sexta-feira, 31 de julho de 2015

ALIANÇA VOADORA

Já não lembro se era campeonato paulista ou brasileiro, final de 1997 ou primeiro semestre de 98. Sei que era noite de quarta-feira. De sopetão, na última hora, depois de chegar do trabalho, combinei com meu irmão, vesti meu manto branco sagrado e fomos ver Santos e Palmeiras no antigo Parque Antártica (amigos palestrinos, a nova arena é lindíssima, moderna e padrão mais que FIFA, tem elevador e escada rolante, mas charmosos mesmo eram os jardins suspensos do antigo Palestra Itália).
Ingresso a gente comprava na bilheteria, chegando cedo, desviando dos cambistas, enfrentando fila, discutindo com os espertalhões que fingiam não saber que a fila existia e também enrolando aqueles malacos que colavam nas gradinhas separadoras das filas para dizer 'ô, completa aí, só falta um conto, vai...'. Não tenho, cara, fica para a próxima. Era meu discurso padrão. Uns ficavam bem bravos; outros nem esperavam para ouvir a resposta e já estavam falando com outro parceiro.
Se não me engano, aquele foi o primeiro jogo no estádio depois de casado. Ainda não estava acostumado com a aliança na mão esquerda, meu dedo anular que de tão fino lembra aquele ossinho que o João, irmão da Maria, usava para enganar a bruxa má, doidinha para vê-los gordinhos e servi-los cozidos, irritada porque esse dia chegava nunca. MInha magreza, aliás, defeito de fabricação, deixava minha mãe desesperada, quando eu era criança. Ela só sossegou quando, depois de peregrinar por vários pediatras, alguns cheios de diplomas pendurados nas paredes e a inventar as doenças mais esdrúxulas, ouviu de um deles, doutor de confiança da família: 'minha senhora, fique tranquila, não há o que fazer, é a constituição dele. Não vai engordar nem com bomba de encher bicicleta". Há quem recorra ao dito popular para garantir que sou magro de ruindade. Adoro mesmo me esbaldar com pizzas, pasteis, batatas fritas, sanduíches e coca-cola. Magro era, magro continuo sendo. E foi naquela noite futebolística no estádio do Verdão que descobri de maneira quase trágica que dedo fino e aliança não combinam.
Como de praxe, sentamos perto da Torcida Jovem, bem na curvinha, atrás do chamado gol da ferradura. Bunda no cimento gelado. Cadeirinha e lugar marcado eram luxos que só existiam, ouvia dizer, nos estádios europeus. Besta, tenso, sem tirar os olhos do campo, hipnotizado, tinha a mania de assistir aos jogos brincando com a aliança. Sem dificuldade, aproveitando a largueza, atrito nenhum, arrastava a argolinha matrimonial de ouro pelo anular, subindo e descendo, subindo e descendo, até a pontinha do dedo, em movimentos repetitivos e incessantes. Era natural, mecânico. Instintivo. Jamais passou pela minha cabeça que o pior poderia acontecer.
Numa dessas idas e vindas, aliança vai, aliança vem, bola de lá, bola de cá, cruza na área... gol do Santos! Levantei para comemorar junto com a torcida. Fiquei no grito de GO. O "L" não saiu. Ficou engasgado. Emudeci. Senti as pernas bambas. Não ouvi mais nada.. Fechei a mão direita inteira no anular esquerdo, para confirmar. A aliança não estava lá. Naqueles malabarismos dedais, euforia e festa ao ver a bola estufando as redes bem na minha frente, a danada saiu voando.
Enquanto eu tentava passar em revista e montar bem direitinho o que diria para Elisa - sim, sou um cretino, nem um ano de casado e perdi a aliança, sério, pode acreditar, me desculpe, bobagem, você tem razão, foi no estádio, verdade, na hora do gol, pode perguntar para o meu irmão (e irmão lá é álibi nessas horas?) -, empurrava todos os que estavam perto de mim e dizia 'ninguém mexe, ninguém mexe, ajudem aí, rápido, perdi minha aliança'.
Um clarão se abriu imediatamente em minha volta. Zona de segurança. Solidariedade santástica. Ceninha patética - éramos uns dez de joelhos, rastreando e apalpando cada centímetro quadrado da arquibancada. Sou míope, a iluminação do Palestra era de lascar. Foi no tato mesmo. E na sorte. Agachado, dando batidinhas com as mãos em concha no cimento, como se jogasse bafo, achei a danada. Estava bem na minha frente, um degrau para baixo. Brilhante. Intacta. Formosa. O vôo da aliança tinha sido curto; a aterrissagem, tranquila. Sem traumas. Voltou rapidinho para o dedo. Gritei muito. Os camaradas se levantaram e gritaram junto. Parecia o segundo gol do Santos. Quem estava mais longe fez cara de ponto de interrogação e entendeu nada. Na minha lembrança, tudo isso demorou, vá lá, uns dois minutos.
Sei não. Desconfio que a mandinga de ver os jogos do Santos e da Seleção com o celular agarrado na mão esquerda nasceu naquela noite. Não tem jeito de fazer a aliança dançar. Dá sorte. E agora vocês já sabem de onde vem o nome - Allianz Parque - da nova arena verde. O Parque da Aliança. Justa homenagem.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O METRÔ TUCANO

Parada 1- A Linha Amarela do Metrô estava prometida para 2010. Todinha, de cabo a rabo, da Luz à Vila Sônia.
Parada 2 - Em 2015, cinco anos depois do prazo original, apenas sete das onze estações estão funcionando.
Parada 3 - Das quatro restantes, duas (Higienópolis e Oscar Freire) estavam prometidas para o ano que vem; Morumbi, para 2017; e Vila Sônia, 2018. Custo total desse segundo lote = 559 milhões de reais.
Parada 4 - Em junho passado, o governo estadual acertou o pagamento de um aditivo de vinte milhões de reais, para que Higienópolis e Oscar Freire fossem finalmente concluídas.
Parada 5 - Alegando que a empresa contratada desrepeitou o que estava combinado (cinco anos para cair a ficha?), o governo decidiu agora, em julho, romper o contrato.
Parada 6 - Como a quebra do contrato se dará de maneira unilateral, sem acordo, sairão dos cofres públicos, como multa a ser paga à empresa, mais 23 milhões de reais.
Parada 7 - Será necessário, então, abrir em seguida novo processo de licitação, para a contratação de outra empresa que será responsável pelas obras. Até que os trabalhos sejam retomados... em dois mil e um montão a população poderá finalmente usar as novas estações. Meus netos ficarão felizes.
Parada 8 - Inaugurado em 1974, o sistema de metrô de São Paulo tem atualmente 78 quilômetros de extensão - média de 1.95 novo quilômetro por ano. Crescimento extraordinário!
Parada 9 - O metrô de Xangai tem 434 quilômetros de extensão; Londres, 408 quilômetros; Nova Iorque, 369; Paris, 214; Cidade do México, 202; Santiago, 94.
Parada 10 - O PSDB administra o estado de São Paulo desde primeiro de janeiro de 1995 - e pelo menos até 31 de dezembro de 2018.
Parada Final - Continuemos todos quietinhos e conformados. Tudo bem. É assim, Demora mesmo. Geraldo está trabalhando. Está perdoado. Não falta metrô em São Paulo. Não vai faltar metrô em São Paulo. Se pudesse, seria eleito para terceiro mandato consecutivo. Afinal, não é ele quem está atrapalhando a velocidade nossa de cada dias nas marginais.
Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

FUTEBOL SEM BASE

Os times nossos de futebol estão fazendo malabarismos com tochas nos semáforos, cantando vestidos como Elvis ou Michael na Paulista, passando a gravata cortada na noite do casamento, estourando de longe cheques especiais, segurando firme as moedinhas e qualquer trocado que conseguem, cordas bem apertadinhas nos pescoços, a sofrer com penúrias financeiras que são o resultado de administrações patéticas, amadoras e irresponsáveis. Draga de dar inveja ao Brasil dos anos 1990, quando éramos o aluno aplicado do FMI, aquele que fazia todas as lições de casa ditadas pelo mestre.
Precisam fazer caixa. Todos. Bola da vez - o São Paulo. Emparedado (o presidente do clube reconheceu em entrevista ao Estadão que a dívida chega a 270 milhões de reais), o tricolor abriu liquidação e desmontou o time que começou jogando o Brasileirão. Hoje, oportunidade única, imperdível, foi a vez do meia Boschilia, 19 anos, dizer 'fui'. Quase quarenta milhões de reais. O clube fica com metade. Boa grana, ninguém nega. Dá para respirar, pagar um fornecedor aqui, uns direitos de imagens acolá, evitar processos trabalhistas. Até começar a estourar o cartão de crédito de novo.
Vá lá, entendo. Mas fico aqui, sempre crica de plantão, anacrônico, idoso, romântico de Cuba, torcendo nariz para esse futebol negócio e esse semi-deus chamado mercado, a pensar que os jovens jogadores, a base, são o último alento e suspiro que nos restam, se almejamos mesmo algum dia resgatar aquilo que o nosso ludopédio já representou, se queremos voltar de fato a poder disputar hegemonia boleira planetária, com magia e eficiência, arte e competência. E a molecada está indo embora daqui cada vez mais cedo.
Quantas partidas inteiras Boschilia jogou pelo São Paulo? Não é craque (aliás, quem é o craque do Brasileirão mesmo?). Teve, no entanto, atuações bastante razoáveis pela Seleção sub-20 que disputou o Mundial da categoria, recentemente. Talvez virasse bom jogador. Não deu tempo. Zarpou. Mercado. Lucro.
Não é estranho que o mesmo São Paulo tenha segurado Luis Fabiano, pretendido pelo Cruz Azul do México? Óbvio, não seria a bolada que o Mônaco agora paga pela jovem promessa tricolor, nem poderia, mas seria um dindim a tirar poeira dos cofres do clube. No final do ano, LF sairá de graça. Nadica de nada de retorno. Nem títulos. Zero absoluto. Alguém explica?
Para que não fique parecendo picuinha clubística - quando vendeu Neymar, a preço de banana, operação esquisitíssima (para ser benevolente) investigada aqui e na Espanha, o Santos garantiu ao Barcelona a preferência de compra de três garotos da base, recebendo por fora mais alguns milhões de euros. Confesso que desconhecia esse tipo de negócio. O Corinthians já foi nove vezes campeão da Taça São Paulo sub-20. Quantos moleques que triunfaram nessas jornadas fizeram sucesso também no time principal? Marquinhos, zagueiro, é destaque do PSG. Para exorcizar fantasmas da série B, o Palmeiras montou dois times novos para 2015, vinte e tantas contratações. Moleques da casa? Gabriel Jesus e João Pedro, salvo lapso de memória. Pouco. Bem pouco,
Às avessas, corremos para repatriar medalhões em condições técnicas e físicas bem questionáveis, alguns já em fim de carreira, salários estratosfericamente milionários. Consequência? As dívidas viram conto de terror de Edgar Allan Poe. Para saldá-las, despachamos a molecada para outros mercados.
Será que é tão difícil perceber que esse modelo e essa filosofia não podem dar certo?
Vai ver estou delirando.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

FUTEBOL DIVERTIDA MENTE

A animação da Disney/Pixar que faz estrondoso sucesso no cinema, incentivando inteligências e arrebatando sensibilidades de crianças e de adultos, foi exibida em sessão doméstica especial ontem, com as devidas adaptações e em sua versão ludopédica. Porque foi assim que nasci - com uma ilha do futebol que ocupa espaço gigantesco na minha cabeça. Acabou se espalhando por terras improdutivas e ocupou inclusive lugar de várias outras ilhas. Reforma agrária neuronal democrática. Nessas terras férteis de sinapses, um montão das bolinhas das memórias de longo prazo - e, vejam só a coincidência, estamos falando de bolas - estão relacionadas a campeonatos, gols, artilheiros, tabelinhas e partidas inesquecíveis. Quando o jogo finalmente começa na telinha da TV (queria estar na arquibancada, a chuva não deixou), Copa do Brasil, mata-mata, noite fria de quarta-feira, a bagunça começa na zona mista da minha cachola, todos lá, gesticulando de montão, falando sem parar e brigando para ver quem aparece mais e manda nessa sinfonia. A alegria, bela e formosa, confetes e serpentinas, chama logo a atenção e tenta me convencer que 'hoje é barbada, saíremos da Vila classificados'. A tristeza, sábia e prudente, insiste em me obrigar a acessar as caixinhas guardadas de lembranças melancólicas de horrorosas derrotas conhecidas naquele mesmo palco futebolístico. É empurrada de lado pela raiva, chega para lá, ombrada e cotovelada, cutuco na canela, bicuda no tornozelo, aos berros e sem pedir licença, vociferando contra a diretoria que não paga salários e dizendo que é inadmissível que o Santos, com tanta história, tantas glórias, esteja na zona do rebaixamento do Brasileirão. 'Impeachment do Modesto já!', grita, para lá de vermelha, quase explodindo. O medo amigo de todas as horas faz disparar meu coração. E se a gente não ganhar? E se acontecer o pior? Lá vem então a nojinho, plumas e paetês, vestidinho modernoso, requebrando na passarela, desdenhando da competição. Bem, meus amores, quem quer ganhar a Copa do Brasil? Já temos esse troféu. Se perder, disputa a Sul-Americana. Sem dramas. Muito melhor. Torneio internacional, de prestígio. Chacoalho a cabeça. Que confusão. Será que meu amigo imaginário de infância tem algo a dizer, para aliviar a tensão? Ele era bem legal. Claro, jogava bola comigo. Eu era o goleiro, ele batia pênaltis. Depois a gente invertia. Eu ganhava sempre. Era tudo tão mais fácil e divertido. No jogo de verdade, o Santos marcou logo aos três minutos. Gabriel, camisa 100. Sorrisos e comemorações. A alegria não se conteve - eu te disse, eu te disse, eu te disse. Quase mandei desligar a buzina. O time até que jogava bem, surpreendentemente. Marcação pressão, velocidade no ataque, trocas de posições, defesa bem postada. Não demorou muito saiu até o segundo gol. De novo Gabriel, passe de Ricardo Oliveira. A alegria foi às nuvens, única e soberana, apertando todos os botões de euforia do painel de controle da minha mente. Darling, quem é esse timeco que está jogando contra a gente? Bem fraquinho, hein?, exagerou nojinho. Cantou vitória muito antes da hora. Gol do Sport. De falta. Com desvio na barreira. A raiva surtou e correu para empurrar com força as alavancas. Chutou o pau da barraca, espumando e espalhando fumaça por toda a sala cerebral principal. Quem mandou essa besta que estava na barreira virar de costas? O técnico fez o time recuar! Anta, estava tudo sob controle. Agora vamos para os pênaltis. Outra vez. Porcaria de time. Diretoria incompetente. Saio xingando pela sala. Sobra chute para o banquinho, o controle remoto quase voa na parede. Os vizinhos já estão acostumados com a barulheira. É assim toda quarta, domingo também; às vezes, quintas e sábados. Culpa do calendário maluco e mal planejado da Confederação Brasileira de Falcatruas/Fiascos. Relaxa, meu querido, somos um dos únicos times que não sabe o que é segunda divisão, sussurra a nojinho. Medo. Não vamos chegar nem às oitavas? Vai ser uma vergonha, tiração de sarro federal. Tristeza. E pensar que só faz quatro anos estávamos levantando o tri da Libertadores. O que fizeram com meu Santos... Como o cérebro de boleiro destrambelhado em dias de jogo de futebol só pode mesmo ser explicado por psiquiatras de excelência - tripolaridade, tetrapolaridade, múltiplas polaridades simultâneas, sei lá - tudo volta a ficar lindo e maravilhoso no início da segunda etapa. Três a um. Geuvânio. Classificação à vista. A alegria samba, batuca e canta 'nascer, viver e no Santos morrer é um orgulho que nem todos podem ter'. O diabo é que aí começa a martelar na minha cabeça um personagem que não fazia parte do filme original. A angústia. Esse cronômetro não anda. Juizão, foi falta. Segura a bola no ataque, no ataque. Tira, tira, tira! Quer me matar do coração? Nossa, essa passou raspando a trave. Caraca, o time estava bem, por que substituir e colocar esse morto-vivo em campo? Vixi, olha o tombo que esse jumento levou! Calma, pai, foi escanteio nosso. Cinco minutos de acréscimo?! Ficou louco, meu senhor? Vá à merda. Filhote de Eduardo Cunha! Apitou! Fim! Acabou, ganhamos, estamos classificados. Agora é só festa. Minha cabeça, porém, continua rodando a mil. Algazarra. Zorra. Alegria, nojinho, medo, raiva e tristeza adoraram o jogo. Resolveram engatar mesa-redonda na madrugada, terceiro e quarto tempos, debate-bola, linha de passe, arena, tudo junto e ao mesmo tempo. Estão elétricos. Indomáveis. Quem disse que consigo dormir?

segunda-feira, 20 de julho de 2015

NA CASA DO VÔ E DA VÓ

Pode dormir tarde, bem tarde, mas muito tarde mesmo, madrugada, se aguentar, no limite máximo das energias (inesgotáveis) das crianças, só mesmo quando elas capotam na cama, com ou sem pijama, às vezes sem escovar os dentes, definitivamente vencidas pelo sono e pelo senhor cansaço nosso de cada dia. "Boa noite, durma bem, sonhe com os anjos, meu netinho, minha netinha". Cobertor e beijos. Pode brincar no computador, depois no vídeo-game, em seguida no celular e finalmente no tablet por horas a fio, sem tempos combinados pré-estabelecidos, jogos, mensagens, vídeos, uatzap e fanfics em cascatas, um atrás do outro, sequência infinita, alegria virtual cibernética da criançada. "Tudo bem, só mais um pouquinho, hein". O fim desse tantinho chega nunca. Nunquinha de marré de si. "Nossa, passou todo esse tempo, nem percebi. Só mais um pouquinho, hein". A nave segue. Pode até desinstalar programas usados pelo vô e pela vó, aquele aplicativo do banco a quem se recorre na hora de pagar contas, por exemplo, a lista de sites favoritos, vale até perder o documento em word que precisa ser enviado com urgência, numa boa, sem estresse ou chateação. "Tudo bem, querido , querida, foi sem querer, tenho cópia do texto, depois a gente busca e instala a porcaria do banco de novo, é super fácil". Pode esparramar papeis e mais papeis e lápis de cor e canetas coloridas e giz de cera e réguas pelo chão da sala, pelo quarto, na cozinha, no corredor, no banheiro, para desenhar, rabiscar, valendo até mesmo pedir para o vô ou para a vó sentar e ficar imóvel, posando para o (a) artista, "calma, não se mexe, vai ficar bonito, vou te desenhar, você vai gostar". O vô e a vó obedecem, comportados e lisonjeados, paradinhos como estátuas, achando tudo lindo, "meu neto é um artista, minha neta é um talento, puxa, muito bem, super bacana, ficou ótimo". Pode transformar a casa em verdadeira brinquedoteca quase profissional, bonecas, carrinhos, botões, quebra-cabeças, jogos de trilhas, dados, tudo ao mesmo tempo e misturado, sem deixar espaço nem para sentar no sofá, sem muita força, compromisso ou preocupação para guardar toda essa tranca depois. "Deixa, vá lá lavar as mãos e tomar um lanche, a gente guarda bem rapidinho". Pode até jogar bola dentro do apartamento, dribles da vaca e carrinhos em pés de cadeiras e portas atuando como gols, "só cuidado para não escorregar e se machucar. Ah, sim, atenção com a cristaleira e as taças de vinho". Pode desmanchar o cabelo do vô, fazer penteado maluco na vó, destrambelhar tudo, tudinho, cada fio e todos os fios, para então morrer de rir de como ficaram os dois, que continuam achando tudo um número, enorme diversão. Pode pular trocentas ondas no mar (mesmo com a água geladíssima), fazer buracão na areia, largar o buracão na areia para voltar ao mar, só mais um mergulhinho, pedindo para a vó ou o vô tomar conta do buraco e não deixar ninguém mexer nele, "volto já". Pode comer brigadeiro, leite condensado de colher, batata frita, pastel, sorvete de todos os sabores, chocolate ao leite, chocolate branco, chocolate crocante, nutella (o pote inteiro de uma vez), pipoca, paçoça, doce de leite, cachorro-quente, lembrando, claro, que "em algum momento vamos comer também uma fruta, uma verdura, sua mãe recomendou, seu pai reforçou, a gente pensa nisso depois". Pode mudar o canal na televisão bem na hora da novela, do telejornal, sem pedir licença, para ver aquele desenho imperdível, o jogo de futebol decisivo ou aquela série que hoje tem um capítulo sensacional. "Essa novela é muito chata, está paradona, nada acontece, nem estamos acompanhando, a gente vê o jornal mais tarde. Sentem aí no sofá. Cabemos todos. Vamos ver juntos". Pode ouvir música alta, sem fone de ouvido. "Meio barulhenta essa, né? Mas pode deixar, não conhecia". Na casa do vô e da vó tem carinho, colo, abraço, beijo, afagos, histórias, muitas histórias, livros de aventura e de terror, Mônica e Cebolinha, Mario de Andrade e Malala, Bela Adormecida e Elsa de Arendelle, Vingadores e Batman, Rei Leão e Mogli, conversas divertidas e papos sérios sobre a vida, conselhos e avisos, memórias sobre São Bernardo e Salvador, experiências- referências, exemplos, lições, dicas, aconchego, porto seguro e sossego para as almas, "vô, conta de novo aquela da sua escola quando você era criança e tinha uma professora brava? E os cavalos da ditadura?", "vô, quando você veio da Itália? E o Mussolini?", "vô, e o livro que você traduziu? Vamos ao parque no domingo?", "vó, sério que você escapava das aulas para ver os jogos pan-americanos? Morava numa chácara?", "vó, por que você quis ser jornalista? E os militares da censura?", histórias que não acabam mais, curiosidade, raízes e identidades múltiplas. Na casa do vô e da vó de vez em quando tem bronca também, porque afinal de contas até mesmo os limites infladíssimos de vó e de vô às vezes são ultrapassados. Irmão briga com irmã. Primo discute com prima. É preciso intervir, apartar. Mas é raro, muito raro, exceção da exceção, de vez em nunca. Aquela bronca firme, legítima, necessária - e ouvida com atenção e respeito. Obedecida. Sem levantar a voz. Pito manso, quase sussurrado e pedindo desculpas. "Não foi legal. Exagerou. Preste mais atenção. Não faça mais isso. Combinado? Agora vai brincar". Dorothy, as crianças aqui te adoram, mandam beijos e acham mesmo que nosso lar é especial. Magicamente, no entanto, ao lado de bruxas, leões, espantalhos e homens de lata, encantadas com o arco-íris, elas pedem para dizer a você que não há lugar como a casa do vô e da vó.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

BOLEIRO COM DATA DE NASCIMENTO AVANÇADA

Era só driblar o goleiro. 

Nos tempos de menino, corria sozinho pelo quintal da chácara do meu avô em São Bernardo, fazendo as vezes de goleiro, de atacante, me atirando no chão para espalmar lindamente um pênalti, arriscando uma falta indefensável no ângulo, em partidas emocionantes que só acabavam quando vinha lá de casa um "por hoje já chega", ainda brincava com o perigo e enrolava mais alguns minutinhos, valiosos acréscimos determinados pelo árbitro, que também era eu, até que a voz materna tornava-se mais grave e assertiva, tudo bem, logo vinha o almoço de domingo em São Paulo, quintalzão em ladeira do outro vô, pelada com os primos bicudinhos só tinha hora para começar, a briga era para ver quem atacava para baixo, todos talhados na arte boleira única de driblar a pintangueira carregadinha e as árvores de araçá que atuavam como zagueiros (e que cometiam o disparate de minar aqueles ladrilhinhos vermelhos com frutas esbagaçadas que caíam de maduras e nos faziam escorregar), saíamos de lá fedendo a ganso, era o que diziam pais e tios, mãos imundas e rostos pretos, almas saciadas de gols, gingas, dribles e tabelas marotas, semana nem bem começava e lá vinham as diárias peladas na escola, não só as oficiais, nas quadras, interclasses, partidas memóráveis contra outras escolas, mas sobretudo os torneios paralelos e aquelas pelejas que aconteciam em corredores estreitíssimos, com tampinhas de garrafa e copinhos de danone fazendo as vezes de bola, a inconveniente da maldita campainha berrando e determinando o reinício das aulas, a gente sempre achava que dava mais um pouquinho, vai, rápido, não pára, só mais um lateral, primeira bola fora, o professor não vai chegar na hora, depois subíamos as escadas voando, de três em três degraus, esbaforidos, cabelos malocados, calças resagadas, camisas imundas, sorrisos nos rostos, quem ganhava enchia o saco de quem perdia, descansar para quê?, a gente jogava também nas casas dos amigos, na sala do apartamento, sem dó, a mesa fazendo as vezes de gol, bolinhas de tênis estourando nas estantes, na televisão, nas noites de sextas-feiras e nos finais de semana, o bicho pegava nos campeonatos do clube, toma ônibus Jardim Colombo lotado para chegar lá, trânsito dos infernos que não anda, Cardeal Arcoverde travada, avenida Rebouças parada, mochila com unifome nas costas esbarrando e levando esbarrões e xingos, frio de lascar num campo de terra batida, meus pais torcendo e mandando ver nos conhaques, era o único jeito de espantar a friaca, eu jogava de meia direita, avançando para ajudar o ataque e recuando para compor a marcação, correndo o tempo inteiro, noventa minutos, cansaço?, quem disse?, fôlego para jogar umas duas ou três, seguidas, sem contar as férias em São Vicente, quando a bola rolava com os amigos e inavdia a madrugada, golzinhos feitos com pedras e chinelos, pisando firme na areia fofa ou naquela mais batida, à beira-mar, pés fazendo bolhas e ardendo a cada chute descalço, mas quem disse que a gente se importava?, segue o jogo, a parada era forte também em Serra Negra, valia a quadra municipal, o campo improvisado num gramadão atrás do prédio ou as quatro linhas desenhadas no meio da rua, todas tortas, um lado do campo maior que o outro, e quem se importava, jogávamos ferozmente, horas a fio, partidas duríssimas, rivalidades à flor da pele, as panelinhas, os escretes, eu e meus irmãos, como se fosse final de Copa do Mundo, e era quase isso, mesmo depois de baladas, sem conseguir esconder a ressaca, estômago embrulhado virando e roncando, a gente arrancava o segurança da cama às oito da matina do domingão para abrir a quadra alugada, o nível técnico, esperado, natural, era sofrível, reflexos atrasados, trombadas, lances bizarros, sem problemas, o legal era correr, correr, correr, jogar freneticamente, verdade, fôlego nunca me faltou, vontade, muito menos, e alguma habilidade também sempre tive.

Ontem, quarenta e três primaveras nas costas, joelhos com tendinites crônicas, hérnias de disco e coluna avariada, quadrinha sintética com os amigos, em dois lances os zagueiros já tinham ficado para trás, a cabeça raciocinou rápido e deu a ordem, vai, finge que vai para a direita e sai para a esquerda, corta rápido, rabisca, dá mais dois toques na bola e chuta, você sempre fez isso, é sua marca, você não esqueceu, é fácil, agora, e corre para o abraço.

O corpo refugou. Fingiu não ouvir o comando mental. Teve medo danado de fazer o movimento de rotação, de soltar aquela gingada característica e fatal e sofrer com as dores. As costas travadas. O inchaço nos joelhos. Uma semana infernal de compressas de gelo e bolsas de água quente.

Era só driblar o goleiro.   

segunda-feira, 6 de julho de 2015

MISTÉRIOS E CRIMES

PÍLULAS DA FLIP


Leonardo Padura, escritor cubano, autor do romance histórico “O homem que amava os cachorros” e de vários livros policiais, como “Morte em Havana” e “A neblina do passado”.


“Mario Conde é um personagem que me acompanha há 25 anos, desde o meu primeiro romance, “Passado perfeito”, publicado em 1990. Ele nasce sem a consciência de que seria duradouro e seguiria em outras histórias. É um detetive que sabe absolutamente nada sobre técnicas de investigação criminal. É muito inteligente e funciona levado pela intuição e pela sensibilidade. É um homem cheio de contradições, elemento que provavelmente foi responsável por estabelecer a conexão dele com os leitores. Ele não usa arma, tenta ser normal, fuma muito, bebe também. E no final faz bem o trabalho dele. A partir do quinto romance, Conde se converte em vendedor e comprador de livros usados. Pensei muito nesse novo ofício dele. Dessa forma, continua muito próximo das ruas e também da literatura. Em ‘Herege’, que estou lançando, ele faz participação especial e é testemunha que ajuda a elucidar um crime. Ele ainda está vivo, começa a narrativa numa cama, acordando e olhando para um calendário que marca a data de aniversário dele, 60 anos. Está atormentado, refletindo sobre a chegada da quarta idade, achando que não conseguiu chegar aonde queria. Os leitores dos meus romances policiais devem já ter se dado conta que minha literatura tem basicamente um caráter social. O mais importante é a história de vida, a crônica de uma sociedade contemporânea confusa, perturbada e complexa, para assim chegar ao mistério. É o que Mario Conde vai fazendo. Essa consciência crítica, que vem de inspirações literárias como (Manuel Vásquez) Montalbán e Rubem Fonseca, é o mais importante, o atributo que oferece ao gênero policial a capacidade de ser boa literatura. Um grande problema que tenho quando escrevo é a falta de imaginação. É verdade. Sofro muito com isso. O enredo policial é um pretexto que uso como forma narrativa para montar uma história. Em geral, quando começo, a partir de uma situação que pode ser mais ou menos crítica, um conflito, nem eu nem o Mario Conde sabemos quem é o assassino. A partir daí, começo o processo criativo. Escrevo e reescrevo, levo em média dois anos para terminar um livro, porque quero que tudo funcione com a máxima integridade estética e literária. Gosto de começar sem saber o mistério – é como se eu estivesse lendo o romance que estou escrevendo”. 

domingo, 5 de julho de 2015

VIAGENS

PÍLULAS DA FLIP


Beatriz Sarlo, crítica literária e escritora argentina, que conversou sobre seu mais recente livro (e-book “Viagens – Da Amazônia às Malvinas”), memórias de aventuras vividas em vários países da América do Sul, durante os anos 1960 e mais recentemente

“Para as viagens que estão nesse livro, eu não me preparei. Outros me prepararam. Nos países em que há grande impacto de imigração, e falo mais especificamente do litoral brasileiro, do litoral atlântico argentino, onde está Buenos Aires, muitos de nós descendemos de imigrantes de várias nacionalidades. Somos o produto das viagens dos outros. Nosso solo cultural é esse, sociedades urbanas muito misturadas. Fomos preparados nos outros. Isso fez com que meu livro fosse possível. Eu sou a viagem das pessoas que me fizeram. Fui transportada e perpassada pela ideologia da época, a referência de uma América Latina utópica e revolucionária que precisava ser descoberta. O Brasil era uma espécie de Meca da estética. Foi uma viagem para aprender. Quando faço minhas coberturas jornalísticas, é diferente, eu leio, pesquiso. É um tipo de viagem completamente diferente das feitas na juventude, quando é perfeitamente admissível que sejam realizadas com base numa espécie de ignorância. Se não for perito, especialista, você pode sentir mais fundo os impactos diretos dessas vivências. Vou me ater a uma perspectiva mais democrática, estar aberta a conhecer, para me deixar tocar e impactar. Eu nem sabia quem era Lucio Costa, mas me tornei modernista para sempre. É uma doença da qual jamais me curei. Fiquem tranquilos. Tudo vale. Eu fazia poucas anotações, dias e lugares por onde passávamos. Mas perdi tudo isso. Os negativos das fotos estavam se desfazendo. E um amigo resolveu digitalizar todo aquele material. De repente, aquelas fotos começaram a entrar no meu computador. Por que estão aparecendo aqui?, pensei. Não queria voltar, era um passado remoto. Mas foi algo mágico rever as fotos. A mais recente delas chegou quando eu já estava em Paraty, falando sobre esse livro. Meu amigo nem sabia disso. Senti que estava sendo transferida para mim a responsabilidade da escrita. Aquelas histórias pediam para ser narradas. No livro, somos sempre nós, o grupo, o plural, nunca falo de mim. Foi um mandato narrativo que acebei recebendo de um amigo muito querido”.


Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora portuguesa, autora de “Vai, Brasil”, crônicas que narram experiências dela quando morou no Brasil, entre 2010 e 2014.


“Fui preparada durante toda a vida para morar no Brasil. Minha geração cresceu com o Brasil muito perto. Lia livros de autores brasileiros, ouvia músicas brasileiras. Um dos primeiros vinis de que me lembro era do João Gilberto. Caetano Veloso e Chico Buarque fazem parte da minha história, tinha com eles convívio íntimo. Foram muitos, a lista é imensa. Fazem parte daquilo que sou. A imagem que formei do Brasil guarda relação com todas essas memórias e referências. Foi uma preparação contínua. A decisão de morar no Brasil aconteceu em 2010, quando estive no México para cobrir o narcotráfico e tive o encontro com o mundo indígena da América. Nas minhas viagens para cobrir guerras e conflitos, já tinha conhecido a colonização inglesa, a francesa, a otomana, agora a espanhola. Faltava a portuguesa. Foi uma decisão política, lidar com o resultado desse encontro e da colonização produzida pelo lugar de onde venho. Nossa identidade não é fixa nem está pronta. Minha chegada ao Brasil depois dos 40 anos me permitiu trazer comigo todos os lugares por onde já tinha passado, como chaves para ver o que está à minha frente. Por ser jornalista, tenho cadernos e cadernos de anotações, muitas notas. Cada palavra é importante, captar a forma como dizem. Morar no Brasil foi também a decisão de querer ser atravessada pelas muitas variantes da Língua Portuguesa. O repórter é um corpo que se coloca entre um lugar e o leitor. A palavra transporta. Atravessa. Por isso, no meu caso, os cadernos de anotações são essenciais”. 

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O CÉREBRO, A MENTE E AS CONTRADIÇÕES HUMANAS

PÍLULAS DA FLIP


 Sidarta Ribeiro, neurocientista e coordenador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Participou da mesa “Ilusões da mente”.

“Os estudos em neurociências avançaram rapidamente nos últimos vinte anos. Eu jamais imaginei que poderia chegar a esse estágio, a analisar e mapear os pensamentos de uma pessoa, sem que ela diga o que está pensando. Era coisa de ficção científica. Hoje a gente já faz isso. Consigo também decodificar sonhos, ainda que de maneira rudimentar. Daí a alcançar a consciência vai um fosso. Não quer dizer que vamos conseguir vivenciar a consciência do outro. Aliás, para entender de fato essa questão, acho que vamos precisar realizar pesquisas neurais com a gente mesmo. Porque quando olho para o outro, essa experiência fica achatada. O que significa dizer que o futuro não é só tecnológico, é também conceitual. A pesquisa neural terá de ser feita nos cérebros dos próprios pesquisadores. Cai a separação entre sujeito e objeto. Existe uma máquina por trás das nossas escolhas que é bastante complexa, mas que está se tornando ao mesmo tempo cada vez mais transparente. Se tomamos decisões conscientes precedidas por um inconsciente, estamos em pleno domínio das contribuições freudianas. Isso é uma provocação. Mas minha escolha não é menos livre por haver um processo biológico, tudo isso só deixa claro o processo. O que eu quero muito? Conseguir descrever o cérebro como hoje a gente descreve o baço, o fígado, o coração”.


Richard Flanagan, australiano que escreveu o romance “O caminho estreito para os confins do Norte”, vencedor do Man Booker Prize 2014. Inspirado na trajetória do pai do autor, o livro resgata a história da construção de Burma, a ferrovia da morte (415 quilômetros, ligando a Birmânia à Tailândia) idealizada pelo Japão para transportar tropas pelo continente asiático durante a II Guerra Mundial e na qual trabalharam forçadamente, como escravos – e morreram –, cerca de cem mil prisioneiros de guerra.

“Demorei doze anos para concluir a obra. Escrevi cinco versões completamente diferentes do livro. Na verdade, foram cinco romances diferentes. A cada fracasso, amassava os manuscritos, queimava essa papelada numa churrasqueira de verdade e começava tudo de novo. O que parece indicar que sou um bom reescritor. Para as pessoas que passaram por tragédias, pelo inferno, sobreviver é ter que lidar com essas experiências para sempre. A obscenidade da guerra não é apenas o sofrimento. Ela exige que pessoas boas causem sofrimentos aos outros. Até quem é prisioneiro sofre pelos companheiros. Passam o resto da vida tentando lidar com esses sentimentos, muitos não conseguem, inventam mitos, apagam lembranças. Para escrever o livro, fui até o Japão, encontrar um militar japonês que era um carrasco dos tempos da guerra, o ‘Ivan, o terrível’ daqueles campos de trabalhos forçados. Tinha sido condenado à prisão perpétua. Estava com 92 anos, me recebeu muito bem, foi gentil. Não cheguei como acusador. Ele me dizia que não se lembrava das barbaridades. Depois de uma hora e meia de conversa, pedi que me desse um tapa. Parecia bizarro, e era mesmo. Mas o tapa era o primeiro flagelo, a agressão mais comum. Ele ficou em pé, tenso, postura de atleta. O corpo dele se lembrou do que a mente se recusava a recordar. O homem sobrevive por sua capacidade de esquecer, para seguir vivendo. Para que a sociedade se liberte é preciso voltar para a escuridão, transcender o horror e voltar para a luz. Achei que o livro deveria questionar nossa noção clássica de heroísmo. Quando passamos por testes, o heroísmo, a raiva, a covardia, o terror, tudo isso está junto. São várias as ficções que criamos sobre nós mesmos. No meu romance, tento registrar o que as pessoas fazem. Acho que os romances ganham vida justamente quando os leitores investem na obra todas as suas próprias histórias. Dentro da gente, há sombras que avançam e que retrocedem, às vezes somos heróis, às vezes somos estúpidos. Precisamos estar alertas. O bom romance nos alerta para essas contradições. Cresci como um filho dessa ferrovia da morte. Senti que eu tinha que escrever sobre essa experiência para minha família. Queria era usar o livro como forma de falar do bem e do mal. Escrevi uma obra que explora as várias formas de amor”.


Ngũgĩ wa Thiong’o, queniano, autor de “Um grão de trigo”, que narra a independência do Quênia e as tensas e múltiplas relações entre colonizadores e colonizados.

“Em meus dois primeiros romances, tinha usado o recurso do desenvolvimento linear do enredo. Quando cheguei ao ‘Grão de trigo’, já tinha lido muito Joseph Conrad, e fiquei fascinado com a possibilidade dos deslocamentos temporais, o caleidoscópio. O mesmo fato, visto pela mesma pessoa, em momentos diferentes, têm outra dimensão. Outra pessoa tem percepção diferente desse mesmo acontecimento. Estava interessado nas múltiplas vozes. Para mim, a luta pela liberdade é coletiva. Queria capturar essa saga coletiva. Não há heróis individuais. A coletividade é o herói do meu romance. Em todos nós, há distâncias entre expectativas e realidades. Não sabemos como reagiríamos diante de uma situação limite, uma tragédia. Somos textos de contradições. O que me interessa é esse tipo de situação. Não aceito a tortura, nunca, não se trata disso, mas o que um torturador faz quando chega em casa, como ele conversa com a família? Como escritor, esse tipo de pergunta me fascina, porque são perguntas que dizem respeito ao humano.  Nasci antes da Segunda Guerra Mundial, vi muito sangue. Mas minha capacidade de sonhar permaneceu. Devo muito à minha mãe, que não sabia ler nem escrever, mas me contou histórias e me botou na escola. O sonho da educação passou dela para mim”. 

O DESCONFORTO DO ESCRITOR

PÍLULAS DA FLIP


Colm Tóibín, escritor irlandês, autor dos romances ‘Brooklyn’, ‘A luz do farol’, ‘O mestre’, ‘Mães e filhos’, ‘O testamento de Maria’ e ‘Nora Webster’


“Conforto é péssimo. Nada de poltrona. Escritor precisa trabalhar numa cadeira desconfortável, daquelas velhas, de madeira dura. Sem comer. Beber, nem pensar. É assim que funciona, que ele consegue produzir, se concentrar, buscar as histórias que estão escondidas e construir suas metáforas. Um romance só nasce quando tenho imagens e memórias, ideias, que de repente se movimentam como crianças, para se transformar em frases com melodia. O que está inerte e adormecido torna-se dinâmico. A escrita e a frase nascem do espaço íntimo. É o milagre humano da inspiração. A vivência é fundamental. Escritores usam pequenos detalhes do que realmente aconteceu, do que acompanharam. Com 12 anos, eu sentava com adultos na sala da minha casa para escutá-los, até que alguém dali me expulsasse. Tinha uma memória prodigiosa. Guardava e lembrava de tudo. Depois de um ano, ainda recordava falas das amigas da minha mãe. Era um perigo e um pesadelo para a minha família. É exercício fundamental para o romancista. Por essa razão, muitas das passagens de meus romances são autobiográficas. Venho de uma cidade pequena da Irlanda, perto do mar. Quando estou longe, sinto saudade. Tendo a voltar para lá sempre, nos livros. Você se acostuma, sente falta. É identidade. De fato, é uma forma muito interessante (os diálogos e as conversas fantásticas em ‘Nora Webster’, que acaba de ser lançado e narra a trajetória de uma senhora viúva, na Irlanda dos anos 1960). Procuro antes expressar o que o personagem está pensando, sonhando, lembrando. E em seguida o que ele diz. Pode ser muito diferente do que veio antes. É o jogo entre o que está acontecendo na mente dele e o que se revela. O não dito me interessa, de forma que o leitor entre numa espécie de conspiração com o personagem, o que ele sabe e o que esconde. É estratégia muito poderosa. O leitor vai lentamente seguindo e descobrindo a história. São personagens complexas, que se destacam (as personagens femininas, marcantes em seus livros). Como faço? Em primeiro lugar, sempre observei minha mãe e as irmãs dela conversando. Além disso, é incrível notar como as mulheres conseguem falar sobre assuntos aparentemente banais. Os homens falam de futebol, se repetem, falam sobre nada. É desesperador, você fica esperando, vamos lá, diga alguma coisa. Não sai. As mulheres estão sempre conversando. Minha Maria, vinte anos depois da crucificação de Cristo, queria falar tudo. Meu trabalho foi deixá-la falar. E tornar essas falas críveis. Foi impressionante (destacando como as narrativas ajudaram a aprovar o casamento homossexual na Irlanda, por meio de plebiscito). Precisava ser plebiscito, por determinação constitucional. A gente precisava mudar o voto de cerca de um milhão de pessoas. Como convencê-los? Contando histórias. Não fizemos uma campanha conceitual e abstrata, teórica, falando dos direitos humanos, dos direitos dos gays. Contamos nossas histórias. Depoimentos e testemunhos. E muita gente foi saindo do armário, o filho do político, o ministro da Defesa, todos fomos dizendo ‘temos namorados, temos namoradas, somos felizes, queremos casar, nos deixem viver assim’. E aconteceu uma coisa incrível, o filho foi pedindo para o pai, vota por mim, o vizinho também. Uma linguagem nova foi usada. Os mais novos conquistaram os votos dos mais velhos. Foi muito bonito”.   

A plateia aplaudiu, em pé.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

POBRE JUVENTUDE POBRE. A MAIORIA TE QUER PRESA

A noite em que nos tornamos muito menos humanos. Falas raivosas. Espumando ódio. Vingança. É o que deseja a família brasileira. As pesquisas mostram, 87% querem a redução. Mas Hitler também foi vontade inconteste do povo alemão. Ungido pelas urnas. Carregado nos braços do povo. Nazismo. Segunda Guerra Mundial. Campos de concentração. Câmaras de gás. Holocausto. Extermínio de judeus. Negros. Portadores de deficiências. Ciganos. Comunistas. Todos os que não fossem arianos. Puros. A humanidade a flertar com a barbárie. O horror. Maiorias. Massa. Manada. Histeria coletiva. Maiorias. Os nazistas eram maioria. A democracia é a vontade da maioria. Mas tem peso e contrapeso. Mas tem respeito e proteção às minorias. Mas tem equilíbrio. Mas é garantia de direitos fundamentais. Mas é recusa à intolerância. Chega de discursinho besta de esquerdista! Redução da maioridade penal já! Vamos votar! Porque somos maioria, oras. Escolas? Cadeias. Já são bem grandinhos. Direitos humanos para humanos direitos. Vamos proteger as pessoas de bem. Educação? Penas de privação de liberdade. Duras. Rígidas. Repressão. Chega. Basta. Mas já temos o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas já temos medidas socioeducativas. Adolescentes são vítimas. Redução não é solução. Não é só rima. É fato. Vamos trancafiá-los em nossos indecentes e superlotados presídios? É o que deseja a maioria! ECA é balela. Bobagem. Não resolve. Pífio. Nossos jovens estão dando lições aos militantes do Exército Islâmico. Está com pena? Leva esses animais para casa. Nas quebradas das periferias, o pau come solto. Policial mete o pé na porta, sem pedir licença. Fuzila. Chacina. Bala no peito. Na cabeça. Corpo que some. Mães que choram. A polícia é o único Estado presente. Não tem escola. Não tem quadra. Não tem centro cultural. Não tem banda de música. Não tem biblioteca. Não tem sonho. Não tem esperança. Tem jovem negro assassinado. Tem tráfico de drogas. Vamos mostrar para essa molecada canalha quem é que manda. Corja. Escória. Mas a grana que financia está nos casarões murados dos Jardins. Nos condomínios de luxo da Zona Sul. Quem vai ser preso? Não venha com mimimi. Oras, são famílias de bem. Precisam de segurança. Vamos enjaular essa pivetada delinquente. Quarta maior população carcerária do mundo. Vivemos todos seguros, na santa paz dos lares das santas famílias brasileiras. Ainda assim, a proposta foi derrotada. Não alcançou a maioria de que precisava. Faltaram cinco. Aguardem. Não acabou. Vamos esgotar a matéria. A gente conversa amanhã. Sorriso cínico, canto de boca. A ocasião faz a maioria. O déspota manobra na calada da noite. Pressiona. Achaca. Perdi? Vamos votar de novo. Tem emenda aglutinativa. Se perder mais uma vez? Vamos votar de novo. Mais uma emenda aglutinativa. Até alcançar a maioria exigida. A tese dele é a única que vale. Corta o microfone de quem fala contra. Rasga o regimento. Nega com truculência questões de ordem. Desdenha. Usa o celular para esbravejar com quem não está no plenário. Adulado pelos lambe botas, pelos vira casacas. Por que mudaram o voto? Mistério. Mas e o governo? Pariu a serpente. Está tirando selfie com Obama. E a base do governo? Só serve para aprovar ajuste fiscal e cortar direitos dos trabalhadores. E os jornais? Escolheram o lado da barbárie. Faz tempo. Covardia. Omissão. Conveniências. Acordos. Governabilidade. Farsa. Golpe. Um salve aos deputados que, encurralados, nadam contra a corrente e discursam e votam contra a redução. O Império de Cunha. Eleito deputado com 232.708 votos. Eleito presidente da Câmara pela maioria da Casa. Manda e desmanda. Controla. Ameaça. Apoiado pela maioria. Dublê de Senador Palpatine. Com maioria. Eram 303. Foram 323. Maioria. Assim começamos a matar a nossa democracia. Com aplausos estrondosos. O lamento angustiado da rainha Padmé Amidala não sai da minha cabeça. Não é ficção.