terça-feira, 29 de outubro de 2013

"DEIXEM-NOS ENTERRAR NOSSOS MORTOS E REALIZAR O LUTO NECESSÁRIO"

 
Texto de Tessa Moura Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda, militante político da Ação Popular Marxista-Leninista assassinado e desaparecido pela ditadura civil-militar brasileira, em outubro de 1973. O texto foi lido na audiência pública de homenagem a Gildo realizada na Comissão da Verdade Rubens Paiva (Assembléia Legislativa de São Paulo), no dia 25 de outubro de 2013.
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Dizem (...) que [Creonte] proclamou a todos os tebanos a interdição de sepultarem ou sequer chorarem o desventurado Polinices: sem uma lágrima, o cadáver insepulto irá deliciar as aves carniceiras que hão de banquetear-se no feliz achado.” (Sófocles, Antígona, linhas 30-34).

Assim explica Antígona à sua irmã Ismene o que aconteceu a um de seus irmãos, Polinices. Na tragédia escrita por Sófocles no século V a.C., os irmãos Polinices e Etéocles morrem em uma guerra civil, este guiando o exército tebano, aquele o de Argos. Julgado traidor pelo tirano Creonte, que assume o poder de Tebas, Polinices deve permanecer insepulto: nas palavras de Creonte, “a Polinices, (...) quanto a ele foi ditado que cidadão algum se atreva a distingui-lo com ritos fúnebres ou comiseração; fique insepulto o seu cadáver e o devorem cães e aves carniceiras em nojenta cena.” (Sófocles, Antígona, linhas 225-235).

Neste mês de outubro de 2013, faz 40 anos que meu pai, Gildo Macedo Lacerda, foi torturado até a morte sob o governo ditatorial brasileiro. 40 anos atrás, a irmã mais velha de Gildo, Márcia Lacerda Alves, via o Jornal Nacional anunciar a morte de seu irmão em um suposto tiroteio no centro da cidade de Recife, na esquina da Av.Caxangá com a rua General Polidoro. Segundo a versão mentirosa oficial, Gildo, que havia sido preso em 22 de outubro de 1973, e José Carlos Matta Machado (também preso) delataram um encontro que aconteceria entre eles e um terceiro companheiro de codinome Antônio. Este, percebendo a emboscada, atirou em Gildo, que morreu no local. Poucos dias depois, minha mãe, então presa em Salvador, receberia a notícia da morte de seu marido pelo capelão do Exército, que lhe entregou um jornal com a notícia.

A farsa da versão oficial, o “Teatro da Caxangá” ou a prática do “Teatro dos Mortos”, além de encobrir os bárbaros assassinatos sob tortura de Gildo e José Carlos, tentou encobrir o assassinato de Paulo Stuart Wright ao se referir a “Antônio”, que teria conseguido fugir. Essas informações, eu sei de cor há nem sei quanto tempo. Na tentativa de reconstruir a história de Gildo, decorei as palavras que narram sua morte – ainda que sua morte tenha de fato ocorrido na tortura a que foi submetido. O que não consigo por nada gravar em minha memória é o nome das valas e dos cemitérios por onde passou o corpo morto de Gildo. Por meio de pesquisas no Dops/PE, o Grupo Tortura Nunca Mais em Recife (e particularmente uma pessoa: Amparo) descobriu em 1991 que o corpo de Gildo foi necropsiado no Necrotério Público de Santo Amaro, em Recife, para onde foi encaminhado pelo delegado Jorge Tasso de Souza; o corpo ficou inicialmente em caixão lacrado e foi enterrado como indigente no Cemitério da Várzea, em Recife. Os restos mortais de Gildo foram, em seguida, transferidos para uma vala comum no “Buraco do Inferno”, e, em 1986, para outra vala comum (com ossadas de pessoas mortas desde 1945), no Cemitério Parque das Flores – essa última vala, numa triste alusão à tragédia de Sófocles, uma vala a céu aberto.
Antígona não cede à irmã Ismene, recusa-se a obedecer o édito do tirano Creonte, e realiza os ritos jogando sobre seu irmão insepulto uma fina camada de terra com suas próprias mãos, porque para ela as leis do tirano ferem as leis dos deuses, as leis do governo tirano são leis injustas e, por isso, devem ser desobedecidas. Diz ela:

“Zeus não foi arauto delas para mim,/Nem essas leis são as ditadas entre os homens/ pela Justiça, (...);/ e não me pareceu que tuas determinações tivessem força/ para impor aos mortais até a obrigação/ de transgredir normas divinas, não escritas,/inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,/é desde os tempos mais remotos que elas vigem,/sem que ninguém possa dizer quando surgiram.”(Sófocles, Antígona, linhas 511-520, grifo meu).

Contra o tirano Creonte, que define a justiça como as leis particulares instituídas por seu regime particular (como os Atos institucionais de nossa ditadura), Antígona considera que a justiça é universal e atemporal. Há 25 séculos a Filosofia debate a questão da Justiça. Em linhas muito gerais pode-se dizer que há aqueles que afirmam a Justiça como uma verdade universal e atemporal, derivada dos deuses, de Deus ou da razão humana – a Justiça, nesse caso, porta uma necessidade, ela deve valer em qualquer tempo ou lugar; e, de outro lado, há os filósofos que consideram que Justiça é produto da convenção humana e, como tal, é sempre contingente e particular, já que enraizada em governos particulares. Mas o fato é que quer concebamos a Justiça como uma verdade atemporal e universal, quer a concebamos como o efeito de leis particulares, mesmo entre os defensores de uma justiça que só existe por consenso, que é contingente e produto de seu tempo particular, é muito difícil dar razão para uma lei como a de Creonte; mesmo para quem defende a justiça como pura convenção, é difícil explicar uma lei que obriga a deixar um irmão insepulto, ou uma lei que justifica a prisão e morte arbitrária de pessoas que se opõem ao regime que está no poder. Porque como diz o adivinho Tirésias, ao advertir o tirano Creonte, deixar que um morto jaza insepulto é matá-lo novamente: “Não firas um cadáver!” – exclama Tirésias, e questiona: “Matar de novo um morto é prova de coragem?” (Sófocles, Antígona, linhas 1141-1142).

Recusar os ritos fúnebres a uma pessoa não é apenas uma injustiça, é uma monstruosidade, é nos retirar nossa humanidade, aquilo que nos distingue enquanto seres humanos, é desumano, é inumano.

Na primeira aparição do coro na Antígona de Sófocles, o coro exalta a capacidade do homem – “Há muitas maravilhas, mas nenhuma/ é tão maravilhosa quanto o homem./ (...)/ homem de engenho e arte inesgotáveis. /(...)/ Soube aprender sozinho a usar a fala/ e o pensamento mais veloz que o vento (...)” (Sófocles, Antígona, linhas 385-405). Na versão da Antígona feita pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, e que se inicia com um prólogo no qual duas irmãs veem seu irmão desertor assassinado por um soldado da SS de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, Brecht mostra quão longe pode ir o homem quando não reconhece os limites da humanidade e, nas palavras dele, “pisa implacavelmente sobre os demais”, quando impõe uma morte na morte, negando os ritos fúnebres a um morto, negando que os familiares pranteiem o seu ente querido, negando o direito humano de dar um túmulo a um pai, a um marido, a um filho, a um irmão; o direito humano de seguir em frente depois de uma morte inexplicável, incompreensível, seguir em frente, digo, sem o peso insuportável da responsabilidade de não ter dado ao seu parente um enterro digno. Quando o homem capaz de mil maravilhas, nega ao seu semelhante a possibilidade de ser humano e cumprir os ritos fúnebres como um dever para com seu familiar, ele nega a própria humanidade; como diz Brecht: [cito] “O homem não leva em conta o que é realmente humano, e assim, converte-se ele mesmo em um mostro prodigioso” (Brecht – Antigona,  p.87).

Por isso, em homenagem ao meu pai, avô de meus filhos, marido de minha mãe, que ficou viúva aos 22 anos, faço um apelo à sociedade brasileira: deixem-nos enterrar nossos mortos!

O que a ditadura brasileira fez não é apenas uma injustiça, é uma monstruosidade.  Deixem-nos enterrar nossos mortos, prantear nossos pais, filhos, maridos, amigos, companheiros. Deixem-nos cumprir o dever imemorial e humano de enterrar nossos entes queridos. É o mínimo que podemos fazer por pessoas que lutaram para que vivêssemos em uma democracia, com direito de fazer e dizer o que julgamos melhor, desde que dentro das leis democráticas instituídas.

Queremos que conste a causa mortis no atestado de óbito de Gildo Lacerda, porque assim ficará posto que ele morreu pelas mãos de um Estado ditatorial e jamais traindo seus companheiros, como a farsa da versão oficial quer colocar.

Queremos que se identifique os restos mortais de Gildo, porque assim poderemos fazer os ritos que seus pais não puderam e dar a meu pai o mínimo que se poderia dar diante do que ele nos deu em nome da democracia – sua vida.

            Queremos que todos os arquivos da ditadura sejam abertos – e ainda há arquivos fechados, como revelou a Folha de São Paulo em 21 de outubro de 2013 ao relatar a microfilmagem que o serviço de informações da Marinha, o Cenimar, fez entre 1972 e 1974. O nome de Gildo constava de uma lista de militantes e dirigentes de organizações de esquerda que deveriam ser presos e assassinados mostrada ao líder camponês Manoel Conceição, em 1972, quando ele estava preso no Cenimar e no DOI Codi do Rio de Janeiro. Queremos que todos esses arquivos possam ser livremente acessados; queremos entender por que Gildo foi morto – porque não nos basta saber que ele lutava contra a ditadura, queremos reconstruir, reconstituir sua vida.

Deixem-nos enterrar nossos mortos e realizar o luto necessário. Deixem-nos enterrar nossos mortos para dar significado a sua vida e esclarecer para toda a sociedade este ponto obscuro de nossa história.

domingo, 20 de outubro de 2013

(DES) CAMINHOS DE UM TEXTO EM NOITE DE DOMINGO

Já tinha escrito bem umas trinta linhas sobre a polêmica das biografias não autorizadas quando me irritei, rabisquei tudo com raiva (ainda tenho o antiquado costume de escrever primeiro à mão, para depois transportar os garranchos para o computador), fiz uma bolotinha de papel amassado, devidamente arremessado em seguida no cesto dos recicláveis. O texto estava muito chato, nenhuma novidade, ao contrário, era muito mais do mesmo que já havia sido dito e repetido durante a semana. Ainda tentei pedir ajuda aos universitários cadernos especiais dos jornais de domingo, a ver se encontrava alguma inspiração, um "gancho" original, como a gente costuma dizer em linguagem jornalística. Nada. Vai ver o assunto esgotou-se mesmo. Além do mais, para mim a questão é tão cristalina, biografias devem ser livres, sem necessidade de prévia autorização, a consagrar não apenas a máxima da liberdade de expressão e do direito à informação, mas também a premissa que diz que as histórias de pessoas públicas à humanidade pertencem, como patrimônio coletivo indispensável à construção de nossa memória e identidade. Sobre essas trajetórias, é possível construir diferentes narrativas, versões que se entrelaçam e se questionam, num exercício honesto e equilibrado de busca da melhor versão possível dos fatos. Parece-me tão óbvio. É? Não sinto entusiasmo algum em investir outras tantas linhas nesse discurso. Melhor tomar banho. Quem sabe aparece alguma ideia melhor, mais palpitante, como diria uma de minhas primeiras chefes e editoras, ainda no início dos anos 1990, quando eu era um jovem primeiro anista do curso de Jornalismo, a perseguir pautas relevantes e arriscando textos que pudessem ser encantadores (assim eu achava) para os professores. Ela me deixava experimentar, corrigia, sugeria, com toda a paciência do mundo. Era delicada até para dizer "meu querido, aqui não dá, está piegas demais, literatice sem sentido. Vai lá e melhora". Pois neste domingo me lembrei dela e lá fui eu então para o chuveiro tentar esquecer as biografias e deixar vir à tona outro assunto. Pode parecer tremenda sandice, só coincidência, mas o banho tem sido momento mágico para desencalacrar pautas que se anunciavam ameaçadoras, incógnitas indecifráveis, ajudando a água morna ainda a jogar luz sobre trechos de textos com os quais já tinha brigado com todas as minhas forças, sem ficar satisfeito com o que tinha escrito. Um artigo sobre a atual fase do Santos? Não quero. Chato. Monótono. Repetitivo. A cara do time. É, o time anda numa draga danada, jogos sofríveis, de dar nervoso - ou sono. Está certo, ganhou ontem. Não fez mais que a obrigação. Foi goleada? Só fez a lição de casa. Quero só mais cinco pontos e vou finalmente respirar aliviado, Claudinei. Duas vitórias. Exatamente. Outro estalo. É, pode ser, resenhas dos últimos livros que li. Pensei em dois, em especial. "A maçã envenenada", do Michel Laub, que rompe com a narrativa linear, investe nos períodos longos e tem como pano de fundo um show do Nirvana para mais uma vez combinar angústias individuais com tragédias coletivas e contar uma história de liberdades e prisões da alma, incluindo suicídios. "Reprodução", do Bernardo Carvalho, faz uso de fluxos de consciência e das repetições de falas e raciocínios de um jovem estudante de chinês e de uma delegada descontrolada para criticar duramente a sociedade da avalanche de informações, consumidas rapidamente em blogs e colunas de ditos "formadores de opinião", numa tendência que só faz reforçar a carência de conhecimento mais aprofundado e a fragilidade dos argumentos como marcas do nosso tempo, a "era das redes". Concordo, são dois bons livros, mas não foram arrebatadores, ao menos para mim. Não quero escrever sobre eles. O drible, do Sergio Rodrigues? Esse me tocou profundamente, na alma! E não só porque fala de futebol. Mas ainda não terminei. Não, ainda não. Estou no finalzinho. Decidi corrigir provas, à espera da tão desejada inspiração para um texto. E, sei lá, num estalo, lembrei que, depois de quase quinze anos atuando como professor universitário, posso dizer modestamente que ajudei a formar 24 turmas de jornalistas. Não sei se isso é bom ou ruim. Noutro relâmpago de memória, e comecei a gargalhar sozinho, me veio à cabeça uma situação recentemente vivida na universidade. Estava no posto bancário, pilha de boletos na mão, aproveitando o intervalo da aula para resolver as pendências financeiras do mês. Comecei a ouvir as vozes de duas meninas, uma mais aguda, outra mais grave. "Meu, aquela vadia agora resolveu me ignorar. Não respondeu as mensagens que mandei no final de semana. Sabe o que é isso? Fal-ta de pê-nis! Fal-ta de pênis!", cantava uma delas, a mais estridente, no ritmo do "é cam-pe-ão" entoado nas arquibancadas. Não pude resistir. Abandonei o caixinha e virei para ver quem eram aquelas figuras. Ficaram vermelhas. "É... então, vamos ao Hopi Hari no final de semana?", emendou sem conseguir remendar a de voz mais forte. Engraçadíssimo, mas também não rende mais do que isso. É a história quem nos diz o tamanho que quer ter. Não adianta forçar. Enquanto ainda ria com as lembranças da cena, Daniel vociferava na frente da televisão, contra o vídeo-game. "Ah, meu deus, assim não dá. Esse cara é muito ruim. Grosso! Não acerta um chute. É uma calamidade! E esse juiz é um roubão, não marca uma falta. Torce para o outro time! Só pode". Comecei a rir de novo. E nada de aparecer um texto, curtinho que fosse. Fui acompanhar a rodada do Brasileirão. Futebol sempre alimenta boas histórias. Vi a vitória do São Paulo, o empate entre Internacional e Grêmio, o empate entre Vasco e Botafogo. Nenhuma novidade. Nenhum texto. Já é final de noite de domingo, primeiro dia do horário de verão, por quem não tenho apreço algum. Vai tocar a maldita musiquinha do Fantástico. Não quero mais escrever.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A INACEITÁVEL TENTATIVA DE PROIBIR A PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS

O movimento dos músicos que de forma autoritária tenta proibir a livre publicação de biografias pretende evidentemente cercear a liberdade de expressão e ter sob fino controle as narrativas que serão construídas sobre eles. Desejam ardentemente transformar a História, fascinante porque rica em versões e contradições, em via de mão única, impositiva, verdade absoluta e inquestionável, um exercício de chapabranquismo oficialesco, a derramar elogios sobre tais celebridades, como se fossem sujeitos supremos, perfeitos e infalíveis. Se for dessa maneira, uma história só de "coisas boas" (sempre nas avaliações deles, claro), vão adorar ver suas biografias publicadas. Não seria exercício jornalístico, mas estratégia de marketing. E, sim, a assessoria de Chico Buarque, quem te viu, quem te vê, confirmou à Folha de São Paulo que ele faz parte do time da truculência, acreditem.  

Tenho cá comigo, no entanto, que esse bloqueio ultrapassa essa esfera da discussão do "a quem pertence a história" para assumir ares ainda mais nefastos de "quanto custa essa história" - e, se as editoras pagarem bem aos cantores potencialmente biografados, talvez e quem sabe eles possam muito generosamente mudar de posição e, num átimo de respeito pelo interesse público, conceder imediata autorização para que suas vidas sejam contadas. Fazem valer a máxima do "pagando bem, por que não?". 

Na Folha de hoje, diz o sambista Wilson das Neves que "tudo o que se usa, paga", para completar: "Todo  mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?". E fulmina: "É até bom um dinheiro que entra na conta. Só estou esperando a minha vez". 

Não vou nem me alongar no mérito de discussão mais profunda, a escrachada mercantilização de vidas e trajetórias humanas que são públicas, histórias que, por direito, pertencem à humanidade. Para além dessa dimensão, o discurso do sambista mistura alhos com bugalhos para propositalmente confundir, numa torpe tentativa de seduzir e conquistar adeptos que, em sociedade cada vez mais pautada pela força de grana que ergue e destrói coisas belas (lembra, Caetano?), só pensam na bufunfa, nos bolsos cheios, no valor de troca, e não no valor de uso, para resgatar expressões marxistas. 

Vamos lá: quem faz a capa, quem diagrama, quem faz a revisão, quem fotografa e quem apura, pesquisa e escreve o texto de uma biografia está evidentemente sendo remunerado por trabalhos concretamente desenvolvidos. Numa sociedade capitalista, parece-me que a troca da força e capacidade de produção (braçal e intelectual) por remuneração justa e digna, ao menos em tese (chama-se salário, genericamente), é a única maneira de garantir sobrevivência. Agora, a dúvida: qual é o trabalho desenvolvido pelo possível biografado, a merecer remuneração? Qual o tempo socialmente gasto por ele diretamente nessa produção da obra? A história já está lá, é a vida dele, já aconteceu. Será apenas narrada e tornada pública. E quem vai correr para costurar as informações é exatamente o biógrafo. São pressupostos e ações completamente diferentes.

Percebam como esse raciocínio é reacionário e perigosíssimo: todos os dias, nas diferentes redações de jornais, emissoras de TV e de rádio e nos portais, pauteiros pautam, diagramadores diagramam, repórteres entrevistam e escrevem, editores editam. Trabalham todos com histórias que não são exatamente as deles, mas as dos outros. E são todos remunerados por todas essas distintas atividades. A seguir o raciocínio estapafúrdio de gente como Wilson das Neves (que não é voz isolada), todas as fontes entrevistadas para todas as matérias, nas mais diferentes editorias (Política, Economia, Internacional, Cultura, Cidades, Esportes), distintos veículos, precisariam ser também remuneradas. Afinal, o assunto do produto não ganha? E estaria assim definitivamente enterrada e inviabilizada a prática jornalística, ao menos aquela que pretende publicizar a melhor versão possível dos fatos, em nome dos direitos de cidadania e do fortalecimento da democracia. 

Mais triste é constatar que esse cerco à liberdade de expressão está sendo patrocinado por muitos daqueles que sofreram diretamente as agruras da repressão, nos terríveis anos de chumbo da ditadura militar. 

É proibido proibir. Vai passar. E, apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia.  

domingo, 6 de outubro de 2013

MARINA SILVA E EDUARDO CAMPOS CHACOALHAM A DISPUTA PRESIDENCIAL

Crédito - www.ultimosegundo.ig.com.br

Direto, sem rodeios ou firulas, tentando observar de maneira mais detalhada alguns elementos da fotografia política produzida neste início de outubro de 2013, um ano antes da eleição presidencial:

* A filiação de Marina Silva ao PSB de Eduardo Campos faz escorregar ladeira abaixo, e em alta velocidade, o discurso do "somos diferentes, não pensamos apenas no poder", que tanto ajudou a pavimentar a credibilidade e a imagem política dela. Marina afirmou em várias ocasiões que desejava fundar a Rede porque todos os demais partidos existentes "não serviam, estavam viciados". Quando o registro da Rede foi negado pelo Tribunal Superior Eleitoral, ela mudou o rumo da prosa e rapidamente correu para buscar abrigo no "mais do mesmo". Não há malabarismo de narrativa em entrevista coletiva que seja capaz de negar esse movimento. Será preciso agora acompanhar a repercussão desse gesto entre os entusiastas e ativistas que sonhavam com o que consideravam um fato novo na política nacional. Nas redes sociais, não são poucos os que manifestam decepção com a escolha da ex-senadora.

* Pragmaticamente, a aliança Rede-PSB tem potencial político e eleitoral para construir terceira via de peso e fazer ventar forte num cenário que anunciava mais uma vez o carcomido e insuportável cabo de guerra entre PT e PSDB.

* Eduardo Campos, líder regional, figura conhecida e com presença razoavelmente consolidada no Nordeste, teria dificuldades para entrar no Triângulo das Bermudas (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), estados decisivos para as pretensões de qualquer presidenciável. Com Marina, a carregar significativo capital político entre as classes médias urbanas e intelectualizadas do Sudeste (20% de votos entre os paulistas em 2010, 31% entre os cariocas, outros 20% entre os mineiros), o governador de Pernambuco fura esse bloqueio.

* João Santana, marqueteiro oficial do PT, não se cansa de cantar em verso e prosa que a presidenta Dilma Rousseff será reeleita com facilidade em primeiro turno em 2014. A considerar as notícias veiculadas pelos jornais e portais neste final de semana, os assessores palacianos já não parecem mais tão tranquilos em relação a esse diagnóstico. Em condições normais de temperatura e pressão, e salvo hecatombe, Dilma é presença líquida e certa num eventual segundo turno, ainda que se considere o patamar de votos dela até aqui mais baixo captado pelas pesquisas (30%, logo depois das jornadas de junho). Os governistas estavam prontinhos para mais um embate com o PSDB, jogo que já conhecem de longa data. As cartas ficarão mais confusas e embaralhadas se os adversários na segunda etapa forem Campos-Marina, não só pela novidade que representam, exigindo a reformatação de estratégias e de discursos, que serão publicizados pela primeira vez (o risco é sempre mais elevado), mas também porque, de alguma maneira, a dupla pode ser também considerada herdeira do lulismo. O atual governador de Pernambuco foi ministro da Ciência e Tecnologia de Lula; a idealizadora da Rede, ministra do Meio Ambiente. Não podem ser considerados adversários vindos das fileiras da oposição dura aos doze anos de administração do PT.

* Se o ex-presidente Lula já manifestava disposição para percorrer o país a defender a reeleição de Dilma, provavelmente multiplicará por mais dez essa vontade, diante desse novo cenário mais complexo, nebuloso e arisco. O presidente mais bem avaliado da democracia brasileira poderá mais uma vez transferir parcela representativa de sua popularidade para a sucessora; ao mesmo tempo, pisará em ovos e será obrigado a calibrar o discurso. Não haverá margem para bater em ex-aliados, ao menos não da maneira como ele se vê livre e à vontade para fazer quando os adversários são os tucanos.

* O PMDB de Michel Temer, Renan Calheiros e José Sarney esfrega as mãos e não esconde o sorriso largo no rosto, já que, como definitivo parceiro preferencial do governo, sem mais o PSB a incomodar e reivindicar essa condição, será ainda mais importante para garantir a reeleição de Dilma, principalmente nas prefeituras dos rincões do país. Vai cobrar - mais - a fatura, já elevadíssima.

* A candidatura que sofre mais abalos é a do senador Aécio Neves. Se o PSDB já tinha dificuldades para pavimentar unidade interna e conter as ambições do ex-governador José Serra, além de patinar nas pesquisas e ainda em relação a programas e narrativas alternativos ao projeto petista, vê-se agora diante da sombra crescente e bojuda de Campos-Marina, que ameaça deixar os tucanos de fora do segundo turno, fato que representaria uma tragédia para o partido. Aécio corre até o risco de perder a condição de queridinho da mídia grande, caso os jornalões e revistões enxerguem na Rede-PSB discurso palatável e condições mais efetivas para derrotar o PT.

* A lógica de alianças nos estados passará provavelmente por reavaliações e rearranjos. O anunciado pacto de não-agressão entre Aécio e Campos tinha espaço num cenário em que o primeiro alcançava desempenho muito superior nas pesquisas eleitorais, em relação ao segundo (15% contra 5%, na média e arredondando). Nessas condições, sobravam tapinhas nas costas e apertos de mãos para fotógrafos. Com os dois se digladiando para definir quem vai enfrentar Dilma num eventual segundo turno, será que vão continuar trocando juras de amor eterno e dedicando músicas um para o outro? Aécio continuará aceitando tranquilamente, por exemplo, que o governador Geraldo Alckmin dê palanque também para Campos, no maior colégio eleitoral do país, e onde tucanos e pessebistas desejam aparecer regionalmente coligados?    

* Se o tempo de televisão já pautava as alianças, cada segundo extra cobiçadíssimo, será agora disputado a tapa - ou na base da farta distribuição de cargos, emendas e verbas públicas, nos diferentes níveis de governo.

* A declaração de Marina na entrevista coletiva que oficializou a filiação dela ao PSB - "é preciso acabar com o chavismo do governo" - é lamentavelmente mais um indício a sugerir que o debate político da próxima disputa presidencial deverá ser novamente marcado por nível baixíssimo, a exemplo do que já se viu em 2010. Não será surpresa se a campanha enveredar pelos descaminhos de uma guerra santa ainda mais conservadora e pestilenta.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

FRAGMENTOS AGONIADOS DE UM SANTOS X SÃO PAULO

A aula era sobre a construção da hegemonia dos Estados Unidos, disciplina "História Contemporânea". Conversávamos a respeito das frustrações provocadas pela administração do presidente Barack Obama. Eram quase dez da noite. Mentalmente, sem que ninguém percebesse, sem perder o fio da meada nem deixar de dar atenção aos alunos, desejei que o Santos fizesse um bom jogo. E bati com o dorso do dedo indicador três vezes na tela do celular, como sempre faço no início de cada partida. Para dar sorte. Funciona. Acreditem.

Pouco mais de vinte minutos depois, o celular, ligado mas colocado no modo silencioso, como faço em todas as aulas, até para conseguir controlar o tempo, anuncia uma nova mensagem. No telão, sala no escuro, em silêncio, víamos uma interessante entrevista do jornalista David Remnick, biógrafo do presidente estadunidense. Relutei. Nada de atrapalhar a aula. Consultei discretamente a mensagem. "Gol! Edu Dracena de cabeça, no terceiro andar!". Era um colega professor, solidário ao meu drama de, sem jamais deixar de lado o profissionalismo e a ética docentes, tentar acompanhar à distância o que acontecia na Vila Belmiro. Não movi um músculo. Comemorei em silêncio. Não duvidem. Funciona. 

Quando a aula acabou, perto das onze da noite, o primeiro tempo também já tinha chegado ao fim. Como nenhuma outra mensagem havia dado o ar da graça, entendi que ainda estávamos na frente. Acertei. Vi o gol do Edu na sala dos professores, antes de assinar o ponto, nos melhores momentos exibidos durante o intervalo da partida. Voei para o estacionamento, mas não quis ligar o rádio - acreditem, dá um azar dos infernos, o Peixe invariavelmente perde quando resolvo ouvir os jogos recorrendo ao meu amigo falador do carro. Preferi sintonizar música brasileira, no máximo volume, para não correr risco de ouvir gritos e rojões, em caso de empate do São Paulo.

Mais uns dez minutos e, em plena avenida Faria Lima, perto do shopping Iguatemi, o celular piscou de novo. Hesitei. Segundo? Empate? Esperei parar num farol vermelho. Não resisti. Cliquei. "Dois a zero!", torpedo curto e objetivo. Era outro amigo santista, a também fazer parte da rede de solidariedade que pretende informar um professor santista em desespero.

Cheguei em casa a tempo de ver os últimos vinte minutos do clássico. Busquei rapidamente abrigo na ponta esquerda do sofá, lugar da sorte, controle remoto na mão direita, como mais um amuleto. Só então descobri que jogávamos com um a menos. Alisson tinha sido expulso com justiça ainda no final do primeiro tempo. Imaginei que ia sofrer, me preparei para ver o bicho pegando naqueles minutos derradeiros. Mas o São Paulo sequer conseguia chegar perto da nossa área. O Santos jogava muito bem, coeso e de maneira inteligente. 

Ainda pude ver o terceiro gol, marcado pelo Leo. Tudo o que tinha sido até então comedido e ético silêncio transformou-se em saltos e gritos que, quase meia-noite, ameaçaram acordar o bairro de Perdizes, quem sabe também os vizinhos da Pompéia, do Sumaré, da Lapa... Por alguns segundos, tive receio de ser expulso do prédio. Fiquei esperando o interfone tocar, alguém do outro lado reclamando, dizendo não muito educadamente (com razão) 'quero dormir'. Nada. Mudei de canal, para ver os comentários e as entrevistas dos técnicos - aquilo que aqui em casa a gente chama de "conversinha de futebol". Fui dormir muito mais leve.