sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

UM 2012 INDIGNADO PARA TODOS!


"A palavra indignação surgiu como uma definição do que se pode esperar das pessoas quando abrem os olhos e vêem o inaceitável. Pode-se adormecer um ser humano, mas não matá-lo. Em nós há uma capacidade de generosidade, de ação positiva e construtiva que pode despertar quando acompanhamos a violação dos valores. A palavra “dignidade” figura dentro da palavra “indignidade”. A dignidade humana desperta quando é encurralada. O liberalismo bem que tentou anestesiar essas duas capacidades humanas - a dignidade e a indignação-, mas não conseguiu".

(Stéphane Hessel, 94 anos, em entrevista publicada pela Agência Carta Maior. Ele é autor do livro "Indignem-se". Participou da Resistência contra o nazismo e ajudou a escrever a Declaração Universal dos Direitos Humanos). 




"Se há uma coisa que sei, é que o 1% adora uma crise. Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que fazer, eis aí o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo. Só existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo bastante grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para dizer: “Não. Nós não vamos pagar pela sua crise”.
(Naomi Klein, autora de "A Doutrina do Choque", em discurso ao Movimento Ocupar Wall Street)



PORQUE...



segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

UM SANTISTA TRISTE, MAS ENCANTADO COM O FUTEBOL DO BARCELONA

A adrenalina voltou aos níveis normais, vou tentar escrever com distanciamento e equilíbrio. Estou espantando com a quantidade de sábios que apareceram nos programas esportivos e nas redes sociais, desde ontem, apresentando as fórmulas mágicas para derrotar o time do Barcelona. Já teve até portal na internet que cravou em manchete que "Muricy destruiu o sonho santista cultivado durante seis meses". É fácil? Deixo aqui então uma sugestão: escrevam para o José Mourinho, técnico do Real Madri (nem vou falar do Santos, que "amarelou", tem um time "fraco", foi "humilhado"), e contem para ele com detalhes os tais segredos do sucesso. E vamos aguardar o resultado do próximo Real x Barça. 

A realidade é a seguinte, meus caros: sofri, perdi, chorei. Vi o pequeno Daniel também chorar e não querer ver o segundo tempo, para não sofrer mais ainda. Passei o domingo de ressaca. Foi triste e doído. Claro que eu queria conquistar a terceira estrela, desejava muito que o Santos fosse tricampeão do mundo. Mas seria um título falso, mais uma das injustiças do nosso futebol. Porque reconheço a infinita superioridade e sou cada vez mais apaixonado pelo futebol jogado pelo Barcelona. É mágico, dá gosto de ver. É, disparado, o melhor time que já vi jogar. E escrevo isso com tranquilidade, porque desde antes da partida, a quem me perguntava, eu respondia que só uma hecatombe seria capaz de fazer o Santos ganhar do Barça. 

Porque a equipe da rebelde Catalunha manda às favas as regras, os esquemas, os medos, a burocracia, o "guardar posições" e simplesmente adora jogar futebol, com o coração, como se jogasse uma pelada de fundo de quintal, um futebol que o Brasil inventou e com o qual encantou o mundo, mas que deixou esquecido em algum lugar do passado, em nome da "eficiência", dos empresários, dos "proxetos" dos "profexores", dos desmandos de uma CBF que faz a seleção jogar em um pântano no Gabão apenas para dar conta de compromissos políticos e de patrocinadores, de uma emissora de TV que não se cansa de repetir que "o melhor futebol do mundo está aqui". 

Não está. O Barça prova que não está. E vira as costas para o tal do "futebol de resultados", aquele que diz que "um a zero é goleada", para jogar com absoluta alegria, ímpeto, vontade, paixão, precisão, combinando arte com eficiência, escancarando ao mundo que é possível jogar bonito, no ataque, e ser campeão. Nos últimos anos, foram 13 títulos, em 16 disputados. Fantástico. Mestre Telê Santana adoraria treinar esse time. Seria justíssimo.

O Muricy errou ao escalar três zagueiros? O Santos respeitou demais o Barcelona, resvalou de certa forma num sentimento de medo? Talvez. Sinceramente, não penso que esteve em campo o "complexo de vira-lata", como escreveria Nelson Rodrigues. Os santistas simplesmente ficaram aparvalhados, atônitos diante de tanta competência, acuados com a fúria catalã, sem saber como reagir. O Santos fez no domingo o que pôde. E, ainda bem, decidiu não partir para os pontapés e a violência. Foi uma postura que fez jus a um 2011 glorioso, que merece também ser comemorado. Mas nada disso tem importância ou faria mudar o vencedor da partida de ontem. Estamos discutindo alegorias e adereços, procurando culpados (uma característica da nossa crônica esportiva que nós, torcedores, repetimos e reverberamos), quando de fato devemos valorizar e exaltar a genialidade do time adversário. 

O principal? Um time que marca sob pressão, o campo inteiro, durante toda a partida (que fez os laterais santistas jogarem na bandeirinha de escanteio do campo de defesa); que privilegia a posse de bola (ninguém tira a redonda deles); que toca de pé em pé, sem errar passes ou rifar a bola (até o goleiro encontra espaços e se recusa a dar bicões); que tem jogadores que mudam de posição como se mudassem de uniforme, com habilidade e tranquilidade impressionantes (no quarto gol, Daniel Alves jogou como ponta esquerda); que, quanto mais marca gols, mais quer marcar; que tem um gênio chamado Messi e vários outros craques (a matada de bola de chaleira de Xavi no primeiro gol é impressionante) - e que sabe como usá-los (coisa que a seleção da Argentina ainda não aprendeu); que joga sempre em direção ao gol, sem firulas; e que faz de tudo isso uma filosofia de jogo, pois já nas categorias de base os jogadores são formados para dar conta desse jogo. O técnico Guardiola, em sua entrevista coletiva, depois da partida, deu a senha: nove dos onze que terminaram a final contra o Santos foram formados nos centros de treinamento da própria equipe catalã. Custo zero, "zero euros", como ressaltou Guardiola.

Hoje, qualquer time brasileiro seria goleado pelo Barça. Com facilidade. A seleção brasileira do Mano perderia para o Barça. Sem impor muita resistência. O resto é papo furado. Ontem, o Barcelona me fez acordar. E mostrou que estamos, aqui no Brasil, resignados e contentes com muito pouco. Quem dera os times brasileiros estivessem mesmo dispostos a aprender com o Barcelona. "Meus pais e avós me diziam que o Brasil jogava assim", fulminou Guardiola, também na coletiva. Certeiro. Mas minha sensação é que essa disposição para mirar o exemplo do Barça ficará só discurso, será apenas fogo de palha, mais uma vez. Infelizmente.

A PRIVATARIA É TUCANA. O SILÊNCIO É MIDIÁTICO. E TAMBÉM PETISTA.

Acho difícil, mas, se dúvidas ainda restavam, a máscara caiu. Definitivamente. O silêncio venal da grande mídia carcomida a respeito do livro "Privataria Tucana", escrito pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr, revelou com requintes de crueldade que os jornalões, revistões e demais veículos midiáticos ditos "de referência" abandonaram lamentável e perigosamente o ideal do jornalismo como serviço público, uma narrativa destinada a garantir o direito à informação, para abraçar, sem escrúpulos e com convicção, as tarefas que deveriam ser cumpridas por partidos de oposição, de forma mais geral, e a defesa de uma figura política, mais especificamente - no caso, falamos do ex-governador paulista José Serra.

Nos dias que se seguiram à chegada de "Privataria Tucana" às livrarias, apenas a revista Carta Capital, a TV Record e o portal Terra se dedicaram a noticiar e repercutir as maracutaias patrocinadas por tucanos de plumagem nobre (José Serra à frente) durante os anos dourados (para alguns) de privatização vividos durante o governo FHC. O livro, diga-se de passagem, é bastante bem documentado (quase 1/3 da obra corresponde a reproduções de documentos oficiais, obtidos legalmente, e disponíveis desde muito tempo a qualquer um que estivesse disposto a investigar aquele período recente da história brasileira). 

Revela uma rede complexa de negociatas, tráfico de influência, pressões, pagamento de propinas, contas secretas em paraísos fiscais, desvio de recursos públicos (que foram parar em contas privadas). Em apenas um dia, foram vendidos 15 mil exemplares do livro; uma semana depois, já eram 30 mil exemplares. A obra entrou para a relação dos mais vendidos da semana na revista Veja (quanta ironia!) e, segundo estimativas da Geração Editorial, pode superar a marca dos 13o mil exemplares vendidos. No entanto, apesar de dar conta dos mais diferentes critérios jornalísticos de noticiabilidade - interesse público, atualidade, universalidade, impacto/alcance -, a exigir que o livro fosse debatido publicamente, o que a mídia velha fez foi se calar, talvez imaginando ingenuamente que o silêncio seria suficiente para abafar a discussão.

"Todos os colunistas e chamados 'formadores de opinião' da mídia, tal qual avestruzes, decidiram enfiar a cabeça no chão e fingir que o perigo, uma vez ignorado, poderia simplesmente deixar de existir", escreveu o jornalista Leandro Fortes, na matéria de capa de Carta Capital desta semana. "Assim, diante de um dos maiores fenômenos editoriais da história do Brasil, a velha mídia optou por um silêncio tão obsequioso quanto revelador. Em resumo, caiu a máscara da isenção e independência editorial que a maioria dos jornais e revistas insistiu em usar nas duas últimas eleições presidenciais", completou.

Não entenderam os barões midiáticos, no entanto, que junto com a máscara da imparcialidade, caíram também os monopólios das verdades. As redes sociais e a blogosfera, se não têm o poder e o alcance dos grandes veículos de comunicação, são já capazes de falar mais grosso, de comer pelas bordas e de furar os bloqueios dos discursos únicos, pasteurizados e combinados. A rede ofereceu mais uma evidência de que os assuntos que chegam/chegarão à esfera pública não serão mais apenas aqueles escolhidos e selecionados  pelos mandarins do jornalismo, expressão muito usada pelo jornalista Mino Carta.

"Trata-se da revelação final de que, incumbido de comandar uma marcha de insensatos, o baronato da imprensa nacional vive em absoluto descolamento com a realidade, encastelado em outro Brasil, bizarro e etéreo", continua Fortes, na Carta Capital.

Mas, para além da mídia que se cala, há ainda outro silêncio lamentável e perigoso nessa história toda - o do Partido dos Trabalhadores. Por muito menos, em outros momentos da história recente do país, parlamentares petistas já teriam ocupado tribunas da Câmara e do Senado para discursar contra a privataria, além de investir na coleta de assinaturas para instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar as denúncias. Salvo engano, teria também o PT mobilizado as bases e os movimentos sociais para protestar contra a privataria. 

Os tempos, no entanto, são outros. O PT está no poder. Transformou-se no partido da ordem. E parece muito pouco disposto a levantar a voz contra descalabros cometidos durante a era FHC - a não ser em épocas eleitorais, como estratégia de marketing. A CPI da Privataria apareceu no Congresso por obra e iniciativa do deputado federal Protógenes Queiroz, do PC do B paulista, e tinha recebido, até o último final de semana, 173 assinaturas de apoio (duas a mais que o mínimo necessário para a instalação). Só o PT tem 88 deputados federais; se considerarmos a base governista, esse número ultrapassa facilmente os 350. Se houvesse vontade política e determinação do partido, a Comissão se transformaria rapidamente em fato consumado. Até porque não se trata apenas de criá-la - é preciso indicar presidente e relator, os membros permanentes e os suplentes e desenvolver efetivamente os trabalhos (buscar documentos, ouvir depoimentos, convocar os envolvidos...). Ou seja, politicamente, é preciso mais, muito mais que apoios no papel.

O presidente da Câmara dos Deputados, no entanto, caminha em sentido exatamente oposto. A ser verdadeira a informação publicada pela coluna "Painel" da Folha de São Paulo de 16 de dezembro (que não foi desmentida...), Marco Maia (PT/RS) apressou-se em tranquilizar os colegas tucanos, dizendo que "não há fato específico a justificar a criação da CPI". Para cerrar fileiras com gente como Reinaldo Azevedo ou Merval Pereira, por exemplo, só faltou dizer que o livro é uma "coleção de bobagens" e que Amaury "está sendo investigado pela Polícia Federal", na torpe tentativa de apenas desqualificar o autor do livro, sem contestar o conteúdo da investigação. Provavelmente o presidente da Câmara jogue com o fator tempo - o recesso parlamentar já é uma realidade. Em fevereiro, quando os trabalhos forem retomados, talvez a opinião pública já tenha esquecido a obra - e a CPI. Pode ser que Marco Maia - e o PT - calculem que, preservando os tucanos aqui, serão protegidos pelo PSDB mais à frente, quando denúncias atingirem o governo federal. É o pacto da mediocridade.

O PT acomodou-se, é verdade. Acovardou-se. É movido e agarra-se a um projeto de poder. Tem medo. Porque há outras perguntas a incomodar. O livro de Ribeiro Jr, afinal, faz referências nada elogiosas às nojentas disputas internas vivida pelo Partido dos Trabalhadores. Desnuda brigas intestinas dramáticas e traz à tona, com riqueza de detalhes, relações para lá de espúrias mantidas por xerifes que andam com a estrela vermelha no peito e - pasmem - colunistas nada progressistas abrigados nos grandes veículos de comunicação, em vazamentos de informações que se propõem apenas a destruir companheiros-inimigos. É o trágico fogo amigo. "No livro de Ribeiro Jr, o presidente do PT, deputado Rui Falcão (SP), aparece como vazador de informações da campanha de Dilma e epicentro de uma luta intestina contra o grupo de Fernando Pimentel, atual ministro do Desenvolvimento", alerta a matéria de Leandro Fortes.

Será que o aprofundamento das investigações sobre a privataria tucana levaria também a descobertas escabrosas sobre o universo petista? É uma dúvida - que, a depender da disposição do governo federal e dos representantes do PT no Parlamento, permanecerá sem respostas.  

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

AINDA SOBRE A DEFESA DO DIPLOMA DE JORNALISMO

Minha satisfação confessa por conta da aprovação, em primeira votação no Senado Federal, da volta da obrigatoriedade da formação específica para o exercício do Jornalismo fez com que alguns amigos e conhecidos, dos mais diferentes circuitos de relações, ficassem espantados e me perguntassem: "mas como você pode ser a favor do diploma? É anacrônico, reserva de mercado". 

Minha resposta primeira, nessas situações, foi defender, em sentido mais amplo, a universidade como espaço privilegiado e único de reflexão e de construção de conhecimento crítico, onde é possível aprender, experimentar, criticar, questionar e até errar - sem as cruéis pressões impostas pelo mercado. Nessa perspectiva, o curso superior específico é fundamental para a formação de jornalistas - assim como a máxima vale também para os advogados, economistas, médicos, engenheiros, arquitetos, psicólogos, enfermeiros e tantas outras profissões. Devolvo a pergunta - se são tantas as profissões (e os diplomas, por consequência), por que apenas o de Jornalismo representa a tal da "reserva de mercado"?

A tréplica dos que não querem o diploma segue em consonância com as falas dos sete senadores que votaram contra a obrigatoriedade (Fernando Collor de Melo e Aloysio Nunes Ferreira Filho entre eles), que alegaram que o fizeram por achar que o diploma é "um impedimento ao exercício da liberdade de expressão". Pergunto: como assim, se já há espaço garantido, atualmente, para a colaboração de colunistas, cronistas, articulistas, resenhistas, comentaristas e tantos outros "istas", que não são necessariamente jornalistas? 

A própria Proposta de Emenda Constitucional (PEC) analisada pelo Senado diz que "o exercício da profissão de jornalista é privativo do portador de diploma de curso superior de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, expedido por curso reconhecido pelo Ministério da Educação, nos termos da lei", mas permite (constitucionalmente, é importante lembrar) a "atuação do colaborador, assim entendido aquele que, sem relação de emprego, produz trabalho de natureza técnica, científica ou cultural, relacionado com a sua especialização, para ser divulgado com o nome e qualificação do autor",  respeitando ainda "os jornalistas provisionados que já tenham obtido registro profissional regular perante o Ministério do Trabalho e Emprego". Tudo isso está no texto da Emenda. 

Claro está que os legisladores - e as entidades profissionais envolvidas no debate, como a Federação Nacional dos Jornalistas e o Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo - entendem que a produção de notícias e de reportagens (reconhecer/apurar/pesquisar/ entrevistar/redigir/editar, manifestações máximas e razões de ser do fazer jornalístico) cabe exclusivamente aos jornalistas, profissionais devidamente capacitados e habilitados para o exercício ético e responsável dessas complexas tarefas. Mas não negam - ao contrário, reconhecem - que os colaboradores têm contribuições enriquecedoras a oferecer. Que assim seja. Transportando para os gêneros - jornalistas ficariam com o informativo, o interpretativo o opinativo e o investigativo; colaboradores, apenas com a análise e a opinião. As fronteiras ficam muito bem estabelecidas - e trabalha-se com a perspectiva de complementaridade, não de exclusão. 

A bola volta para os opositores da formação específica. Alegam então que a liberdade de expressão, constitucionalmente garantida a todos os brasileiros, fica limitada pelo diploma, pois só os jornalistas podem trabalhar em jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV e na internet, alijando dessa possibilidade todo o restante da população. Pergunto: com o fim do diploma, significaria dizer então que todos os 190 milhões de brasileiros, se assim o desejassem, teriam o legítimo e legal direito de escrever, diariamente, em todos (sem exceção) os veículos jornalísticos? Comecemos todos, e imediatamente, a mandar os textos para a Folha, a Veja, a Globo, o portal Terra e todos os demais. Vão publicar esse material? Todo esse material? Não? Por quê? Mas não são eles os primeiros a defender a liberdade de expressão, para todos, sem distinção? Lamento, mas é exatamente essa a situação que se impõe - e, se apenas um brasileiro tiver seu texto recusado ou não publicado, a restrição à "liberdade de expressão" permanecerá "desrespeitada". Não é assim? 

Sugiro aqui uma analogia, para que possamos pensar juntos: é a Constituição Federal quem também garante o amplo direito à defesa. No entanto, nos tribunais e em processos (exceção às pequenas causas, e ainda assim até determinado valor), preciso de um advogado para me defender e me representar, em diferentes áreas e situações. Não posso, por ser jornalista, fazer sozinho essa defesa - tal prerrogativa não me é atribuída. Há uma aparente restrição. Por isso devo então alegar que meu direito à defesa foi limitado, foi derrubado? Obviamente que não. Ao contrário. Significa reconhecer que é muito melhor e mais benéfico buscar um profissional qualificado para cumprir a tarefa - exatamente aquele que estudou e se formou em curso superior específico, o de Direito.

Usei o exemplo do Direito para retornar ao Jornalismo e lembrar que a sutileza é a seguinte: confunde-se (muito provavelmente de forma proposital, para confundir as cabeças) a liberdade de expressão com o exercício da profissão. Ora, assim como um advogado tem muito mais condições de me representar com competência, é justamente o jornalista bem formado (em curso específico, para que possa compreender os meandros da área em que atua) aquele que vai trabalhar para garantir relatos jornalísticos responsáveis, diversos e plurais, capazes de estabelecer a mediação entre as mais distintas e antagônicas correntes de pensamento da sociedade. Ou seja, muito longe de construir qualquer tipo de obstáculo, o jornalista com formação específica é precisamente o sujeito que atua firmemente e com responsabilidade para costurar a diversidade de visões da realidade - defendendo portanto o ideal da liberdade de expressão. 

Na sequência, provavelmente vem à tona o "mas para ser jornalista basta ter leituras, sólida formação cultural e saber ler e escrever". Foi essa a justificativa inclusive usada pela juíza Carla Ríster, da Justiça Federal de São Paulo, em 2001, quando concedeu liminar que derrubou pela primeira vez o diploma obrigatório. De tão reducionista, simplista e tecnicista que é, o argumento chega a ser ofensivo. Primeiro porque saber ler e escrever e ter cultura geral é uma necessidade que se impõe a todos os brasileiros, independentemente da profissão que sigam, mas como direitos de cidadania. 

Recorro novamente às analogias: a seguir o raciocínio da juíza, todos aqueles que conhecerem os artigos da Constituição e os códigos de lei poderão ser advogados; todos os que souberem interpretar a tabela periódica poderão atuar como químicos; todos os que forem especialistas em teorias e escolas econômicas poderão ser economistas; todos os que tiverem bom gosto serão arquitetos; todos os que leram Freud e Lacan serão reconhecidos como psicólogos, todos os capazes de desenvolver cálculos sofisticados e complexos serão engenheiros ou matemáticos... A lista seria infinita - e obviamente estapafúrdia, uma atrocidade intelectual. Claro que todas as profissões aqui citadas são socialmente importantíssimas, marcadas por singularidades e a exigir formação específica. Assim como o Jornalismo. A visão simplista e tecnicista das profissões (reverberada publicamente pela juíza) apenas escancara um solene desprezo pelos saberes. 

Vou além: há um ethos (comportamentos), conceitos, práticas, ética, teorias, técnicas, uma história, uma deontologia (princípios) singulares e exclusivos do Jornalismo, que marcam a personalidade, estabelecem o DNA da profissão e a definem como tal. E profissão está diretamente associada à perspectiva de (boa) formação - voltamos, portanto, à necessidade do curso superior específico.

"Mas os cursos de Jornalismo são muito ruins", insistem os contrários ao diploma. Erro primeiro: a generalização. Como - novamente - em todas as áreas do conhecimento, há cursos caça-níqueis, ruins, regulares, bons e de excelência. A formação às vezes deficiente não é privilégio do Jornalismo. Ou será que temos apenas e tão somente excelentes médicos, advogados, dentistas, economistas, administradores e tantos outros concluindo suas graduações? E, se há cursos ruins, que o Ministério da Educação cumpra sua tarefa constitucional, republicana e democrática e fiscalize essas instituições, punindo-as, se for o caso, até com o fechamento dos cursos. Mas que essa mesma prática atinja todas as áreas do conhecimento, e não apenas o Jornalismo. Por que trabalhar com critérios diferentes?

Em mais um movimento de oposição, há quem ainda diga - a juíza Carla Ríster apoiou-se também nessa justificativa - que o diploma de Jornalismo é "elitista". Vou me permitir aqui responder com pouquíssimas palavras - o que dizer então de um curso de Medicina, que em uma universidade privada chega a custar quatro, cinco mil reais por mês? Se é assim, vamos acabar com o diploma dos médicos?

Em fala derradeira, surge o "fiquem tranquilos, nada vai mudar, as empresas continuarão a contratar profissionais diplomados". Bem, mas se tudo vai continuar como antes... por que derrubar a regulamentação? Não parece uma contradição? E afinal, se é mesmo o tal do mercado quem vai regular e escolher os melhores profissionais, a máxima não deveria valer mais uma vez para todas as profissões? Pois vamos acabar com o diploma dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, dos biólogos, dos arquitetos... Não há problema, o mercado é sábio, e as empresas continuarão a dar preferência aos qualificados, aos formados nas áreas. Certamente é falsa - e perigosíssima - essa premissa. Estariam legitimados a selvageria e o vale-tudo.



Para continuar pensando: se são tantas as profissões, por que a grita se volta única e exclusivamente contra o Jornalismo? Por que o movimento contrário ao diploma é capitaneado pelos empresários da comunicação? Que interesses eles de fato defendem? E por que as empresas, que são contra os cursos, invariavelmente montam e oferecem seus próprios cursos (Abril, Estadão, Folha...) aos jovens aspirantes? Não basta saber ler e o resto é com o mercado, a prática cotidiana? Por que raios oferecem essas alternativas de formação, fora da universidade? Que contradição é essa? 

Em artigo publicado no livro ""Teorias do Rádio - volume II", organizado por Eduardo Meditsch e Valci Zuculoto, a jornalista e professora Luciane do Valle recorre a reflexões de Walter Sampaio (formado na primeira turma da ECA/USP), que dizia que "o jornalista já não é mais aquele marginal, frustrado e boêmio, aquele romântico literato que emprestava os ares de seu talento nas crônicas de época. A notícia, a reportagem, o editorial, a cobertura, enfim, desse mundo a caminho do cosmos é grande demais para ser retratado pelo talento descomprometido de poetas irregulares ou de escritores inconstantes. Jornalismo, em nossos dias, é sinônimo de indústria e seu suporte só pode ser construído com pilares firmes e consistentes".

Reforçando o raciocínio, Elias Machado, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escreve em artigo publicado no site do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) que "do mesmo modo que o conjunto de transformações sociais fez com que a figura do rábula seja hoje uma página virada no Direito, o acesso ao Jornalismo a pessoas totalmente despreparadas, sem uma formação específica, coloca em xeque a qualidade das informações que chega ao público. Um bom jornalista necessita competência conceitual, técnica e ética. Nenhuma empresa jornalística tem condições de suprir este tipo de formação especializada, que deve ficar a cargo dos cursos de jornalismo".

Por tudo isso, afirmo com convicção: a formação específica em curso superior (o diploma obrigatório) é o caminho mais adequado para consolidar a prática de um Jornalismo responsável, democrático, sintonizado com a qualidade da notícia e com o direito à informação e capaz de garantir a liberdade de expressão.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

PARA DESBRAVAR O UNIVERSO DO LIBERALISMO AUTORITÁRIO


Texto - Divulgação


O livro reconta, analisa e interpreta exaustiva e criteriosamente os embates entre os liberais, sintetizados pela imprensa assim auto-declarada – a Revista VISÃO e o Jornal O ESTADO DE S. PAULO –, e o pensamento progressista e democrático, durante a transição para a democracia, na década de 1980. 

Nesse momento (2011) em que o pensamento liberal está em crise, é fundamental refletir sobre sua trajetória, seus poderes e seus catastróficos legados. O livro consegue magistralmente aliar a análise de temas políticos, econômicos e sociais da transição com a reflexão teórica sobre as matrizes intelectuais que informam o pensamento de ambos os periódicos. 

O professor Francisco Fonseca é também autor de outro importante estudo sobre a relação entre imprensa e (neo)liberalismo no Brasil, também publicado pela Editora Hucitec: “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (2005).



LANÇAMENTO
Quarta-feira, dia 14 de dezembro, a partir das 18h30
No "Canto Madalena" - Rua Medeiros de Albuquerque, 471
Vila Madalena

CONFERÊNCIA DO CLIMA - HÁ MOTIVOS PARA COMEMORAR E PARA LAMENTAR

Pode parecer estranho, mas a sensação que fica, ao final de mais uma Conferência entre as Partes (a COP 17, popularmente conhecida como a "reunião do clima", e realizada neste ano na cidade de Durban, na África do Sul), é uma mistura de revigorada esperança com reforçado desânimo. Porque, se há razões para comemorar os compromissos celebrados, há motivos também para lamentar aquilo que se deixou de alcançar, diante de um cenário que se revela cada vez mais preocupante - são 70 milhões de toneladas de CO2 despejadas diariamente na atmosfera, ou 48 bilhões de toneladas por ano, com consequências nefastas e cada vez mais visíveis para a vida no planeta.

Há que se reconhecer os esforços dos participantes da Conferência, que viraram madrugadas e protelaram o encerramento do evento em busca de um consenso quase impossível. Dispostos a concretizar o cenário mais otimista projetado pelo IPCC (o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, grupo de cientistas articulado pela Organização das Nações Unidas), que vislumbra um aumento médio de dois graus centígrados na temperatura da Terra, até 2.100, os representantes de quase 200 países reunidos na cidade sul-africana conseguiram destravar as negociações e prorrogar o Protocolo de Kyoto. 

Pelo novo-antigo pacto, as metas de redução (5,2% em relação aos níveis de 1990), impostas aos países desenvolvidos, ficam prorrogadas até 2017 ou 2020 (ainda há dúvidas sobre o prazo, que serão resolvidas no ano que vem). É certamente um alento, diante da possibilidade de as nações ficarem absolutamente livres e desimpedidas, sem qualquer tipo de limitação, já que Kyoto originalmente se encerraria no ano que vem. Aqui, prevaleceu a máxima popular que diz "ruim com ele, pior sem ele". 

Com essa medida, o horizonte ficou um pouco menos nublado. Mas voltou a tornar-se cinzento e carregado quando Rússia, Canadá e Japão anunciaram que não farão parte desse segundo tempo do acordo - o que significa dizer que renunciam ao compromisso de seguir as limitações de emissão. Sem os Estados Unidos (que sempre se recusou a assinar o Protocolo) e a China (que também se sente desobrigada, pois não era considerada "desenvolvida" quando o tratado foi assinado), o pacto ganha contornos daquilo que no Brasil se convencionou chamar de uma medida para "inglês ver" - até é bonita no papel, mas ineficiente na prática. Uma formosa carta de intenções que, não por acaso, vem sendo chamada de "Kyotinho".

Os negociadores também se comprometeram a anunciar, até 2015, um acordo planetário sobre o clima que deverá substituir Kyoto, fixando metas rígidas e específicas de redução de CO2, e com força legal, a entrar em vigor em 2020. A comemorar: pela primeira vez, Estados Unidos e China se comprometeram a colocar números na mesa - e a respeitá-los. Pode ser efetivamente o primeiro instrumento de alcance verdadeiramente mundial a combater o aquecimento global. A lamentar: como se viu acima, até a entrada de fato em vigor da chamada Plataforma Durban (como foi nomeado o instrumento pactuado), o que se tem é muito pouco. Ou quase nada. E ainda temos longos oito anos pela frente. Pior: suspeita-se que as nações mais poluidoras estejam apenas "empurrando o problema com a barriga", ganhando tempo, sem que estejam sinceramente dispostas a encaminhar medidas concretas de adaptação ao novo cenário. Algo como "bem, quando chegar 2020 a gente pensa novamente nisso". Um perigo.

É louvável também a criação do Fundo Verde, que deve ser abastecido pelas diferentes nações, com intuito de fomentar ações e projetos de mudanças de matriz energética, combate ao aquecimento global e adaptação às novas condições climáticas e de temperatura. O problema é que, por enquanto, parece ser mais uma iniciativa localizada no campo das promessas, pois apenas a Coréia do Sul, concretamente, assumiu o compromisso de contribuir com o fundo. Os outros países se colocam em compasso de espera. A lição que fica aqui é a seguinte: a ciência já mostrou os caminhos possíveis para tentar minimizar os efeitos do aquecimento global; no entanto, parece existir pouca vontade política para definir quem vai pagar a conta dessas mudanças, que significam impactos econômicos de grandes proporções. E ninguém quer colocar a mão no bolso.

Por fim, cabe destacar a posição de destaque do Brasil nas negociações conduzidas em Durban, fundamental para destravar uma série de impasses e permitir que o consenso pudesse ser alcançado. É uma postura progressista e que revela, em nível internacional, estreito compromisso com o desenvolvimento sustentável e ecologicamente responsável, mas que destoa gritantemente de iniciativas retrógradas que vêm sendo patrocinadas, internamente, pelo governo federal, como a construção da Usina de Belo Monte a a aprovação, no Congresso Nacional, de um Código Florestal que representa o mundo dos sonhos para ruralistas e desmatadores. Considerando esse aspecto, temos também motivos para comemorar - e para lamentar. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

BOLSA-ESTUPRO? QUE PAÍS É ESSE?



Quando era adolescente, gostava de ouvir (ainda na velha vitrola, vinil bolachão) uma música de uma banda carioca de heavy metal chamada Dorsal Atlântica que dizia, em um de seus trechos principais, que "a realidade consegue ser pior do que a pior de nossas fantasias". Eclético, adorava também ouvir a voz grave e inconfundível do poeta Renato Russo cantar e perguntar "Que país é esse"?

Foi exatamente dessas duas músicas que me lembrei quando li, hoje pela manhã, nas redes sociais, que está em tramitação no Congresso Nacional, por iniciativa do deputado Henrique Afonso (PV/AC), um projeto de lei (1763/2007) que prevê que o Estado pagará um salário-mínimo por mês, e durante 18 anos, para a mulher que for estuprada, decidir não abortar e tiver o filho; além dessa "benesse", teria ainda a mulher vítima de violência sexual o acompanhamento de psicólogos, também pagos com dinheiro público, para ser convencida da "importância da vida", desistindo assim de interromper a gravidez forçada e indesejada. 

A iniciativa institui aquilo que muito precisamente foi classificado pelas entidades feministas e de direitos humanos como "Bolsa-Estupro". Confesso que desconhecia a proposta (que tem quatro anos e já foi inclusive aprovada pela Comissão de Seguridade Social da Câmara!) e admito que fiquei com raiva, muito raiva quando li a notícia. Decidi escrever no calor do momento, com as emoções à flor da pele mesmo, sem "neutralidades", para não perder o impulso indignado. Os dedos estão tremendo, enquanto digito as letras no teclado. 

O que o deputado pretende estabelecer é uma nojenta barganha, ao oferecer às mulheres uma proposta muito mais que indecente. Trata a mulher como um objeto, sem sentimentos, uma mercadoria a ser comprada, como se estivesse exposta e disponível em qualquer prateleira, em uma vitrine. Do lado de fora da loja, está o parlamentar a dizer "vamos esquecer o que aconteceu, o dinheiro que você vai receber será capaz de deixar de lado essas lembranças. O tempo cuida do resto". Para mim, é difícil, quase impossível tentar compreender o que se passa na cabeça de uma pessoa que trata de maneira tão torpe o estupro - tenebrosa e asquerosa violência contra a mulher, vilipendiada e ultrajada no átomo mais profundo de sua alma e de seu corpo, atingida em sua dignidade e condição humana, carregando para sempre as marcas físicas e emocionais de tal ato selvagem. É como se a oferta monetária fosse capaz de apagar essas chagas. 

O projeto representa também um retrocesso histórico, pois até mesmo a atrasada legislação brasileira que trata do tema, por meio do Código Penal aprovado em 1940, reconhece que não há crime algum no aborto, quando a gravidez é resultado de estupro. Vejam que estamos falando da primeira metade do século XX, quando ainda encarávamos a mulher como pessoa de quinta categoria, alguém que existia apenas para procriar e cuidar do lar. Fazia pouco tempo tínhamos superado e abandonado os casamentos arranjados e os dotes. O voto feminino, por exemplo, acabara de ser conquistado (1934). Pois, com a proposta do "Bolsa-Estupro", nos reaproximamos perigosamente daquele cenário marcado por restrições e preconceitos - desta feita em pleno século XXI. Ignora o deputado que o direito ao corpo e à livre escolha, nesse caso específico, são legalmente garantidos no Brasil. Antes de avançar (tratar o aborto, de forma bem mais ampla, como uma questão de saúde pública, como acontece em vários outros países, e não como caso de polícia), o que se pretende é fechar o cerco e restringir mais ainda as possibilidades de atuação, literalmente constrangendo, pressionando e forçando as mulheres (ou alguém duvida que esse será exatamente o papel desempenhado pelos 'psicólogos-conselheiros' que serão remunerados pelo Estado?) a aceitar a asquerosa barganha.

Não menos importante, chamo a atenção para o espaço que as religiões - principalmente as chamadas neopentecostais, mas não apenas elas - estão ocupando no debate político nacional e na construção cotidiana da realidade brasileira. O deputado autor do projeto da "Bolsa-Estupro" faz questão de assumir que é evangélico e defende sua terrível iniciativa dizendo que "para os evangélicos, o aborto é um ato contra a vida em todos os casos, não importa se a mulher corre risco ou se foi estuprada; faço o que Deus manda". Meus dedos estão tremendo mais ainda. Meu estômago dói. Pode não parecer, mas o Estado brasileiro ainda é laico - o que significa dizer que todas as crenças (incluindo as não crenças, os agnósticos, os ateus) devem ser respeitadas, convivendo respeitosamente. São princípios republicanos, humanistas, iluministas, democráticos e civilizatórios que nos levam a buscar essa tolerância. Religião é fé, é espiritualidade, livre-arbítrio, está ligada a opções individuais, a escolhas de caráter pessoal. São várias, abarcando segmentos específicos da sociedade. O Estado de Direito está associado à razão, sustenta a pluralidade e por ela é sustentado, preserva liberdades amplas, combate privilégios, pensa no coletivo, dá conta de políticas públicas que visam consagrar direitos para todos.

Mais preocupante ainda, por fim, é notar que a iniciativa do "Bolsa-Estupro" não é isolada: a avalanche religiosa-obscurantista pretende ser avassaladora, quer construir o Estado brasileiro à sua imagem e semelhança. Nesse pacote de ações, entram também o combate ao kit anti-homofobia produzido pelo Ministério da Educação, o Estatuto do Nascituro, também em tramitação no Congresso (que proíbe o aborto em todos os casos, além de proibir pesquisas com células-tronco embrionárias e a reprodução assistida), o ensino de religião nas escolas públicas, a perseguição aos cultos afro-brasileiros, as igrejas e templos que são usados como palanques para discursos intolerantes e violentíssimos contra os homossexuais. A lista é grande. E deseja instalar no Brasil uma sociedade medieval. 

Se não houver resistência, em breve serão reinstalados por aqui os tribunais da Santa Inquisição. Para queimar os hereges. E as bruxas.

domingo, 4 de dezembro de 2011

DOUTOR SÓCRATES, UM MESTRE





Eu não conheci o Doutor Sócrates, jamais estive com ele. Mas o Magrão significa muito para mim. Não só porque vestiu, ainda que por pouco tempo, a gloriosa camisa do alvinegro da Vila Belmiro (e eu o vi desfilando em campo com o manto sagrado, contra o Corinthians inclusive, no Pacaembu, e também contra a Portuguesa, quando marcou um gol de pênalti). 

O Doutor foi o capitão do melhor time de futebol que já vi jogar, a Seleção Brasileira de 1982, do mestre Telê Santana. Ali não tinha bicão para a arquibancada, não tinha carrinho, não tinha cotovelada, não tinha furada. Eram só toques refinados, dribles geniais, passes milimétricos, tabelinhas precisas, bola sempre para frente, em busca dos gols. Perdemos para a Itália porque continuamos a atacar, a praticar futebol-arte, quando o empate já garantia a classificação. Caramba, perdemos coisa nenhuma, quem perdeu foi o futebol, que não viu aquela Seleção campeã do mundo, que não viu o Doutor erguer a taça, que não viu as amarelinhas dando a volta olímpica. Como eu chorei naquela tarde de 05 de julho de 1982. Foi a minha maior dor futebolística. Mais doída que qualquer outra derrota do Santos. Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Junior; Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico; Serginho e Éder. Tenho a escalação na ponta da língua. Ali, o futebol começou a ficar mais tático, menos artístico; tornou-se mais força, menos criatividade. 

O Doutor não sabe, nunca soube, mas foi sujeito fundamental também para minha formação política, quando foi protagonista da campanha pelas Diretas Já. Também vesti amarelo, acompanhei os comícios, bati panelas nas ruas, participei dos buzinaços. No inesquecível comício do Anhangabaú, com mais de um milhão de pessoas, Sócrates (com o Casão ao lado) gritou: "Se a emenda Dante de Oliveira passar na Câmara, eu não vou embora do meu país. Viva a liberdade do povo brasileiro". Foi bonita a festa, pá! Foi linda. Chorei agora pela manhã, ao rever as imagens do comício. Chorei também naquela madrugada de abril de 1984, junto com minha mãe, quando a emenda foi derrotada. Ouvimos pelo rádio. As emissoras de TV tinham sido censuradas. 

A Seleção de 82 e as Diretas Já são símbolos da minha geração. E Sócrates é uma espécie de síntese, de figura representativa dos dois momentos. Paz e sossego, Doutor Sócrates. Nossas lembranças guardarão para sempre os calcanhares geniais, a elegância desfilada em campo, a inteligência e o carinho no trato com a redonda, o olhar altivo e sereno, as lutas por democracia, a consciência política, a preocupação com a realidade social brasileira. Meu futebol e minha política ficaram hoje um pouco mais chatos. 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

JORNALISMO, UMA PAIXÃO. DESDE SEMPRE.


O final de mais um semestre letivo, a semana de defesas de Trabalhos de Conclusão de Curso na universidade e a (para mim) surpreendente vitória acachapante, em primeira votação ocorrida no Senado,  da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que resgata a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão me levam a escrever sobre algo que já vinha transitando entre os neurônios, o coração e os dedos inquietos: minha paixão pelo Jornalismo.

As lembranças sobre a infância não são lá tão nítidas ou bem organizadas, mas sou capaz de afirmar, com pouca margem de erro, que foi lá pelos dez, onze anos, na entrada daquilo que era chamado de ginásio, que anunciei aos meus pais e professores, em alto e bom som: "vou ser jornalista".

Antes disso, ainda, nas eleições para governador, passei o dia da votação (acho que ainda acontecia no feriado de 15 de novembro; o ano era 1982, finalzinho da ditadura, portanto) brincando de "entrevistar" candidatos que concorriam ao cargo em São Paulo. Eu perguntava, e eu mesmo respondia, procurando imitar as vozes e aquilo que eu considerava que seriam os caminhos das respostas de Franco Montoro, Lula, Jânio Quadros, alguns dos que participaram daquela disputa. As imitações, claro, eram sofríveis, lastimáveis. Mas ali já se manifestava a empolgação de um pré-adolescente com o universo do Jornalismo. Vinha à tona também um encanto explícito pela política, outra de minhas paixões escancaradas.

A disposição manteve-se durante todo o ginásio e estendeu-se pelo colegial (atual ensino médio). De certa forma, sou capaz hoje de entender que fui aos poucos, naquele momento sem perceber, me preparando para o Jornalismo. Enfrentei os clássicos da Literatura e da Política, passei a escrever, escrever, escrever e escrever, desenfreadamente (o Jornalismo sempre foi para mim palavra escrita). Aproveitei cada oportunidade que se abriu, nas aulas de Redação, para produzir textos informativos e dissertativos. 

Já ali, sentava no chão e sujava os dedos folheando e lendo os jornais e revistas que eram assinados ou comprados por meu pai. Lembro de gastar mais tempo com as notícias de Política, Esportes e Internacional. Queria entender o mundo. Só. Fiquei preocupado com a Guerra das Malvinas, vivi muito de perto a Campanha das Diretas, deixei de ir à praia em São Vicente em um domingo para lá de ensolarado para acompanhar pela TV a eleição indireta do presidente Tancredo Neves, sofri com as derrotas do Brasil nas Copas do Mundo de 1982 e 1986, tive raiva dos Estados Unidos quando bombardearam a Líbia, ouvi pelo radinho, no intervalo da escola, o anúncio do Plano Cruzado e fui para as ruas e chorei muito com a derrota do Lula no segundo turno da eleição presidencial de 1989.

Fiz as provas dos vestibulares (foram três, o da ECA/USP, o da PUC/SP e o da Cásper Líbero) entre o final de 1989 e o início de 1990. Nos três, escolha única, cravada: Jornalismo. O sonho ecano se concretizou. Na primeira semana de aulas, levei um choque quando um professor, renomado profissional de mercado, gastou a aula toda para desconstruir os sonhos da turma e para dizer que deveríamos esquecer as utopias, pois as notícias poderiam ser comparadas a qualquer outro produto, daqueles escolhidos em qualquer prateleira de qualquer supermercado. Na hora, fiquei revoltado; hoje, consigo compreender. Em certa medida, ele tinha razão, nos tirou de uma certa zona de conforto. Provocou. Mas não arredei pé. Não desisti. Jornalismo, para mim, continuava sendo uma paixão, um caminho possível para contribuir com a transformação da sociedade. Ingênuo? Pois é assim que penso até hoje.

Durante a graduação, procurei aproveitar ao máximo as aulas e aquilo que os professores tinham a nos dizer. Anotava. Perguntava. Participava das discussões - e era cada polêmica...  A turma era muito bacana. Lia - muito, os textos e os livros indicados e recomendados, outros tantos que escolhia na biblioteca. E achava sempre que era pouco. Mergulhava nos trabalhos, como se fossem únicos. Virava noites digitando em máquinas Olivetti praxis ou em computadores com telas pretas e letras verdes. Comendo pizza, fechamos muitas edições do "Jornal do Campus", que depois distribuíamos animadamente pelos pontos de ônibus da Cidade Universitária. Sentia-me muito importante como repórter da Agência Universitária de Notícias - e vibrávamos quando recebíamos nossas matérias publicadas por jornais de bairro e do interior. Vivi a universidade (as festas, as semanas de Jornalismo, aulas em outras unidades, as quadras do Cepeusp, as conversas nos corredores, a lanchonete, o Centro Acadêmico...) para além das paredes das salas de aula. 

Tive aulas ruins, é verdade, faltou equipamento, muitas vezes fiz cara de ponto de interrogação e me perguntei "por que afinal preciso saber isso?". Conheci enrolações. Em algumas aulas, até dormi. Mas tive grandes mestres. É neles que até hoje procuro me espelhar. O curso foi fundamental para minha formação crítica, ética e humanista. Aprendi a apurar, a pesquisar, a entrevistar, a pensar uma matéria, a transitar pelos meandros singulares do texto jornalístico. Foi uma etapa mais que relevante - e por isso sou ferrenho e confesso defensor da obrigatória formação específica em nível superior para o exercício do Jornalismo. O curso é espaço privilegiado de formação. O diploma é consequência direta dele. 

E foi ainda na graduação, na noite da defesa do meu Trabalho de Conclusão de Curso (um perfil de Helena Pereira dos Santos, presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo), apresentado em 13 de dezembro de 1994 (quando o Ato Institucional 5 completou 26 anos), que conheci a Elisa, minha futura esposa-companheira, mãe da Luiza e do Daniel, minhas três paixões supremas.

Nestes mais de 20 anos de profissão - comecei a estagiar ainda no primeiro ano da faculdade -, só fiz reforçar minha paixão pela profissão. Tive apenas uma passagem breve e pontual pela grande imprensa - frilas para o Almanaque Abril, em 2001. Reconheço com muito respeito e profunda admiração que há jovens e mais experientes jornalistas que fazem belíssimos trabalhos nas redações dos grandes veículos, com muita ética, dignidade e competência, seja em jornais, revistas, emissoras de TV e rádio e na internet. São profissionais importantíssimos, pois sabem atuar nas brechas do sistema. O problema está mesmo em mim - não sou capaz de lidar bem com essa perspectiva de notícia-mercadoria. 

Por conta disso, não foram poucos os que me perguntaram, desde sempre: "está louco? Se não vai trabalhar na Veja, na Folha ou na Globo, vai fazer o quê? Morrer de fome?". Tentei construir outros caminhos. Escorreguei, errei, sofri, fiquei agoniado, levantei, aprendi. Muito. Continuo aprendendo. Quero aprender sempre. Não fiquei rico, é verdade. Mas também não morri de fome. Atuei em sindicatos, ONGs de direitos humanos, emissoras universitárias, hospital público, universidade pública, até me descobrir um apaixonado pelas histórias da Ciência - e é no jornalismo científico que busco abrigo atualmente, como repórter colaborador de diversas publicações. Fiz a dissertação de mestrado sobre a imprensa alternativa (revista Caros Amigos), que depois se transformou em livro. Lancei outra obra, sobre Saúde, um paradidático dirigido a alunos do ensino médio. Comecei a dar aulas - a docência e a sala de aula, outras paixões. 

Se mudei minhas convicções e se abandonei meus sonhos e utopias, como sugeriu aquele professor que encontrei na primeira semana de aulas da faculdade? Ao contrário. Porque afinal, como diria Nelson Rodrigues, "sem paixão não se chupa nem um picolé". Para um ariano, essa é uma verdade incontestável. Para mim, o Jornalismo, grande contador das histórias do mundo contemporâneo, continua sendo elemento libertador de consciências, exercício permanente de reflexão, aquele que coloca ideias diversas em debate e atua para garantir o direito à informação. Longe de ser neutro, existe, como costuma dizer Mino Carta, "para dar voz àqueles que não têm voz, para resgatar os oprimidos e os menos favorecidos, para ajudar a registrar e documentar também as histórias dos vencidos". É pilar fundamental de sustentação da democracia. Jornalista é aquele que se move por uma louca curiosidade, um desejo manifesto e incontido de descobrir (e de mudar) o mundo; é aquele que sabe ouvir, anotar, registrar, observar - para finalmente compartilhar essas narrativas. É sujeito que presta serviço público. "A melhor profissão do mundo", como define o genial Gabriel García Márquez.

Entre aulas das diferentes disciplinas e pautas de Ciência, acabei descobrindo recentemente as redes sociais - novamente por conta do debate político. Daí para o Blog foi um pulo. É um prazer aproveitar esse espaço contra-hegemônico de construção e desconstrução, como bem define o colega Alceu Castilho, para exercitar o Jornalismo - e para refletir sobre o Jornalismo. A tarefa é gratificante. Apaixonante.