assassinados. Decepados. Carlos Lamarca assassinado no interior da Bahia. Carlos Marighella assassinado em São Paulo. Carlos, João, Miguel, Misael, Ísis, Iara, Vera... todos assassinados e desaparecidos pela ditadura. Onde estão nossos familiares? Vladimir Herzog se suicida nas dependências do DOI-CODI em São Paulo. Vladimir Herzog foi mais um assassinado pela repressão. Choram Clarices e Marias. Sindicato dos Jornalistas de São Paulo organiza a resistência. Culto ecumênico na catedral da Sé. Oito mil pessoas reunidas. Abaixo a ditadura. Anistia ampla, geral e irrestrita. Meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil. Bombas em bancas de jornal. Explode bomba no Rio Centro. Queremos votar para presidente. Diretas Já. Camisas amarelas. Vai passar. Diretas derrotadas. Uma tragédia chamada Collor de Melo. O presidente sociólogo perseguido pela ditadura não abriu os arquivos do terror. O presidente operário preso pela ditadura não abriu os arquivos. A presidenta guerrilheira torturada pela ditadura não abriu os arquivos. A anistia virou escudo de proteção para torturadores. Comissões da Verdade não avançam como se esperava. Brasil não seguiu exemplos da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Peru. Tortura continua sendo prática corriqueira nas nossas delegacias. Cadê o Amarildo? Viúvas e saudosos da ditadura vagam por aí. Acham que eram felizes. Não se constroi democracia quando se pisa nas cabeças de cadáveres insepultos. Homenageamos os algozes - elevado Costa e Silva, rodovia Castelo Branco. 'Ditabranda' para quem, cara pálida? Verdade. Memória. Justiça. Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos. Meu sangue latino. Minha alma cativa. E uma mãe esquece o filho que foi assasinado pelo terror? Deixem-nos enterrar nossos mortos. É preciso narrar para as novas gerações todas - e cada uma - das atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar brasileira. Para que nunca mais. Nunca mais. E a vida devia ser bem melhor. E será. 

sábado, 22 de março de 2014

NO MEIO DO CAMINHO HAVIA UM PAOLO ROSSI

"Meu jogo inesquecível de Copa do Mundo"

(*) Eryx Pereira, advogado



Estádio Sarriá – Barcelona/Espanha – 05 de julho de 1982

Em ano de Copa do Mundo, o que mais se vê, se ouve, se discute é: “o seu jogo favorito”, “o melhor craque que você viu jogar”, “o gol mais espetacular”, “a defesa mais impressionante”, “o escrete inesquecível”, e por aí vai.

Normalmente, quando se pensa em algo do tipo “meu jogo favorito”, diria que 99% das pessoas pensam, de cara e sem pestanejar, em uma vitória do seu time. Do meu, por exemplo: 1995, 10 de dezembro de 1995. Pacaembu. Santos 5x2 Fluminense. Vitória, maiúscula, claro.

No entanto, quando Chiquilito sugeriu que escrevesse sobre o meu “jogo inesquecível” de Copa do Mundo, não pestanejei: Brasil x Itália. 1982. Derrota. Como assim? Seu jogo inesquecível é uma derrota da seleção brasileira? É isso mesmo. O jogo que mais me marcou é a doída derrota da espetacular seleção brasileira de Telê Santana para o bom time da Itália, do carrasco Paolo Rossi, mas não só do Paolo Rossi.

Foi a primeira Copa do Mundo que acompanhei e da qual tenho lembranças. Tinha 7, quase 8 anos. E o futebol já era a minha grande paixão. Já jogava (e brigava...) na escola, com os irmãos, com os primos. Já sofria e já chorava por causa de futebol. E, naquela época, embora já santista, o Santos ainda não era o que é hoje. Em 1982, eu era BRASILEIRO. Morria por aquela seleção brasileira. O mundo parava para eu ver Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, os quatro principais craques daquele timaço. Junior, Leandro, Oscar, Luizinho, Éder, coadjuvantes que seriam craques em qualquer outra seleção do mundo. 

Serginho Chulapa, meu primeiro ídolo de verdade no futebol, na verdade era um grande artilheiro caneleiro, que, infelizmente, destoava naquele esquadrão. Alçado à condição de titular pela triste contusão do Careca, à época do Guarani, às vésperas da Copa, a camisa 9 na Copa pesou demais para ele. Para mim, deveria ter sido reserva do Roberto Dinamite, muito mais jogador que ele. Confesso que não sei por que Telê preferiu Chulapa a Dinamite. E, no gol, Valdir Peres não inspirava a menor confiança. Me lembro de brigar com colegas são paulinos defensores do Valdir, porque achava os dois reservas, Paulo Sérgio e Carlos, muito melhores. Valdir era catimbeiro e sortudo. E vivia da fama dos dois pênaltis que defendeu do consagrado Breitner, em Stuttgart, num amistoso em 1981 que, fez parte de uma mini-excursão feita pela seleção e que apresentou aquele timaço para o mundo. Naquele ano, batemos a Inglaterra em Wembley por 1x0, a França no Parque dos Princípes por 3x0 e a Alemanha (então Ocidental) em Stuttgart por 2x1, com o Cerezo comendo a bola (faltei na escola pra ver aquele jogo, narrado pelo Silvio Luiz, então na Record).

Enfim, Copa do Mundo. Brasil x Itália. 05 de julho. Já tentei puxar pela memória. Não consigo me lembrar se era quarta, quinta, sexta-feira. Sei que era dia de semana. O jogo foi à tarde. Acho que fui à escola. Como estudava no período vespertino, não sei se teve aula e saímos mais cedo ou se simplesmente não fui à escola. Se tivesse que apostar, cravaria na primeira opção, embora, com certeza, a segunda opção, na minha opinião, seria medida muito mais sensata.

O que sei é que naquele dia, só pensei naquela partida. Algo que, aliás, se tornou frequente sempre que se aproxima alguma partida importante de futebol. Brasil x Itália. A repetição da final de 1970, era o que se dizia na época. E, o que se comentava era que se o time de 70 era muito superior ao time italiano, a diferença entre as duas seleções em 1982 deveria ser triplicada. Onze entre dez cronistas brasileiros, pelo que lembro, cravavam: o Brasil passaria pela Itália e iria para a semi-final.

O time era melhor, muito melhor. A campanha era irretocável. O futebol, muito superior. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Todos nas melhores fases de suas carreiras. O time jogava fácil. Trocava passes. Envolvia os adversários. Era um rolo compressor. Apertou o jogo? Tinha o canhão de fora da área do Éder. Se o esquema com centroavante fixo não estivesse funcionando, saca o Chulapa, põe o Paulo Isidoro e avança o Sócrates.

E a Itália? Bem...classificada na bacia das almas na primeira fase por ter feito um gol a mais do que Camarões. Três jogos sofríveis, três empates sofridos. Os italianos, que hoje sei são tão ou mais corneteiros do que nós, brasileiros, acabando com o time, com o técnico, com os jogadores.

Enfim, era esse o panorama.

Jogo fácil? Não para mim. Desde aquela época, qualquer joguinho era clássico. Quem me visse ouvindo Santos x Ferroviária pelo Torneio Início do Campeonato Paulista poderia imaginar se tratar da final do campeonato mundial interclubes. E, não esqueçamos: era Copa do Mundo.

Finalmente, o jogo começou. Família toda vendo o jogo na sala do apartamento 61 da saudosa Rua Lisboa, 1128. Luciano do Valle narrando. Marcio Guedes, que eu não suportava e que era (como, aliás, continua sendo) um baita pé frio, comentando. Cinco minutos de jogo. Times ainda se estudando, se aquecendo, tentando entender como seria jogado o jogo. Bola cruzada da direita para a esquerda. Atravessou o campo todo e chegou ao Cabrini, lateral esquerdo da Itália. Bola na área do Brasil. Não deu tempo de gritar “sai, Valdir”. Ele não saiu, ninguém cortou, Paolo Rossi entrou de cabeça, sozinho. Gol da Itália. 1x0 para eles.

Tensão? Nem tanto. Tínhamos saído atrás na estréia, contra a URSS. Viramos. Tínhamos tomado o primeiro no segundo jogo, contra a Escócia. Viramos. Superstição. Vamos virar.

Poucos minutos depois, a superstição se confirmava: passe magistral de Zico, gol de Sócrates, no cantinho. Empate. 1x1. Pronto. As coisas estavam em seu devido lugar. O empate classificava o Brasil. Mas, pensava eu, aquele time não jogava para empatar. Agora os italianos iriam ver o que é bom pra tosse.

Só que não. O jogo não saía. O Brasil, embora não jogasse mal, não conseguia desenvolver o seu toque de bola. A Itália parecia que tinha 22 jogadores em campo. Não tinha espaço. O carniceiro Gentile, que nas horas vagas jogava bola, marcava implacavelmente o Zico. Teve até o famoso pênalti da camisa rasgada. Xingamentos na sala contra o juiz israelense. Naquele distante 1982, ainda não falava palavrões, então o máximo que se escutou foi “idiota, safado, ladrão”. Hoje teria sido bem diferente.

Metade do primeiro tempo. Saída de bola do Brasil. Cerezo, naquele estilo dele meio peladeiro, meião abaixado, cruza a bola na entrada da área do Brasil sem olhar. Qualquer um que joga bola na escola sabe de cor e salteado: “não se cruza a bola na entrada da área”. Pois bem, Cerezo cruzou, sem olhar e, para completar, atrás do destinatário da pelota, Luizinho, que já saia para o ataque (data venia, pqp, porque o quarto zagueiro do Brasil estava jogando tão avançado naquela altura do jogo?). Bola nos pés do Paolo Rossi. Gelei. Sozinho, o italiano, camisa 20, domina, ajeita e fuzila. Gol da Itália. 2x1 para eles. Caramba, nos jogos anteriores que saímos perdendo, não tínhamos tomado o segundo. Embora contra a URSS a virada tivesse vindo só no finalzinho, com dois gols seguidos, não tínhamos ficado duas vezes atrás no placar. Alguma coisa estava errada. Tomar um gol daquele em Copa do Mundo era inadmissível. Jamais perdoei Toninho Cerezo. Não só eu. Meu saudoso avô Eryx, até o fim da vida, não cansou de repetir: “o Brasil perdeu por causa do seu Terezo”!!!

E lá vamos nós para o intervalo. Àquela altura, nervos à flor da pele. Confiança? Claro que tinha. Mas, agora já era certeza: aquele timaço não era imbatível. Podia perder perfeitamente uma partida. Outra certeza: a Itália não era a galinha morta que muitos diziam. Não só porque estava na frente no placar. Mas, porque fazia uma partida parelha, de igual para igual. Marcava duro, com firmeza. E jogava. Era um time cirúrgico. Eficiente. Tinha Bruno Conti, cracaço da Roma, companheiro de Falcão. Tinha Antognoni, da Fiorentina, belíssimo jogador de meio de campo, que hoje seria fácil uma espécie de segundo volante moderno de qualquer time do mundo. Tinha Scirea, que comandava a defesa, jogando como o típico líbero italiano. Tinha Zoff no gol. Marco Tardelli, da Juventus, era eficiente. E, tinha Paolo Rossi. Não tinha feito nada até aquele jogo. Mas ali, já tinha marcado dois gols.

Segundo tempo. Brasil em cima. Itália marcando. E jogando. Não era aquele jogo de ataque contra defesa. Não tinha massacre. Já naquela época, com apenas 7 anos, tive essa percepção. Muitos anos depois, já adulto e após superar o trauma, decidi ver o jogo de novo. Inteiro. Sentado calmamente no sofá, tomando cerveja e comendo pipoca. Calmamente? Que nada! Xinguei o juiz de novo, agora de nomes bem mais feios. Ofendi moralmente o “seu Tereso” pelo passe errado decisivo. “Ah, se o primeiro tempo tivesse terminado empatado”, pensei eu nos meus devaneios. Será que a Itália teria saído mais para o jogo? Será que o Bearzot teria aberto o time? Será que o Brasil teria e saberia explorar os espaços?

Segundo tempo rolando. Nada de sair o gol de empate. A essa altura, o que mais se ouvia em casa eram gritos e choros. Choros compulsivos. Em dado momento, Chiquilito, ao ver uma chance desperdiçada, vai até a cozinha e dá um sonoro pontapé na geladeira. Imediatamente, é medicado por meu pai. Maracujina. Não sei para que. Naquele momento, nem tarja preta resolveria. Só uma coisa adiantaria: o gol do Brasil.

Tenho a ligeira impressão de estar sozinho na sala. Acho que o Chiquinho estava na cozinha, sendo medicado. Não lembro onde estavam minha mãe e o Guto. Anna Sylvia, então, tinha 3 anos e sequer sei dizer se estava em casa naquele dia 05 de julho de 1982. Falcão com a bola, na entrada da área. Ferrolho italiano armado. Espaço zero. Eis que ele, Toninho Cerezo, o “seu Terezo”, como uma bala, passa voando pela direita e pede a bola. Com isso, puxou a marcação de três italianos. Três!!! O ferrolho estava desarmado. Falcão puxou a bola para a perna esquerda. “Chuta, chuta, chuta, chuta, goooooooooooooooooooooooooollllllllllllllllllllllll”. Confesso: ao narrar esse gol, estou chorando. Como em 1982. Festa. Loucura. Gritaria. Rolamos na sala, abraçados. Sim, nós vamos para a semi final. Falcão, o rei de Roma. Golaço. Comemoração linda. Inesquecível. E os italianos colocando as mãos na cabeça, em desespero. O empate é nosso.

Hora de segurar. Hora de marcar. Hora de dar chutão. Não para aquele time. O Brasil continuou fazendo o seu jogo e seguiu com a bola nos pés, trocando passes. Mas, por apenas 5 minutos. Cerezo (de novo, caramba!!!) recua errado para Valdir Peres, que, embora naquele tempo pudesse pegar com as mãos bola recuada, deixa a bola sair pra escanteio. Sufoco. Tensão. Relógio por volta de 29/30 minutos. Bola na área. Oscar afasta. Ninguém está na cabeça de área do Brasil. Não tinha um cara lá!!! Tardelli rebate de primeira e devolve a bola para a área. Tensão. A bola vai indo e encontra Paolo Rossi, na pequena área, livre, sozinho, ele, a bola e o gol. Gelei. Precisava de um milagre. Ele não veio. Gol da Itália. 3x2. “Impedido”, gritei, induzido em erro pelo braço levantado de Junior. Puta que pariu (me desculpem, mas não dá para evitar), o cara que levanta o braço é exatamente aquele que dá condição para o cara. O que o Junior estava fazendo debaixo do gol. E por que a porcaria do Valdir Peres, quando o Oscar cortou de cabeça, não gritou para a defesa sair? Estava fazendo o que aquele poste? Enfeitando?

Inacreditável. Faltavam apenas 15 minutos. O Brasil tinha míseros 15 minutos para empatar o jogo pela terceira vez e fazer valer aquela suposta lógica. Dali para frente, só chorei. Muito. Copiosamente. Vi muito pouco do resto do jogo. Não vi se o Brasil mexeu no time. Não sei se o Telê colocou alguém. Só chorei. Minto. Parei de chorar por uns segundos. E gritei gol. Alto. Muito alto. Oscar meteu de cabeça. Um tiro. Indefensável. Em qualquer outro jogo de futebol, aquela bola teria entrado. Não em 05 de julho de 1982. Bola forte, no canto baixo, rente a trave. Goleiro algum defenderia. No mínimo, tentaria rebater e daria rebote. Zoff defendeu. E não largou. E, enquanto os brasileiros iam para cima do juiz israelense pedindo o gol, porque era impossível que a bola não tivesse entrado, Zoff se levantou e com toda a calma, com a bola debaixo do braço, fez “não” com a mão. Não, ela não tinha entrado. Não tinha jeito. O jogo tinha acabado.

Também não me lembro de ter visto o apito final. Pouco importa. O Brasil tinha perdido. Aquele timaço não seria campeão do mundo. Não só daquela Copa, como de qualquer outra. Chorei, chorei e chorei. Só isso. Televisão desligada. Deitei na cama. E lá fiquei.

Durante anos se discutiu: o Brasil deveria ter jogado feio. Deveria ter jogado para empatar. Telê Santana deveria ter recuado o time após conseguir o empate. Deveria ter tirado o Zico e colocado o Batista, volantão gaúcho, no seu lugar (ora, o Batista nem no banco estava, tinha se machucado no jogo anterior, contra a Argentina, após tomar um sonoro pontapé na barriga dado pelo Maradona).

Me lembro que alguns meses depois da Copa, ganha pela Itália, surgiu o boato que o Paolo Rossi tinha jogado dopado e que aquele jogo seria anulado. Na inocência dos meus 8 anos recém completados, cheguei a acreditar que realmente fosse verdade. Claro que não era. Paolo Rossi não jogou dopado. O jogo não foi anulado. A Itália ganhou. O Brasil perdeu.


Foi a minha primeira decepção com o futebol. Muitas viriam depois. Mas, aquela, com apenas 7 anos, foi inesquecível. A ponto de se tornar o meu jogo inesquecível de Copa do Mundo.

sexta-feira, 14 de março de 2014

SOMOS TODOS TINGA, AROUCA, MARCIO CHAGAS. OU ENTÃO...

No começo eram apenas alguns grunhidos meio desconexos, isolados, vindos de pontos restritos e distantes das arquibancadas. Nem prestava atenção, não era comigo mesmo, vou continuar me deliciando com meu chicabon de chocolate. Não demorou muito e começamos a notar a presença mais ostensiva de alguns grupos organizados, sentados sempre juntos, ariscos, ameaçadores, caras de poucos amigos, vestidos com camisas onde se lia "negro jamais. Orgulho de ser branco". Imitavam macacos, sem constrangimentos. Deixamos para lá, afinal essas coisas sempre aconteceram mesmo no futebol, faz parte do folclore do esporte, é só mais uma brincadeira. Foi quando os sons das imitações se tornaram muito mais fortes, ecoando pelas arenas, bastava um jogador negro pegar na bola e lá vinham aqueles gritos agudos e rasgados, típicos dos símios, as mãos coçando a cabeça e a barriga, gente pulando sem parar. Eram muitos, nas laterais, atrás dos gols, nas cobertas, nas cativas. Vai passar, pensamos, é só uma onda, se a gente ficar dando bola e muita atenção aí é que os caras vão se empolgar mesmo. Só provocação momentânea. Denunciar? Não vão ser punidos mesmo. O melhor é ignorar, fingir que não estamos vendo. Pouco tempo depois, choviam bananas no campo, atiradas em direção aos atletas negros. Assustador. E, como não fizemos nada antes, os imitadores de macacos estavam agora em todas as partes, faixas estendidas, enfurecidos, ameaçando dirigentes, exigindo aos berros que os clubes se recusassem a contratar jogadores negros, entoando vários gritos de guerra racistas. Não havia mais espaço para a gente. Estava tudo dominado. O estádio era todo deles.

(Inspirado em poemas escritos pelo pastor luterano Martin Niemöller e pelo poeta Eduardo Alves da Costa)

terça-feira, 4 de março de 2014

HOMO SAPIENS POLEGARIS

A temporada havia sido impecável - onze jogos, onze vitórias. Ataque mais positivo do torneio, três goleadas sensacionais aplicadas durante a competição, com direito ainda ao artilheiro do campeonato. Um dos tentos anotados, se possível fosse, verdadeira obra de arte, concorreria certamente ao prêmio Puskas de gol mais bonito do ano. Faltava a última, a derradeira. A decisão. Desejara desde sempre e ardentemente aquele momento, muitas noites sonhara com a finalíssima (teve alguns pesadelos também, é verdade), os times perfilados, o estádio cheio, a vibração das torcidas, bandeiras tremulando, as cores espalhafatosas dos uniformes contrastando com o verde vivo do gramado. Jogava como favorito.

O time do coração já estava em campo, esquadrão completinho, sem desfalques por cartões ou contusões. Tudo pronto. O árbitro fez sinal de que deveria ser respeitado um minuto de silêncio. Apitou. Valendo. O garoto respirou fundo. Não tirava os olhos da telinha. Nem piscava. Apenas mexia as mãozinhas nervosas. Freneticamente. Os dedões eram capazes de movimentos espantosos - tenho cá comigo, aliás, que depois da conquista do polegar opositor, longo e com maior capacidade de rotação, que ajudou a nos diferenciar dos antigos primatas, um dos próximos avanços evolutivos da nossa espécie será alcançar habilidades extraordinárias com esses nossos incríveis dedões. O máximo de movimentos num curtíssimo espaço de tempo, em áreas minúsculas. É só contemplar o que os garotos são hoje capazes de fazer com as teclas quase invisíveis dos celulares. Quase mágica. Talvez saia daí uma nova espécie mesmo, o Homo sapiens polegaris. Darwin ficaria orgulhoso. A seleção das espécies em marcha.

O jogo, como era de se esperar, tinha começado difícil, truncado. Amarrado no meio do campo, marcações fortes dos dois lados. Caramba, não estava impedido, já está difícil chegar na área e esse bandeirinha safado ainda marca o que não existiu. Não dá, é um pilantra. O tira-teima confirma a posição irregular. O garoto, tenso, coração aceleradíssimo, não se deu por vencido. Também, não marcou falta no lance anterior... Foi falta, ouviu? Falta. Merecia até amarelo. Está roubando. É um roubão! Conversava de igual para igual com a telinha, como se a máquina pudesse entender. Responder. Falava alto. Gritava. Mandava o comentarista calar a boca. Esse cara é um pé frio, ele abre a boca e dá azar. Sai tudo errado. É sempre assim. Tira ele daí! Sai logo! Fica quietinho, seu azarado.

A irmã mais velha suplicou por favor, fala um pouquinho mais baixo, não estou conseguindo me concentrar para fazer a lição de casa. Por favor. Saiu de cena rapidinho, indignada, praguejando. Tinha sido expulsa da sala. Impropérios impublicáveis. Você é pé fria também, some, vai para o seu quarto. Estou nervoso, não está vendo? Foi o tempo de se concentrar novamente e de ver encaixados, lindamente, três dribles em sequência do craque da camisa dez, que invadiu livre a área adversária e tocou de cavadinha para o fundo do gol. Deu até para ouvir o "puffffff" inconfundível das redes sendo estufadas.

As mãos finalmente dançaram soltas no ar. O moleque liberou um grito gutural, provavelmente muito parecido com aqueles que os homens das cavernas deviam mandar quando conseguiam dominar a caça, comemorando a conquista. Garantindo a sobrevivência do bando. Ah, moleque! Gol, golaço, chupa, golaço, chupa, chupa! Time do coração na frente. A irmã fez ainda última e desesperada tentativa. Mãe, assim não dá, esse garoto parece um louco. É só um jogo. Ouviu o berro que ele deu? Quase morri do coração. Não é possível, não é normal. Nem bem terminou de falar e ela, que imaginava que o limite já tinha sido atingido, ouviu, altos brados, palavrões que jamais imaginou existirem. Ficou vermelha - mas até tentou memorizar alguns, em caso de precisar usá-los com alguns amigos malas insuportáveis. O adversário tinha empatado.

Goleiro burro, frangueiro, olha o gol que você me toma. Meu deus, como é ruim! E esse zagueiro? É burro também! Burro demais! Não sabe jogar, não sabe nada de bola. E se acha, é um SeAchão. Vai tomar banho. Vai sair. Chega. Entra o reserva. E você que está entrando no lugar dele, vê se faz alguma coisa de útil! Se não fizer, vai sair também. Façam o favor de jogar bola! Vontade, ouviram! Raça! Não aguento mais vocês! A voz já saiu esganiçada, lábios tremendo. O garoto tentava engolir o choro e continuar em frente. A mãe achou que tinha dado. O barulho era infernal. Num pulo, chegou à sala. Acabou. Vou desligar essa porcaria. Não dá, filho. Que história é essa? Você vai ter um troço. À toa. Por nada. Não vale a pena. É só um jogo. Não pode ser assim. Por favor. O moleque nem ouviu, embriagado pelo que acontecia na telinha, preocupado em não errar.

O pai, que estava ouvindo os gritos mesmo com o chuveiro ligado no modo inverno e que acabara de sair do banho, fez menção de entrar na conversa. Chegou a dizer filho... Recuou. Bateu a nostalgia. Lembrou que era exatamente assim, gritos e nervos à flor da pele, que ele disputava suas finais de campeonato no velho Atari, no ancestral Telejogo. Os polegares não precisavam ser tão hábeis, é verdade, os controles eram quase primitivos (botãozinho vermelho único), quando comparados às parafernálias atuais. As imagens, então, meu deus... em preto e branco, ou estourando cores nada nítidas, eram como pontinhos e pauzinhos rabiscados em paredes de cavernas. Não tinha canto de torcida, uniforme um ou dois, possibilidade de fazer substituições, arenas padrão FIFA, narradores, comentaristas, PES 2014, Nintendos Wiis... Eram, contudo, eventos únicos. Épicos do futebol virtual. Partidas tensas. Inesquecíveis. Os pais (avós) diziam que não era possível, que era só um jogo, que se continuasse daquele jeito iriam guardar o aparelho por um tempo. O pai sofria. Era mais forte que ele. A herança foi implacável. O filho sofre. É mais forte que ele.

O pai chega mais perto do moleque, a essa altura com o rosto quase mergulhado na tela cintilante e de alta definição do computador. As imagens são lindas, alucinantes. O garoto treme, elétrico. Está arfante, sem parar de gritar com seu time. É final de campeonato no vídeo-game doméstico. O velho sorri, discretamente. Cerra os punhos. Começa a torcer. Vai, filho. Bem baixinho. Confia nos polegares - e no título - do rebento.