sexta-feira, 31 de julho de 2015

ALIANÇA VOADORA

Já não lembro se era campeonato paulista ou brasileiro, final de 1997 ou primeiro semestre de 98. Sei que era noite de quarta-feira. De sopetão, na última hora, depois de chegar do trabalho, combinei com meu irmão, vesti meu manto branco sagrado e fomos ver Santos e Palmeiras no antigo Parque Antártica (amigos palestrinos, a nova arena é lindíssima, moderna e padrão mais que FIFA, tem elevador e escada rolante, mas charmosos mesmo eram os jardins suspensos do antigo Palestra Itália).
Ingresso a gente comprava na bilheteria, chegando cedo, desviando dos cambistas, enfrentando fila, discutindo com os espertalhões que fingiam não saber que a fila existia e também enrolando aqueles malacos que colavam nas gradinhas separadoras das filas para dizer 'ô, completa aí, só falta um conto, vai...'. Não tenho, cara, fica para a próxima. Era meu discurso padrão. Uns ficavam bem bravos; outros nem esperavam para ouvir a resposta e já estavam falando com outro parceiro.
Se não me engano, aquele foi o primeiro jogo no estádio depois de casado. Ainda não estava acostumado com a aliança na mão esquerda, meu dedo anular que de tão fino lembra aquele ossinho que o João, irmão da Maria, usava para enganar a bruxa má, doidinha para vê-los gordinhos e servi-los cozidos, irritada porque esse dia chegava nunca. MInha magreza, aliás, defeito de fabricação, deixava minha mãe desesperada, quando eu era criança. Ela só sossegou quando, depois de peregrinar por vários pediatras, alguns cheios de diplomas pendurados nas paredes e a inventar as doenças mais esdrúxulas, ouviu de um deles, doutor de confiança da família: 'minha senhora, fique tranquila, não há o que fazer, é a constituição dele. Não vai engordar nem com bomba de encher bicicleta". Há quem recorra ao dito popular para garantir que sou magro de ruindade. Adoro mesmo me esbaldar com pizzas, pasteis, batatas fritas, sanduíches e coca-cola. Magro era, magro continuo sendo. E foi naquela noite futebolística no estádio do Verdão que descobri de maneira quase trágica que dedo fino e aliança não combinam.
Como de praxe, sentamos perto da Torcida Jovem, bem na curvinha, atrás do chamado gol da ferradura. Bunda no cimento gelado. Cadeirinha e lugar marcado eram luxos que só existiam, ouvia dizer, nos estádios europeus. Besta, tenso, sem tirar os olhos do campo, hipnotizado, tinha a mania de assistir aos jogos brincando com a aliança. Sem dificuldade, aproveitando a largueza, atrito nenhum, arrastava a argolinha matrimonial de ouro pelo anular, subindo e descendo, subindo e descendo, até a pontinha do dedo, em movimentos repetitivos e incessantes. Era natural, mecânico. Instintivo. Jamais passou pela minha cabeça que o pior poderia acontecer.
Numa dessas idas e vindas, aliança vai, aliança vem, bola de lá, bola de cá, cruza na área... gol do Santos! Levantei para comemorar junto com a torcida. Fiquei no grito de GO. O "L" não saiu. Ficou engasgado. Emudeci. Senti as pernas bambas. Não ouvi mais nada.. Fechei a mão direita inteira no anular esquerdo, para confirmar. A aliança não estava lá. Naqueles malabarismos dedais, euforia e festa ao ver a bola estufando as redes bem na minha frente, a danada saiu voando.
Enquanto eu tentava passar em revista e montar bem direitinho o que diria para Elisa - sim, sou um cretino, nem um ano de casado e perdi a aliança, sério, pode acreditar, me desculpe, bobagem, você tem razão, foi no estádio, verdade, na hora do gol, pode perguntar para o meu irmão (e irmão lá é álibi nessas horas?) -, empurrava todos os que estavam perto de mim e dizia 'ninguém mexe, ninguém mexe, ajudem aí, rápido, perdi minha aliança'.
Um clarão se abriu imediatamente em minha volta. Zona de segurança. Solidariedade santástica. Ceninha patética - éramos uns dez de joelhos, rastreando e apalpando cada centímetro quadrado da arquibancada. Sou míope, a iluminação do Palestra era de lascar. Foi no tato mesmo. E na sorte. Agachado, dando batidinhas com as mãos em concha no cimento, como se jogasse bafo, achei a danada. Estava bem na minha frente, um degrau para baixo. Brilhante. Intacta. Formosa. O vôo da aliança tinha sido curto; a aterrissagem, tranquila. Sem traumas. Voltou rapidinho para o dedo. Gritei muito. Os camaradas se levantaram e gritaram junto. Parecia o segundo gol do Santos. Quem estava mais longe fez cara de ponto de interrogação e entendeu nada. Na minha lembrança, tudo isso demorou, vá lá, uns dois minutos.
Sei não. Desconfio que a mandinga de ver os jogos do Santos e da Seleção com o celular agarrado na mão esquerda nasceu naquela noite. Não tem jeito de fazer a aliança dançar. Dá sorte. E agora vocês já sabem de onde vem o nome - Allianz Parque - da nova arena verde. O Parque da Aliança. Justa homenagem.

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