terça-feira, 30 de julho de 2013

EM 'SAL", LETICIA WIERZCHOWSKI RETOMA SAGAS FAMILIARES

Durante várias décadas, homens de sobrenome Godoy foram responsáveis por cuidar com esmero do farol da ilha de La Duiva, que ilumina os caminhos e dá as referências de perigos escondidos no mar aos barcos que navegam pela região. Com a morte do marido Ivan, educado nas artes de entender o sobe e desce das ondas, o último dos Godoy que de fato soube controlar a pulsação daquele acende-apaga incansável de luzes, Cecília, a viúva, decide solicitar à capitania dos portos a contratação de um faroleiro profissional. Achava que era preciso colocar fim aos naufrágios que passaram a ser registrados por ali, em quantidade fora do comum. "O farol precisava de alguém à sua altura, um homem forte e jovem que pudesse domar-lhe o selvagem coração de luz, o ventre de concreto, as vísceras brancas e vermelhas". No fundo da alma, a velha senhora alimentava outro desejo: sozinha na ilha, queria aproveitar o tempo livre para dedicar-se a resgatar as memórias da família. "Sal", romance escrito pela gaúcha Leticia Wierzchowski e que chegou recentemente às livrarias, narra essas lembranças. O livro é um tapete colorido, várias camadas, tecidas pelas mãos hábeis da costureira/narradora Cecília. Deixando vir à tona amores profundos e remoendo dores ainda intensas, bem vivas, a matriarca mistura novelos de lã de cores variadas.

O entrelaçar das agulhas, que trabalham em ritmo frenético, permite ao leitor conhecer as trajetórias dos seis filhos do casal. Cada um deles é identificado por Cecília com uma cor. Lucas, o primogênito, é azul. Sente remorso pela morte súbita do pai e decide abandonar muito jovem a ilha. Julieta, sépia, não suporta a avó paterna, tem pesadelos com ela e é vítima de espécie rara de epilepsia. Eva e Flora são gêmeas e, embora associadas à mesma cor (magenta), escancaram personalidades opostas. A primeira é ardilosa, sedutora, encantadora de rapazes, a colecionar conquistas amorosas. Não suporta viver na ilha. Odeia ler. Adora nadar. A outra é romântica, sonhadora, conhecedora profunda das obras clássicas da Literatura. E escritora.

Artesã das letras, é Flora quem divide com Cecília a tarefa de preservar a história da família. Em "Sal", as vozes das duas se alternam, se completam, brigam. Lançam olhares distintos sobre o mesmo universo. A filha fica assustada, porque muito daquilo que ela escreve acaba acontecendo de verdade. As tramas se esparramam, difusas, convidando novos e decisivos personagens a participar do enredo. Por caminhos tortos, o romance produzido por Flora chega às mãos de Julius, professor da Universidade de Cambridge, estudioso da nova literatura latino-americana. Ele fica em êxtase, profundamente encantado com a competência narrativa da jovem e anônima autora que morava naquela ilha distante, litoral do Uruguai. Vai ao encontro dela. Começam a namorar. É apenas atração intelectual.

Porque Julius apaixona-se desbragadamente mesmo é por Orfeu, outro irmão de Flora, também mais velho que ela. Associado ao vermelho, intenso, libertário, leitor voraz, sofre desde criança com os olhares fulminantes de condenação do pai, que só aceita filho 'macho'. Busca abrigo nos braços compreensivos da mãe. E de outros rapazes. Por um tempo, esconde a homossexualidade (embora todos já soubessem). Quando decide assumi-la, foge da ilha para viver grande amor com o professor de Cambridge. Arrisca-se e morre por ele, longe de casa. Quem sai pelo mundo para tentar reencontrar o irmão, a pedido da mãe, é Tiberius, cor amarela, o caçula do casal Godoy. Tem premonições, consegue adivinhar o futuro. Depois de cumprir sua missão, de enfrentar agruras e de conhecer conquistas, o rapaz volta para a ilha, levando com ele o filho Santiago. Cecília, que se identifica com a cor branca (em tempo: Ivan é verde), vê as esperanças renovadas. Alegra-se com a possibilidade de cuidar do neto. O mais novo Godoy. O herdeiro. Um menino, cor violeta, que será apresentado ao farol da ilha de seus ancestrais. "Ainda posso, ainda tenho forças nestes meus braços. Meu coração alquebrado não esqueceu como se ama", comemora a matriarca.

Cecília, importante destacar, é uma narradora nada egoísta. Na costura que faz, dá vez a outros personagens: Ivan fala sobre Orfeu, Tiberius revela suas impressões sobre Lucas, Eva diz o que pensa sobre Flora. Não há censuras. A polifonia é marca de "Sal". Sim, a obra tem duas narradoras principais, a conduzir o leitor pela mão - mas a saga familiar é reconstituída a partir de um furacão múltiplo de vozes, que sistematiza sobreposição de sotaques, numa (compreensível) torre de Babel. Há momentos em que várias linhas são desfiadas ao mesmo tempo, e o leitor, instigado e curioso, passa a persegui-las, movendo-se de lá para cá, perguntando-se aonde a autora pretende chegar com tantos novelos sendo desenrolados. Será que vai perder o fio da meada? É recurso para não permitir desviar a atenção. Há de fato trechos em que essa dispersão parece exagerada. Um risco. Aos poucos, com habilidade e sutileza, as pontas vão se encontrando, os nós vão sendo dados. Há surpresas reservadas, claro. O que estava desconectado forma conjunto. E o tapete ganha contornos nítidos. O leitor consegue enxergá-lo, com todas as suas cores.

Em "Sal", publicado pela editora Intrínseca, Leticia retoma caminho que já havia seguido em livros anteriores, como "A casa das sete mulheres" e "Aparados" - esmiuçar histórias familiares, tratando das picuinhas e desavenças cotidianas, problemas ditos menores, mas que acabam por minar convivências, como as relações sempre conturbadas entre sogra e nora. Aborda também dúvidas e angústias mais profundas de todos nós (no romance, além do preconceito, do tabu a acompanhar a homossexualidade, e por conta da paixão de Orfeu e Julius, há sensíveis reflexões sobre o início da epidemia mundial de Aids, quando a síndrome não era conhecida, sequer tinha nome).

Ao conversar tão de perto com o passado e permitir-se acessar as caixas interiores mais íntimas, a matriarca Cecília faz um convite aos leitores, independentemente de idades: sempre é tempo de tecer tapetes coloridos e de fazer balanços de perdas e ganhos.  

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A FORÇA DOS PERSONAGENS EM "A TRISTEZA EXTRAORDINÁRIA DO LEOPARDO-DAS-NEVES"

Um escrivão de polícia atormentado e insone, amparado por generosas e corriqueiras doses de whisky e comprimidos de anfetamina, divide suas atenções entre a rotina na delegacia e os cuidados não muito entusiasmados com o pai, senhor de idade com demência em estágio avançado (tentou duas vezes o suicídio), que gosta de ouvir do filho, antes de dormir, histórias sobre animais. Moram num sobrado no tradicional bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo - no térreo, funciona uma antiga mercearia ainda mantida pelo patriarca; o abrigo deles fica no andar de cima.

Bem perto, num casarão misterioso, sombrio, vive a Sra X, enfermeira especializada em geriatria, formada na Inglaterra e profundamente religiosa, responsável por cuidar de uma personagem enigmática, com um metro e vinte e cinco centímetros de altura e trinta e dois quilos de peso, a usar sempre uma capa vermelha. Identificada apenas como a "Criatura", sofre com uma doença que faz a pele ficar cheia de escamas e feridas, aparência terrível. Quase um monstro. Por conta da saúde delicada e da repulsa que provoca, passa boa parte do tempo enclausurada, incomunicável, recorrendo a leituras e à televisão. Os raríssimos programas para além das paredes da mansão são noturnos. Obrigatoriamente. Para sobreviver, as duas são ajudadas por um solidário e curioso entregador de supermercado (o único que quase consegue ver a Criatura na mansão). É ele quem faz chegar comida e outros mantimentos básicos até elas (muitas vezes colocando na conta do patrão). Obcecado pela vontade de arrumar namorada, motivo de chacota entre os colegas, o rapaz quase estupra uma jovem da igreja que frequenta.

Numa das aventuras fora do casarão, cuidadosamente planejada, a Sra X e a Criatura participam do Nocturama, passeio oferecido pelo zoológico da cidade, a permitir que os visitantes tenham contato direto com animais de hábitos noturnos. São levadas ao parque por um taxista sádico, dedicado a encontrar vítimas (primeiro gatos, depois carneiros e até moradores de rua) para saciar a gana enfurecida dos três cães rottweilers que ele cria. A Criatura deseja ardentemente conhecer de perto o leopardo-das-neves que, depois de se deixar encantar pela sonoridade da voz humana, foi capturado nas distantes montanhas da Rússia e atravessou o mundo até chegar ao cativeiro paulistano. Com a rejeição inicial e posterior morte da companheira de jaula, já no zoológico em São Paulo, o felino asiático entra em profunda depressão, com transtornos de comportamento. Refugia-se numa caverna. Só sai dela à noite. Desesperado, dilacera as patas dianteiras. Quase morre.

Naquela noite fatídica, depois de deixar a Sra X e a Criatura no portão de entrada do parque, num ímpeto de fúria e movido por instinto cruel, o taxista decide voltar para buscar seus cachorros em casa, faz meia volta e retorna com eles ao zoológico, para que lá pudessem se fartar impunemente com novo desafio - caçar impiedosamente os bichos soltos. As histórias se encontram. Os caminhos se cruzam. Explode uma narrativa tensa, com cenas eletrizantes e cortes rápidos, descrições detalhadas, a lembrar os escritos do mestre Edgar Allan Poe, misturando mistério, suspense, tragédia, mortes, o fantástico e o sobrenatural, uma tempestade, uma veterinária vaidosa e sem saber como reagir, casais movidos por falsas paixões, celulares sem bateria, orelhões de emergência que não funcionam e até espancamento, exigindo finalmente investigação policial, que será acompanhada e relatada pelo escrivão. O caso do Nocturama, como o episódio ficará conhecido, será (também) narrado ao pai do policial. Noturnamente, a embalar o sono do velho. Coincidência: terminei de ler "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", romance mais recente do mato-grossense Joca Reiners Terron, na madrugada fria e chuvosa da terça para a quarta-feira (24-25 de julho), quando os termômetros em São Paulo marcavam temperaturas baixíssimas, perto de zero grau. Inspirador.

Ao demarcar ainda território com pistas paralelas, num emaranhado de tecidos que se completam, a narrativa coloca o leitor em sintonia com reflexões diretamente relacionadas à essência do ser humano e evidencia contradições que caracterizam megalópoles como São Paulo. Em mutações com sentidos inversos, o leopardo se humaniza, despertando solidariedade e preocupações, e a Criatura se bestializa, provocando sustos, medo e ojeriza. Sem saber ao certo como lidar com a velhice e a doença, o escrivão tem no pai um estorvo, uma atrapalhação, de quem deve cuidar quase que só por pena e obrigação, a confirmar a terceira idade como uma etapa descartável da existência e de quem desejamos distância. Quando garoto, o narrador revolta-se e dá uma surra num colega que não consegue esconder comportamento racista e o chama de sarará, dizendo que "ele não podia ser filho de um homem tão branquinho" (a mãe do protagonista era negra; o pai, judeu).

O taxista, no limite do desprezo absoluto pela vida, a fazer do diferente produto também descartável, sem culpa, é capaz de oferecer aos dentes afiados e implacáveis de seus cães um morador de rua, para arrefecer o instinto selvagem de destruição dos animais. "(...) em poucos segundos o cão mais jovem conseguiu mordê-lo na garganta. A última nota da execução musical  - um dó maior - foi o som da carótida do morador de rua se partindo". Na percepção do taxista, que circulava regularmente pelo Bom Retiro e imediações à procura de passageiros, a região central da cidade, durante a noite, abriga "putas e travestis nas calçadas escurecidas. Viciados em crack. (...) Mapeou os locais utilizados pelos noias para dormir. (...) Observou a dança dos corpos envoltos por cobertores malcheirosos. As chamas avermelhadas dos cachimbos improvisados".

Na visão do narrador, desde criança morador do bairro, "no comecinho da manhã, o Bom Retiro volta à vida e é tomado pelos comerciantes coreanos que batem papo nas portas de suas lojas, enquanto os velhos judeus que restaram vão à sinagoga rezar para que em breve possam aumentar o preço do aluguel pago pelos coreanos, e as ruas então são ocupadas pelo bolivianos, por toda a população de Santa Cruz de la Sierra e de La Paz juntas, que rezam para Ekeko lhes arranjar dinheiro fácil para retornarem a seu país, mas na verdade só conseguem ser explorados pelos coreanos, que devem seus aluguéis aos judeus".

Em debate recentemente realizado na Virada da Livraria Cultura, que reuniu também os escritores Daniel Pellizzari e Andréa del Fuego, Joca anunciou a disposição literária de abandonar os raciocínios tortuosos e as frases rebuscadas presentes em obras anteriores para apostar em narrativas de personagens. História de múltiplas vozes, embalada por conflitos mundanos e comportamentos complexos, não raro espantosos e repugnantes, "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves" registra com tintas bem nítidas essa reviravolta. E deixa o leitor com vontade de "quero mais".

quarta-feira, 24 de julho de 2013

ESCREVER É SEMPRE UM ATO DE PACIÊNCIA E DE CORAGEM



Confesso: sou alguém cada vez mais arrebatadoramente apaixonado pela escrita. Descobrir (e testar, errar, voltar, desviar, recomeçar) os atalhos e os caminhos que transformam palavras e frases soltas em narrativas com começo, meio e fim é das habilidades mais fascinantes que a espécie humana foi capaz de conquistar. Claro, a produção de textos, equilibrada combinação de razão e sensibilidade, é tarefa singular. Não há fórmulas, trajeto único, modelo infalível, pote de ouro garantido no final do arco-íris. No meu caso, diante de um tema, uma pauta, uma provocação, tudo o que consigo tocar nesse primeiro momento é a dúvida, a angústia, a escuridão densa de um "e agora?". Vale para qualquer texto, com diferentes gradações e níveis de sofrimento: um post no facebook, matéria ou crônica no Blog, reportagem para um frila, entrevista, artigo para uma aula. É obsessivo, maníaco, quase patológico. Assumo.  

Vêm as leituras, pesquisas, anotações, rabiscos sobre números e dados, um olhar perdido e pensativo, repentino, na mesa do bar, no meio de um encontro de amigos, o silêncio contemplativo, enquanto todos falam desbragadamente. Quando surge alguma ideia, apresso-me a agarrá-la no ar, esboço sorriso. Bem de leve. Os filhos percebem o estado de transe, "pai, ei, acorda, em que mundo você está?"; a esposa, que já sabe de longa data como funciono, brinca e diz "seu pai está montando um texto. Ou fazendo alguma análise sociológica".

Umas manchas ainda desbotadas começam a ser anunciadas. Com mais um pouco de paciência, coragem, força, alcançam o status de ideias - soltas, perdidas, fragmentadas, sem fazer muito sentido. Aparecem nas situações mais inusitadas - no banheiro, numa reunião importantíssima (e o interlocutor não para de falar, é desesperador), durante o jogo decisivo de futebol, nos sonhos (levantar e registrar? Não, acho que consigo lembrar amanhã...). É um estágio pautado não pelo acaso, mas por dinâmica e efervescente intuição, porque estímulos elétricos já tinham sido disparados, fazendo o tico conversar com o teco, em sinapses que provocam tremeliques de desejos e ansiedades. Legal, mas o que fazer com esse turbilhão tão bagunçado de possibilidades?

Algumas ideias são anotadas; outras, rapidamente descartadas. Lixo, bobagem. Há ainda aquelas que merecem uma segunda chance e são cuidadosamente depositadas numa caixa reserva, em repouso, para serem regadas e fermentadas. E não é que aos poucos começam a conversar entre elas, em diálogos cada vez mais barulhentos? Engates surgem, por semelhanças ou estranhamentos, proximidades ou oposições. Os estilhaços ganham contornos de conjuntos, cada vez mais afinados, harmônicos, em sintonia. Na cabeça, tudo está muito claro. Cristalino. Passo e repasso a história, as cenas, as falas, o clímax, os argumentos, os personagens. Já temos começo, meio e fim!

Arrisco uns rabiscos no papel. A folha fica cheia de asteriscos, comentários, anotações, flechas, acréscimos, orações inteiras riscadas e cortadas (pode ser feito também direto no computador, recorrendo às cores e ao comando "controlar alterações" acionado. Mas não substitui a beleza do rascunho manuscrito). Primeira versão concluída. Crise. Não gostei. Porcaria, na cabeça estava tudo tão bem resolvido, evidente. Agora está burocrático, sem alma, apesar de tecnicamente correto. Deixo de lado. Respiro. Repenso. Ando sem parar. Fico agoniado. Viajo mais um pouco, solto o pensamento. Melhorar onde? Como? Tento de novo. Peço para alguém ler e dar sugestões. Leio em voz alta. Procuro perceber as lacunas e a sonoridade da história.

Vamos lá. Concentração. Sento. Reescrevo. Segunda versão. Vá lá, há avanços, já tem carinha de história. Mas dá para mexer mais. E mais. Decisões frenéticas. Sobe frase. Desce parágrafo. Junta trechos. Resgata anotações. Como é que deixei essa fala de fora? Experimento outro abre. Mudo o final. Opa, vai sair, estou gostando! Só mais um pouquinho, umas mudancinhas extras que me ocorreram neste momento derradeiro (porque tem sempre o prazo. Podem ser horas, dias, semanas. Mas o "termina já!" sempre se faz presente, atormenta).

Mais umas duas versões depois, o coração está mais tranquilo, já é possível sorrir de encantamento, sem fazer muito esforço. Acho que ficou razoável. É, ficou bom. Reviso. Reviso. Reviso. Pinta certo cansaço, aquele sentimento de "ponto máximo, é o melhor que posso fazer. Não dá mais. Se insistir, vai virar bode. Pior". Imprima-se. Publique-se. O que será que os leitores vão dizer? Pedras ou confetes e serpentinas? E é inevitável - quando volto a ler a versão já publicada, agora com relativo grau de distanciamento, os dedos começam a coçar, ouriçados. Deveria ter escrito diferente aqui, ali, acolá. Não acaba nunca. Bom sinal. Fantástico.

Qual é mesmo o assunto do próximo? O prazo?

segunda-feira, 22 de julho de 2013

ESCRITORES FALAM SOBRE DIVERSIDADE DE TEMAS NA LITERATURA BRASILEIRA



Dúvida cruel de uma tarde de domingo - acompanhar o debate sobre "A nova prosa brasileira", 15h, na Virada da Livraria Cultura, ou ver pela televisão os meninos da Vila contra o Coritiba, às 16h? Pensa de lá, calcula de cá, ajusta trajetos e desejos. Decidi finalmente substituir o "ou" pelo "e". Apostei na conciliação. Lá fui eu curiosamente ouvir os escritores Andréa del Fuego, Joca Terron e Daniel Pellizzari, legítimos representantes da chamada literatura nacional contemporânea, em debate mediado por André Conti, editor da Companhia das Letras. O jogo veio em seguida (os quinze primeiros minutos ouvi pelo rádio, no carro, na volta para casa, comemorando o gol do Neílton e ainda degustando as análises literárias e as histórias que tinha ouvido).

Instigados pelo mediador, os três autores dedicaram-se inicialmente a considerar e avaliar a multiplicidade de temas que marca nossa atual produção de livros, cenário diferente daquele vivido há quinze ou dez anos, quando o espectro de assuntos parecia bem mais limitado. Andréa concordou que é inegável o surgimento de novas vozes literárias e que, em breve, talvez cheguemos a um estágio onde todo leitor também será de alguma maneira escritor, principalmente por conta da internet. "A produção textual tem aumentado significativamente. Tem muita gente saindo do armário para as prateleiras, ainda que de forma independente. Claro que vamos ter de pensar sobre a qualidade de tudo isso. Pode ser ingenuidade, mas me parece interessante que seja assim, pois ainda temos poucos apreciadores da literatura brasileira, quando comparamos com os estrangeiros e os best sellers". Ela citou como exemplo o primeiro romance que escreveu, "Os Malaquias", lançado em 2010, uma narrativa rural, marcada por experimentalismo mágico, que se passa na roça de Minas Gerais, e que acabou conquistando elogios do público e dos críticos, garantindo-lhe inclusive o Prêmio José Saramago de 2011. "Era muito específico. Foi uma surpresa", reconheceu.

Depois de uma literatura pós-ditadura militar, nos anos 1990, marcada essencialmente por histórias urbanas, relacionadas à violência e à exclusão social, a constatação de Joca Terron é que seria obrigatório e inevitável que essa produção explodisse e se tornasse multifacetada, a representar divergências da própria sociedade brasileira. Ele alertou, no entanto, que esse movimento é ainda limitado, pois nossas principais editoras estão concentradas no eixo Sul-Sudeste, e quem produz literatura num outro cenário (o Centro-Oeste, por exemplo), com outras dicções e enredos, acaba por encontrar barreiras complicadas e nem sempre é bem recebido. "É cada vez mais evidente que a literatura é constituída coletivamente. Não dá mais para apostar só naquele gênio, que tem seu público cativo e seu estilo consolidado", reforçou. Para Pellizzari, a diversificação temática é um fenômeno diretamente associado ao amadurecimento dos autores - impactados pela internet, começam a escrever cada vez mais cedo. "Nos anos 90, a dinâmica era muito verticalizada e pautada pela mídia. Havia espécies de juízes específicos do gosto do público. Hoje, há dezenas de sites e de blogs, que recomendam autores distintos. Talvez mudanças nos escritores tenham sido empurradas por essa leitura mais horizontal. A partir daí, um autor influencia o outro, há trocas, impactos mútuos, até por contrastes, e nasce um circuito mais amplo".

Movimentando-se do geral ao particular, os três escritores não se furtaram também a explicitar características específicas de suas obras, sobretudo dos livros mais recentes de cada um deles. Pellizzari revelou que demorou muito - sete anos - para escrever "Digam a Satã que o recado foi entendido". Depois de apostar, em romances anteriores, naquilo que chamou de tradição mais formalista, queria falar sobre pessoas, desenvolver os personagens com mais profundidade, abordar variados pontos de vista, sugerindo como se formam consciências. Teve várias crises, não sabia muito bem como construir e conduzir essa história. "Foi uma mudança de perspectiva. Acho que consegui concretizar a polifonia que desejava". Terron afirmou que a ficção é uma arte relacionada à maturidade e que leva tempo para um escritor desenvolver e consolidar sua técnica. Ele lembrou que, ao final de "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", muitos leitores perguntaram as razões que tinham levado o autor a abandonar as frases mais longas e rebuscadas. "Talvez porque elas fossem ruins", reconheceu. Assim como Pellizzari, preferiu apostar firme nos personagens. "É fascinante desenvolvê-los. É a isso que tenho me dedicado nos últimos tempos", completou.

Andréa já tinha uma carreira reconhecida com os contos e as narrativas infanto-juvenis. Depois do que chamou de uma corrida de dez quilômetros, ainda tinha dúvidas se teria fôlego e capacidade para correr uma maratona - escrever um romance. O de estréia, "Os Malaquias", representava mais acerto com relações familiares, consagrando o que ela chamou de oferenda aos ancestrais. A linhagem estava esgotada. Caminhar para onde? "Nesses momentos, é fundamental estar disposta a ser afetada", contou. Começou a estudar Filosofia. Foi apresentada a um escritor grego do século II, Artemidoro de Daldis, que era mestre em interpretar sonhos. Nasceu dessa inspiração o novo romance dela, "As miniaturas" (nesse momento, a plateia fez Andréa também reconhecer que "em botecos, já interpretara sonhos de amigos", com relativo sucesso e acertos...). A obra foi escrita enquanto ela estava grávida ("tinha nove meses, não sabia como ia ser minha vida com o bebê"). Sofreu ainda a pressão do patrocinador. Ela teve financiamento da Petrobras - e havia prazo fechado para a conclusão do livro.

"Se há amadurecimento literário, está justamente em ser mais capaz de perceber os exageros do texto e em jogar coisas secundárias fora. Fiquei satisfeita com o resultado final, mas prometi não ir mais atrás de bolsas. Teria trabalhado com mais tempo e paciência", contou. Talvez nadando contra a corrente, Andréa disse que gosta de ser editada e que jamais finaliza um livro sozinha. Lembrou de uma situação, durante a escrita de "As miniaturas", em que foi convocada pelo editor André Conti para discutir algumas passagens da obra. Sentiu um frio na espinha, imaginou que ouviria "é uma porcaria". Nada disso. Eram anotações e sugestões pontuais. Numa delas, num canto de página, Conti havia indicado: "brega!". Com exclamação mesmo. Era um trecho da trama onde descrevia masturbação masculina. "O garoto jamais diria isso que está escrito, me alertou o André. Tive de concordar com ele. Mudei".

Conti não se lembrava da anotação. Riu, junto com a plateia. Disse que seria interessante resgatar esses originais. Eu, confesso, fiquei curioso para saber como a cena foi resolvida. Vou ter de esperar mais um pouco. O livro de Andréa deve ser lançado na primeira semana de agosto.

domingo, 21 de julho de 2013

O RÁDIO, ESSE MEU INSEPARÁVEL AMIGO FUTEBOLÍSTICO

Foto: Elisa Marconi, os locutores que mais amamos!


Na semana que passou, em mais uma atividade das agitadas férias, Luiza e Daniel participaram de uma oficina de locução para crianças na rádio CBN. Estiveram no estúdio, leram e gravaram os textos, acompanharam um tantinho da rotina de uma emissora. Ao final, empolgadíssimos e realizados, ganharam de presente um CD com gravações, nas vozes de Osmar Santos, de Oscar Ulisses e de Osvaldo Maciel, de 40 gols importantes do Santos, entre 1978 e 2012, de Juary a Neymar, passando por Serginho Chulapa, Giovani e Robinho. Bateu a nostalgia. As narrações me fizeram lembrar que um tanto (e não pouco) dessa paixão que tenho por futebol, em geral, e pelo Santos, em particular, vem das ondas do rádio.

Trancado no escritório, meu avô ouvia os jogos do Peixe num daqueles antigos Motoradios (herança, hoje está comigo) que, ao final das partidas, eram oferecidos ao craque do jogo, em votações animadíssimas feitas pelas equipes esportivas. Ficávamos do lado de fora, à espreita, ouvidos colados na porta, tentando adivinhar pelos gritos dele e pelos tapas na escrivaninha o que estava acontecendo em campo. Depois, humores variados, dependendo do resultado, ele vinha nos dizer "filho, o speaker da Atlântica falou que o Santos jogou bem hoje". Ou "o speaker da Excelsior desceu a lenha no time". Ou ainda "segundo o speaker da Bandeirantes, o técnico do Santos substituiu errado". Ele era do tempo em que se dizia 'offside, corner, back...'. Intrigado e curioso, um dia meu irmão, lá com seus cinco, seis anos, já santista de quatro costados, criou coragem e foi direto ao ponto: "mas, vô, esse seu speaker está em todas as rádios... Afinal de contas, em que rádio ele trabalha?".

Não tinha erro ou furo, era sagrado - todas as manhãs, de segunda a sexta, meu pai sintonizava logo cedinho e assim que pulava da cama no Jornal da Manhã, da Jovem Pan. A gente tinha arrepios, confesso, porque quando tocava o "vambora, vambora, olha a hora, vambora, vambora...", era sinal de que tínhamos de ir para a escola. Ao mesmo tempo, adorávamos quando os repórteres esportivos da rádio entravam no ar para fazer o giro dos clubes. Eram os tempos do Jornal de Esportes, da mesma Pan, e do Globo Esportivo, quando ficávamos sabendo as escalações, as contratações, ouvíamos as entrevistas.

Na época das vacas magras do Santos, quantos não foram os aparelhos de rádio que meu irmão estourou na parede, a cada gol que tomávamos, a cada derrota que colecionávamos. Teve um, me lembro bem, coitado, rolou a escada do sobrado onde morávamos. Parrudo e teimoso, continuou funcionando. Ainda em São Bernardo, final dos 70, numa noite de quarta-feira, meu outro irmão, mais novo, prendeu o dedo numa dobradiça de carrinho de bebê. Esguichava sangue, a ponta do dedo ficou pendurada. Não tinha jeito. Correram para o pronto-socorro. Assustado, com muito medo, corri para o quarto do meu pai, torcendo para ficar tudo bem com meu irmão. Por instinto, liguei o rádio-relógio e fiquei ouvindo, mais chiado que narração, um Santos e Velo Clube de Rio Claro, campeonato Paulista. Meu irmão voltou bem, tomou alguns pontos, mas ficou tudo certo. O Santos? Ganhou de 3 x 2.

Quando as partidas acabavam, era hora de sintonizar no "Show de Rádio", com o Zé das Docas e o humor inteligente da turma do Estevam Bourroul Sangirardi - no meio da semana, eram eles ("show de rádio, o bom humor, do futebol, salve o torcedor brasileiro") que embalavam meu sono, radinho ligado bem baixo, até Morfeu se fazer presente. Não tínhamos TV a cabo, 488 canais a escolher, campeonatos europeus com quem competir, ainda não havia canal campeão nem informação é nosso esporte. O Paulista e o Brasileiro radiofônicos nos embalavam, narrados por Fiori Gigliotti - 'abrem-se as cortinas, começa o espetáculo' -, Osmar Santos - 'ripa na chulipa, pimba na gorduchinha' - e José Silvério - 'ela pediu me chuta, ele encheu o pé'.

Em 2002, na reta final do Brasileiro, quando a fila ficava cada vez mais para trás, participei, na noite da segunda semi-final contra o Grêmio, de uma banca de Trabalho de Conclusão de Curso, em companhia de outro professor e amigo também santista - e o projeto era justamente uma reportagem sobre o técnico Lula, do esquadrão de Coutinho, Pelé e Pepe. Nos intervalos da apresentação, dividíamos afobados um fone de ouvido e tentávamos decifrar o que acontecia no Olímpico, em Porto Alegre. Quando a banca acabou, voei para pegar um táxi. O motorista estava ouvindo a rádio Cultura FM. Não me aguentei: "meu senhor, também gosto de música clássica, mas hoje é dia de jogo decisivo do Santos. O senhor pode por favor mudar de estação?". Ele se recusou. Não tive dúvida: mandei parar, paguei a breve corrida, desci e procurei outro táxi - antes de dizer o destino, impus minha condição: vamos ouvir o jogo do Santos. Deu certo. Passamos para a final.

Sem jamais ter perdido o adorável vício, boa parte da campanha do terceiro título da Libertadores eu acompanhei pelo rádio. Por conta das aulas noturnas, não raro foi preciso pedir ajuda ao amigo falante. Os tempos eram outros e, dos três narradores que marcaram minha infância e juventude, só o Silvério continuava firme e forte, embora a voz já estivesse prejudicada. Mas a emoção era a mesma. Imaginem o que foi acompanhar no carro, na volta para casa, as defesas milagrosas do Rafael no jogo contra o América do México, tentando imaginar como seriam aquelas pontes e espalmadas, e com taquicardia por saber que a partida era duríssima...

No embate derradeiro com o Cerro, no Paraguai, ainda na fase de grupos, quando era ganhar ou adeus, Libertadores, ouvi o primeiro tempo no estacionamento da universidade. Quem passava não entendia coisa alguma - eu falava sozinho, fazia caretas, dava murros no volante. A manobra para ouvir a primeira final contra o Peñarol foi coisa de outro planeta. Já estávamos quase em férias, semana de provas substitutivas, classe vazia, sem atividades acadêmicas. Colocaram uma televisão na sala dos professores. Mas tinha muito corinthiano, são-paulino e palmeirense secando. Não vai dar certo, pensei. Fui me esconder num enorme terraço no sexto andar da universidade, agachadinho num canto, rádio do celular ligado. Era junho, a noite estava gelada, um vento cortante, de rachar os ossos. Eu tremia, mas suava de nervoso. Terminei andando de um lado para outro, sem parar. Empatamos. Grande resultado!

A finalíssima eu vi no Pacaembu, ao vivo, claro. No dia seguinte, ouvi todos os programas esportivos de rádio. Perdi as contas de quantas vezes coloquei para rodar as narrações dos gols, os gritos da torcida, o hino cantado a plenos pulmões no Paulo Machado. Até hoje tenho guardadas as narrações dos gols do Silvério e do Deva Pascovicci. No CD que Luiza e Daniel ganharam, posso agora ouvir os gols do Neymar e do Danilo na voz do Oscar Ulisses ("a torcida está vibrando e a rádio Globo traz a emoção").

Acho que não foi por coincidência que casei com uma companheira que talvez seja ainda mais apaixonada por rádio que eu, dentre tantas outras infinitas afinidades que temos. É uma delícia ouvir hoje os meninos andando pela casa e cantando "Osmar Santos vem aí. Garoto bom de bola!". Despeço-me pedindo licença, pois neste domingão tem jogo do Peixe contra o Coritiba. Ainda é cedo, mas já vou lá garantir a diversão e ligar o rádio. Antes, só para esquentar, acho que vou ouvir só mais uma vezinha o gol do Neymar na final da Liberta. É de arrepiar o grito que explode nas arquibancadas, a quase encobrir o narrador. E o Oscar Ulisses: "sabe quem fez? Sabe quem fez? Sabe quem entrou pela esquerda e bateu firme com a perna direita na bola, lá no cantinho? Neymar, o craque. Neymar, o que faz a diferença. Neymar, o dono da quarta-feira".

sexta-feira, 19 de julho de 2013

MINHA AGENDA PARA 2014

Nas eleições do ano que vem, poderão conquistar meu coração, minha militância e meu voto as forças políticas que estiverem verdadeiramente dispostas a abraçar a seguinte agenda:

- Democratização das comunicações, com fim da propriedade cruzada, direito de resposta, redistribuição das verbas publicitárias e fim das concessões públicas para políticos e religiões;

- Financiamento público de campanhas;

- Reforma tributária progressiva, com ricos pagando mais impostos, taxação sobre heranças e grandes fortunas, sistema de fiscalização inteligente e eficaz e punições severas para sonegadores, sem privilégios, incluindo empresários, banqueiros e empreiteiros;

- Reforma agrária para fazer valer o uso social da terra estabelecido pela Constituição e enterrar os latifúndios improdutivos e a especulação fundiária, com apoio e crédito para a agricultura familiar;

- Investimentos maciços em energia limpa e sustentável;

- Destinação de 10% do PIB para a Educação, a fazer da área verdadeira prioridade nacional, e com ênfase absoluta no sistema público, em todas as esferas, e na valorização e qualificação dos professores (o que inclui salários dignos) e na construção/modernização de bibliotecas, para formar leitores;

- Direito ao aborto;

- Criminalização da homofobia;

- Combate irrestrito ao racismo e ao extermínio da população negra, principalmente jovens de periferias;

- Proteção total aos direitos indígenas;


- Olhar específico e também cuidadoso para os direitos das mulheres, sem concessões;

- Reconhecimento e valorização e fomento à produção cultural que nasce nas periferias das grandes cidades e também nas regiões Norte e Nordeste do país, com a garantia de diversidade de manifestações (música, literatura, cinema, artes visuais...) e de vozes e sotaques;

- Fim da reeleição e limite para mandatos parlamentares;

- Voto aberto em todas as votações no Congresso, sem exceção;

- Desmilitarização das polícias;

- Prioridade total também para ciência e tecnologia, a ser colocada no topo de nossas necessidades estratégicas de desenvolvimento, com investimento anual de pelo menos 2% do PIB na área e definição de áreas de investimento, aumento das bolsas para mestrado e doutorado e diálogo efetivo com instituições de excelência do exterior, sem deixar de lado as Humanidades;

- Política externa altiva, soberana e independente, sem negar relações com o Norte, mas valorizando laços de proximidade (comércio, acordos, intercâmbio, tecnologias...) com o Mercosul, o Brics, o Oriente Médio e os países africanos. Não aceitação de ingerência estadunidense na vida e nos negócios do Brasil e dos brasileiros;

- Defesa ampla, geral e irrestrita da soberania dos povos, em geral, e do Estado Palestino, especificamente;

- Políticas urbanas que recuperem e revitalizem as regiões centrais das grandes cidades, entendam a moradia como um direito inalienável, combatam os grandes cartéis e a especulação imobiliária e façam das cidades saudáveis e abertos espaços públicos de conivência democrática;

- Sistema de transporte público inteligente, integrado (metrô-ônibus-trens) e de boa qualidade, para todos, centro e periferia, e com tarifa zero;

- Sistema de saúde que faça do SUS sua verdadeira razão de ser, escanteando grupos privados apenas interessados em lucros, humanizando o atendimento, equipando ambulatórios e hospitais e fazendo dos médicos (que devem obrigatoriamente chegar também aos grotões e áreas carentes do país) os protagonistas do processo, com salários dignos, condições adequadas de trabalho e plano de carreira;

- Política de esportes diretamente ligada à saúde e à cidadania, como exercício de qualidade de vida e de inclusão social, desde a primeira infância, e não apenas como instrumento de competição e formação de restrito número de "atletas de ponta";


Salário mínimo do DIEESE e efetivação de aposentadorias suficientes para garantir terceira idade digna;

-  Reinterpretação da Lei da Anistia, com a imediata abertura de todos os documentos oficiais disponíveis sobre a ditadura civil-militar brasileira, para fazer valer o direito à memória e à justiça.


São princípios gerais, claro. Para marcar posição, estabelecer lado. E começar a conversar. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

FERNANDO MORAIS E LIRA NETO CONVERSAM SOBRE BIOGRAFIAS



Foi da revista Carta Capital, em seus "Diálogos Capitais", a preciosa ideia de reunir, na noite da segunda-feira, 15 de julho, na livraria FNAC de Pinheiros, em São Paulo, os escritores Fernando Morais e Lira Neto, para um papo sobre o universo das biografias. E quando o biógrafo de Olga, Assis Chateaubriand, Paulo Coelho e do ex-presidente Lula encontra-se com o biógrafo do marechal Castelo Branco, da Maysa, do padre Cícero e de Getúlio Vargas, o resultado só pode ser uma conversa danada de boa, com a contação de muitos causos e a certeza que poderíamos tranquilamente ouvi-los durante outras tantas horas, a invadir a madrugada (com o perdão do clichê).

Em pouco mais de noventa minutos, tempo de uma partida de futebol, em tabelinhas clássicas e harmônicas, como se fossem Pelé e Coutinho, e afinados como Tom Jobim e Vinicius de Moraes, os escritores revelaram os encantos e os riscos de escrever sobre a vida dos outros. Fizeram questão de ressaltar que biografias são oxigênio que procura renovar a viciada produção jornalística tradicional contemporânea, a perseguir a excelência da grande reportagem, um caminho para escapar da camisa-de-força das pautas burocráticas e dos textos curtos videoclipados. "Acho um contra-senso quando ouço donos de jornais dizendo que os leitores não têm tempo para ler. É como se eu decidisse abrir um restaurante já tendo constatado que os brasileiros não gostam de comer", comparou Lira.

Num percurso rigoroso de compreensão, o mergulho que o biógrafo faz na vida de seu personagem é tão intenso que não raro as relações entre escritor e personagem se confundem, e a vida real é invadida por arroubos de imaginação, quase delírio. Ruy Castro, outro dos principais biógrafos brasileiros, já disse em mais de uma oportunidade que acordou, cantou, dormiu, viajou e teve ciúmes de Carmem Miranda, durante os cinco anos em que escreveu a história da Pequena Notável. Quando estava debruçado sobre "O rei do Brasil", e a previsão era entregar o livro em três anos, mas acabou demorando sete para concluí-lo, Fernando teve não um, mas alguns pesadelos com seu biografado. Era o próprio Chatô, e não o editor da Companhia das Letras, quem cobrava o atraso na produção. O magnata das comunicações sempre aparecia impecavelmente bem vestido, com a cartola na cabeça, num elevador com porta sanfonada. No melhor estilo Chateaubriand, educação mandada às favas, era cortante e bem objetivo: "seu filho da puta, quando é que você vai entregar essa merda?".

Lira também sonhou com a cantora Maysa - que inclusive lhe mandava recados, enquanto ele dormia. "O biógrafo é um cara obsessivo,chato, monotemático. A relação que a gente estabelece com o personagem atrapalha até o casamento. Há um trabalho de possessão, sem ser sobrenatural, mas sem o qual é impossível escrever com fidelidade", revelou. Alertou, no entanto, que é obrigatório, mesmo apaixonado, manter em funcionamento permanente o senso crítico, para não transformar a narrativa apenas num meloso (e não jornalístico) desfile de elogios e exaltação de virtudes. O segredo está na transparência, no equilíbrio e no rigor de pesquisa, a confrontar falas e buscar a melhor versão possível da realidade. "Foi assim que pude perceber que a Maysa mentia nos diários que ela mesma escrevia", completou.

Esse fio da navalha foi enfrentado por Lira também na escrita da biografia de Getúlio Vargas, alguém ainda hoje, mesmo depois de quase 60 anos de sua morte, capaz de mobilizar sentimentos de ódio e de paixão. O biógrafo não queria consagrar nas páginas de seu livro um santo - mas também não desejava demonizar o ex-presidente. Superou a armadilha, conseguiu o que queria? Ele diz que sim - e ampara sua avaliação no fato de a contracapa do segundo volume, que está no forno e deve chegar às livrarias em agosto, trazer textos de recomendação produzidos por duas lideranças nacionais, colocadas em espectros políticos distintos, quando olham para Getúlio: Fernando Henrique Cardoso (que em várias oportunidades de seu mandato afirmou que era hora de afastar o país da herança varguista) e Lula (que fez movimento contrário e procurou não raro associar sua imagem à do carismático líder trabalhista).

Há ocasiões em que o insólito parece ser a confirmação mais efetiva de acerto do biógrafo. Algumas semanas após ter publicado a biografia de Castelo Branco, Lira tomou um susto ao receber uma ligação de um general, uma voz gutural do outro lado da linha. Imaginou que viria encrenca. Mas o interlocutor, todo efusivo, queria parabenizá-lo pelo livro, dizendo que pela primeira vez alguém havia tido a decência de colocar o militar no seu devido lugar de relevância e respeito. "Deu tudo errado", pensou Lira. "Fiquei deprimido". Mais algumas semanas depois, no lançamento da obra em Fortaleza, reencontrou um velho amigo estalinista, dos tempos do movimento estudantil, que fez questão de elogiar Lira publicamente, dizendo ter adorado o livro, que mostrava que Castelo era um grande filho da puta. Bingo! O escritor finalmente aquietou-se - se a esquerda e a direita tinham apreciado a narrativa, era sinal de que o tão desejado equilíbrio havia sido alcançado. "Você faz bom jornalismo exatamente quando busca pluralidade. Esses personagens polêmicos nos dão espaço para explorar contradições que não são apenas deles, mas nossas também".

Fernando não escapou dessas provações - aliás, está justamente vivendo tarefa tão instigante quanto delicada, daqueles riscos que todo biógrafo adoraria correr, já que está escrevendo um pedaço da trajetória política recente do ex-presidente Lula (o período que vai da prisão do sindicalista, em abril de 1980, até o final do segundo mandato, em 2010). "Quem poderia imaginar que aquele pernambucano analfabeto e sem dedo poderia virar presidente da República?", provocou. "Estou me deliciando, embriagado pelo novo projeto", confessou. A encrenca está justamente nas relações muito próximas que o escritor e jornalista sempre manteve com o ex-presidente, amplificadas pelo fato de Fernando ser confesso admirador de Lula. Polêmica à vista.

Equilíbrio sufocado, impossível? Receberemos um livro chapa-branca? A tensão existe, é inerente, mas quem conhece o trabalho idôneo e competente de Fernando sabe que pode ficar sossegado. Ele próprio garante ter duas vantagens em relação a qualquer outro autor que se aventurasse a tocar a proposta: conheceu Lula ainda em São Bernardo do Campo e acompanhou muito de perto boa parte das histórias que serão narradas. "Eu vi, testemunhei. Ninguém vai precisar me contar". Além disso, vangloria-se de não ter qualquer vínculo funcional ou partidário com o ex-presidente. "Quem paga meu livro? Não é o PT, não é o governo, não é uma fundação. É meu editor. Será um trabalho jornalístico", definiu.  

Conseguir o aval não foi fácil. Fernando precisou ser paciente e teve de gastar muita saliva. Quando Lula foi eleito, em 2002, fez a primeira investida. A intenção era passar quatro anos acompanhando todos os passos do presidente, anotando cada movimento dele, nos bastidores do governo, para contar a história ao final do mandato. Proposta negada. Com a reeleição, a ideia renasceu. "Nem pensar", devolveu novamente Lula. Em 2010, Fernando arriscou o que imaginou ser cartada de mestre: acessou o jornalista e amigo de longa data Ricardo Kotscho, que havia trabalhado no Planalto e era uma das pessoas mais próximas de Lula, para que o ajudasse e fizesse a ponte. Kotscho rebateu com uma gargalhada: "Fernando, você e mais 400 jornalistas querem essa história. Inclusive eu".

O desejo adormeceu. Surpreso e já sem muitas expectativas, Fernando voltaria a ser procurado por emissários do ex-presidente em julho de 2011, quando o escritor passava férias na França. O celular tocou. "O Lula quer almoçar com você", foi convidado. "Pode ser na minha volta ao Brasil?", sugeriu. Concordaram. Quando estiveram frente a frente, Lula foi objetivo: "não quero uma biografia, prefiro um ângulo específico". Depois de muita conversa, definiram o recorte: do sindicalista ao presidente, período que costura justamente a formação política mais explícita do líder popular. O jornalista conta que já deve ter gravado entrevistas com quase 50 pessoas. Tem viajado com Lula pelos mais diferentes cantos do mundo - apenas numa delas, para a Índia, foram mais de 23 horas de conversa. O editor da obra, no entanto, deve ter saído da Fnac com a pulga atrás da orelha. "Olha, devo confessar que estou meio preocupado. Há uns dez dias, Frei Betto me procurou e me entregou um saco plástico com trinta fitas cassete. São 50 horas de gravações que o Betto e o Chico Buarque fizeram com o Lula, entre 1978 e 80. Estou ouvindo as fitas. São informações absolutamente virgens. É ouro puro. Acho que meu editor vai ter de esperar mais um pouquinho para eu terminar o livro".

Com o ex-presidente, Fernando revive o trauma que já o havia atormentando com Paulo Coelho - biografar personagem vivo. O autor de "Diário de um mago" e "Brida" passou meses sem falar com o próprio biógrafo, depois do lançamento do livro. "Não me atendia", lembrou. Na volta de uma viagem para a Líbia, Fernando passou por Paris. Sem avisar, bateu na porta da casa de Paulo Coelho, que tomou um susto. Refeito, admitiu que não havia erro algum na biografia, mas confessou que tinha ficado chocado ao ler sobre a própria vida. Reclamou apenas que o jornalista não conseguira enxergar o lado espiritual do mago - mas reconheceu ainda que já esperava esse comportamento de um marxista, de um comuna. Fernando disse que bem que tentou, mas notou que seria bem mais complicado quando, certa vez, Paulo Coelho disse ter sido visitado por um anjo. "Você estava na França... o anjo falava francês ou português?", cutucou e questionou o jornalista, com certo sarcasmo apropriado. Ouviu como resposta alguns impropérios. "Mas respeitei profundamente a espiritualidade dele. No livro, não assumo, mas digo que ele me narrou todas as experiências extra-sensoriais, sem deboches ou julgamentos". O estranhamento passou. Os dois voltaram a se falar. Mais leve, Fernando prometeu que nunca mais biografaria gente viva. "Mas, sabem como é, a tentação é grande, a gente acaba tendo recaída". E, afinal, o novo desafio não era de pequena monta. Nunca antes na história desse país.

Nas idas e vindas das estradas das biografias, as penas (ou os arquivos, os computadores) de Fernando e Lira já se cruzaram algumas vezes. O autor de "Getúlio" recordou que foi justamente o escritor de "Chatô" o responsável por despertar nele a paixão pelas histórias dos outros. No início da carreira, quando morava em Fortaleza e já tinha narrado a trajetória do sanitarista Rodolfo Teófilo, Lira foi chamado por Fernando, que pensava num livro sobre a história "B" do Brasil (anônimos e pouco conhecidos), e convidado a atuar na pesquisa sobre Floro Bartolomeu, médico e político que atuou no Nordeste no início do século XX e acabou por tornar-se espécie de alter ego de padre Cícero. A obra acabou não saindo - mas fez despertar em Lira o desejo de biografar o Romão Batista. Com aval de Fernando, pôde publicizar uma história real tão fascinante e desconcertante que, segundo o escritor cearense, talvez nem Gabriel García Márquez, em seus melhores momentos e mesmo sob efeito de alucinógenos, seria capaz de inventar. Com Maysa, viveu o receio de biografar uma mulher, por quem acabou mesmo se apaixonando, literariamente falando. Reportar a história de Getúlio significou a disposição para encarar o mais amado e odiado personagem da história republicana brasileira. "Assim é que vale a pena. Deve ser tedioso biografar personagens que caminham em linha reta, sem conflitos. Com todo o respeito, mas eu não gostaria de escrever sobre Madre Teresa de Calcutá".

Fernando, que já concluiu a apuração para um livro sobre Antônio Carlos Magalhães e não descarta trazer à tona a história de José Dirceu, concordou com a tese da não linearidade e do gosto por personagens contraditórios. Reconheceu que essas opções são sempre marcadas por singularidades, empatias, e citou Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek como personalidades que não o encantam, quando pensa em possíveis biografados. "O personagem precisa me tirar o fôlego". Ao final do papo, depois de criticar o culto às celebridades, efêmeras e vazias de conteúdo, e de condenar duramente as restrições legais ao trabalho dos biógrafos, que estão alçando os departamentos jurídicos das editoras a papeis que não deveriam ter, Fernando retomou uma fala do antropólogo Darcy Ribeiro, para quem "o Brasil tem muitas histórias para contar. Falta quem queira contá-las".

"HANNAH ARENDT" FAZ PENSAR SOBRE O MAL QUE NÃO TEM ROSTO


O filme "Hannah Arendt" é mais uma daquelas narrativas essenciais para ajudar a compreender as origens e as entranhas do nazismo. Conta como a filósofa, em sua trajetória intelectual, e após acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, passou a debruçar-se com a alma e a razão a pensar sobre a questão do mal, retirando esse sentimento/prática do campo do (não) sagrado, do demoníaco, para associá-lo intrinsecamente à natureza humana, ao bicho homem. O mal está ali, aqui, acolá, sempre à nossa espreita. O ovo da serpente. Ao mesmo tempo, a partir da experiência nazista, ela fala da despersonalização do mal, que não tem rosto, é Ninguém (com maiúscula mesmo), disperso, fluido, distribuído. Por isso mesmo, torna-se ainda mais cruel. Mas sempre humanamente humano. É o que Arendt chama de a banalização do mal. O sistema funciona perversamente porque todos - e ao mesmo tempo ninguém (agora com minúscula) - são responsáveis por ele. "Entender não é perdoar". O filme narra ainda os primeiros movimentos de construção dos fundamentos do também totalitário Estado de Israel. O crítico Luiz Zanin escreveu no jornal "O Estado de São Paulo" que "no fundo, a Hannah Arendt, de Margareth Von Trotta, é uma celebração da coragem intelectual. Da liberdade do pensamento que, como se sabe, quando começa a ser praticada nunca se sabe aonde pode levar. Não ocorria aos seus detratores de que a ideia de que o mal seria privativo dos monstros era nada mais do que apaziguante. Inquietante é pensar o mal como uma possibilidade humana". Deveria ser exibido em escolas de segundo grau, universidades, centros culturais, espaços nas periferias, museus, praças públicas, sendo seguido de debates, reflexões, interlocuções, divergências. Está passando, no entanto, em apenas duas pequenas salas da cidade de São Paulo. Se bobear, não estará mais em cartaz já no final de semana.

domingo, 14 de julho de 2013

E ELES SÓ QUERIAM DORMIR...

Crônicas da classe média paulistana


Apagou a luz perto de uma e meia da madrugada, quando o livro já estava chegando ao fim, mas os olhos não conseguiam mais ficar abertos e as letrinhas se transformavam em manchas embaralhadas e incompreensíveis. Dormiu rápido, profundamente. Estava precisando descansar. Acordou num sobressalto, assustado, uma hora depois, com uma música que vinha de algum lugar muito próximo, mas muito perto mesmo, numa altura inimaginável para o horário. Era como se uma banda completinha, guitarras e baterias, estivesse tocando no quarto dele, bem em cima da cama. Espectador privilegiado do show. Só que não. O setlist começou com rock, passou rapidamente para um bate-estaca insuportável. Não aguentou. Levantou, ainda sonado, atordoado. Cambaleando, abriu a janela. Confirmou o que temia - era uma festa bem no prédio vizinho, muro com muro, na rua de trás. Luzes coloridas pulavam pela janela. As músicas eram acompanhadas por sons guturais, meio desconexos, arroubos de quem participava da festança. Num primeiro momento, ingênuo, imaginou que fosse só breve exagero, coisa passageira, um frenesi de felicidade de quem tinha chegado da balada e resolveu continuá-la, versão doméstica. "Vão diminuir, vai ser rápido". Não foi. A essa altura, a esposa já tinha também acordado, enfurecida. Teria de pular da cama às seis. Do outro quarto, a filha chamou: "pai, que barulho é esse? Não dá para dormir!". Chegou a pensar em bater no vizinho e dizer "meu querido, por gentileza, a diversão pode continuar, sem problemas. É só abaixar o som e todos ficamos felizes". Desistiu. Os donos da festa pareciam bastante alterados, em estado de transe, provavelmente o diálogo racional não seria possível. Lembrou que um número razoável de mortes por armas de fogo acontece por discussões banais entre vizinhos. Achou por bem recorrer à polícia (não à truculência estúpida da Tropa de Choque, obviamente, mas ao espírito comunitário da corporação, se é que existe), para garantir a lei do silêncio. Tentaram uma, duas, três vezes. Quem disse que eram atendidos? Só conseguiam 'falar' com aquelas malditas gravações de "aguarde na linha, etc, etc, etc...". Insistiram. Até que uma moça do 190, de carne e osso, respondeu. Alívio. Viva! Explicou a situação educadamente, pediu urgência, disse que tinha crianças em casa. "Não me importa que façam festa, é direito deles. Concordo. Só peço que mantenham o som num volume civilizado para todos. Não dá para o individual se impor ao coletivo", argumentou, num instante de iluminismo. A atendente avisou: 'vou transferir sua ligação para o setor de distúrbios'. Telefone mudo. Nada de resposta. Até que a ligação caiu. Assim aconteceu mais duas vezes. Na terceira, implorou: "não adianta transferir, a ligação vai cair. Não tem outro jeito, por favor?". A voz do outro lado da linha disse que o setor de barulhos estava sobrecarregado mesmo e sugeriu fazer a reclamação pela internet, num campo específico. Animou-se. Eram quatro da manhã. Correu e ligou o computador. Começou a preencher o formulário. Quase ao final, um aviso pulou na tela: a opção não estava disponível para ocorrências na capital, apenas para cidades do interior. Parecia de propósito - a música rolava cada vez mais alto. E, àquela altura, os festeiros se arriscavam a cantar ainda mais alto do que o som original. Zorra total. Desesperado, foi para a janela do quarto e berrou o mais alto que pôde: "Calem a boca!". Esperou reações solidárias de outros apartamentos - em tempos de movimentos e protestos, tentou dar a deixa para criar a resistência. Nada. Luzes apagadas nas outras janelas. Ninguém mais se movimentando. Dormiam o sono dos justos. Ou fingiam dormir. Ou tinham tampões poderosos nos ouvidos, todos. Talvez janelas anti-ruídos. Ou, finalmente, engoliam o sapo finamente, elegantemente, soberbamente, pois gente de bairro nobre não briga, não reclama, faz que está tudo bem, não arma barraco. São diferenciados. Renderam-se. O gigante dormia. Ficou puto, não havia mais o que fazer. O jeito foi armar acampamento e camas improvisadas na sala, onde, com todas as portas fechadas, a zoeira chegava de forma menos intensa. Lá colocaram os filhos para dormir. Ele deitou na cama dele mesmo, no quarto onde o show continuava quase ao vivo, a todo vapor. Em decibéis crescentes, o que entrava agora pela janela eram urros histéricos, palmas, gritos, comemorações, mais rap, pop, samba, MPB... Seleção eclética. Com a cabeça enterrada no travesseiro, começou a pensar no que tinha para fazer durante a semana, as contas a pagar, os filmes que desejava ver, os compromissos. Só conseguiu dormir mesmo quando os vizinhos, senhores absolutos da situação e do quarteirão, solidários e altruístas, provavelmente exauridos, decidiram que era hora de encerrar a diversão. Desligaram o som. O relógio do celular marcava cinco e meia da matina.    

sexta-feira, 12 de julho de 2013

FLIP 2013, EM OITO TEXTOS

Foto - vivoporaqui.wordpress.com





1. GRACILIANO RAMOS, UM ESCRITOR EDUCADOR

A decisão de fazer do alagoano Graciliano Ramos o homenageado da décima primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty aconteceu ainda no ano passado e levou em consideração as inquestionáveis qualidades e contribuições narrativas do escritor, mas acabou casualmente, e por conta do momento político vivido pelo Brasil, assumindo ares de decisão ainda mais acertada e pertinente. Afinal, se Graciliano fosse vivo, estaria certamente e de alguma maneira, talvez usando a própria escrita, colocando-se ao lado dos indignados que tomam as ruas do país para exigir mais democracia e serviços públicos com qualidade e para todos. "Ele fazia uso de uma linguagem concisa e clara, nada pomposa, para refletir em sua obra a respeito de duas vertentes de crueldade: a opressão do meio físico, a exploração estabelecida pelo mais forte, como se vê em Vidas Secas, e um outro tipo de maldade, mais difícil de explicar, de uma violência gratuita, marcada por vingança e ressentimento, como aparece em Infância. Tinha uma postura ética que recusava o cinismo e a indiferença diante das chagas sociais", destacou o escritor Milton Hatoum, na Conferência de Abertura da FLIP, realizada nesta noite de 03 de julho.

Num ensaio instigante e habilmente construído, lido linha por linha e a viajar por diferentes obras e com citações a diversos críticos, Hatoum sugeriu que uma das pistas para compreender Graciliano é a relação que se pode estabelecer entre os personagens por ele criados e a esfera da Educação. Quando prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, entre 1928 e 1930, Graciliano já evidenciara em seus relatórios administrativos essa sensibilidade social, caracterizada pela preocupação com as minorias e por um profundo fervor democrático, que se materializaram no enfrentamento com os coronéis, no eleger a questão fundiária como uma de suas prioridades e no incentivo à construção de escolas e à formação de professores. "São questões que em seguida seriam fortemente exploradas em seus livros", completou Hatoum.

Como se viu na Conferência, Graciliano é um autor que permanentemente pensa sobre o sentido do aprendizado, questionando a pouca disposição das elites em educar os de baixo e denunciando a palavra como instrumento de exploração. Em Angústia, de 1936, Julião Tavares é um filho de negociante que fala sem qualquer sofisticação, recorrendo sempre aos pensamentos que abusam dos adjetivos, mas vazios de conteúdo. Em Caetés, de 1933, Evaristo Barroca é um advogado capaz de improvisar contundentes discursos - e que acaba se dando bem e virando político. A linguagem marca os territórios e espaços sociais por onde os dois transitam.

A mesma provocação pode ser encontrada em São Bernardo, de 1934 - o protagonista Paulo Honório não gosta de mulheres sabidas. Não aceita a insubmissão da esposa Madalena, professora bondosa e altruísta, conhecedora das coisas do mundo, que domina a palavra e exige melhores condições de vida para os trabalhadores rurais. "Sem a presença de Madalena, a história se resumiria a um homem bruto, que enriquece de maneira ilícita", ressaltou Hatoum. Em Vidas Secas, de 1937, a mesma pegada: a palavra falta, e os personagens são vítimas da opressão e da miséria imposta pelo meio e têm profundas dificuldades para pensar e evidentes carências de saber, comunicando-se muitas vezes por gestos, quase grunhidos. No final do livro, a esperança de que o futuro dos filhos, que frequentariam a escola, pudesse ser diferente. "Ainda assim, é um sonho incerto, impreciso, que se coloca no condicional, no futuro do pretérito", destacou o conferencista. 

Para ele, Graciliano sempre procurou escancarar em suas obras as relações desiguais, sem jamais se submeter a propagandas ideológicas, em narrativas marcadas pela brutalidade do Brasil, mas que ao mesmo tempo falam da humanidade que está em todos nós. "Era conhecido por ser áspero e intratável, mas foi sempre profundamente afetuoso com os amigos e muito rigoroso consigo mesmo", afirmou. Miguel Conde, curador da FLIP, completou: "Graciliano foi um sujeito desconfiado da mistificação da figura do escritor, que pensou criticamente o seu lugar na sociedade e que rechaçava a cultura letrada como espaço de demarcação das diferenças sociais". 



2. HISTÓRIAS DE FRACASSOS

"Formas da derrota" foi o tema da conversa que reuniu os romancistas pernambucano José Luiz Passos, autor de "O sonâmbulo amador" (2012), e o gaúcho Paulo Scott, que escreveu "Habitante irreal" (2011) e acaba de lançar "Ithaca road". Como fio condutor do papo, a constatação de que há histórias, antigas e contemporâneas, marcadas por tons pessimistas e que, de antemão, anunciam a impossibilidade de enredos felizes e harmônicos. Os personagens dessas narrativas são sujeitos que buscam permanentemente realizar seus sonhos, sem jamais conseguir concretizá-los. Flertam com o fracasso. Em sua provocação inicial, e como exemplo categórico dessa forma de enredo, o mediador João Gabriel de Lima, da revista Época, citou o romance "Madame Bovary" (1857), de Gustave Flaubert, que, segundo ele, pode ser considerado um dos livros fundadores do romance ocidental - e que compartilha exatamente a história de uma mulher derrotada, que almeja o grande e perfeito amor, mas não é dona de seus próprios desejos. "De certa forma, todos nós que escrevemos a partir de então somos filhos dessa derrota original", completou Lima.  

O mediador lembrou então que Jurandir, o personagem principal da mais recente obra de Passos, é um homem de 60 anos, que contabiliza perdas ao longo da vida - de sua paixão, do filho, do melhor amigo. Narelle, protagonista de "Ithaca road", é uma índia neozelandesa, maori, que vê o irmão desaparecer, herda dívidas e se envolve com criminosos. Lima questionou: "como acontece para vocês essa aventura da criação?". 

Passos contou que, como desdobramento de seu primeiro romance, queria narrar a história de alguém que manifestasse profundo desencanto com a realidade, sem que tivesse essa clareza ou percepção, e sem também precisar explicar objetivamente essa característica para o leitor. Decidiu apostar em alguém que sonha. Mirou-se em Dom Quixote, desenvolvendo a ideia de que as amizades que compartilhamos nos levam muitas vezes a investir em ações que não nos são apenas sugeridas, mas impostas. "O Jurandir é alguém de quem se espera um relatório sobre erros cometidos durante a vida que ele próprio não compreende". O autor levou seis anos para escrever o livro - e inspirou-se ainda em episódios muito, muito próximos. Enquanto escrevia, decidiu visitar uma usina de cana-de-açúcar onde o avô havia trabalhado nos anos 1930. Depois de apresentar-se com evasivas e algumas mentiras, a pessoa que o recebeu lembrou-se do avô. E ainda foi capaz de encontrar na clínica da usina o médico que tinha feito o parto de Passos. "Um clima de profunda nostalgia nos envolveu. Era uma história extraordinária, do ponto de vista afetivo". Segundo o escritor pernambucano, foi a chave para engatar a história de pessoas que ficam imobilizadas pelas lembranças. "Era alguém que ficara, mas que ainda sonhava e tinha esperanças. O Jurandir também nasceu dessa maneira". 

Scott preferiu revelar o nascimento da índia Maína, uma das figuras importantes de "Habitante irreal". Ele lembrou que estava viajando pela BR-116, no trecho que liga Porto Alegre a Pelotas, quando se deparou com um acampamento indígena à beira da estrada. Eram índios que já não conseguiam sequer espaço em aldeias, e lá estavam, abandonados à própria sorte. Àquele cenário, somou informações de altas taxas de suicídio entre adolescentes indígenas, em distintas aldeias e etnias. "Eles não conseguem entrar no nosso mundo. O diálogo com os nativos é sempre muito difícil, em qualquer lugar. E eles continuam sendo exterminados, dizimados. Poucos são os que prestam atenção a essa tragédia. Maína nasceu dessas inquietações". A obra tem ainda como trama de fundo as desilusões políticas, marcadas pela chegada, pela primeira vez, de um partido de esquerda à administração da capital. No entanto, no exato momento em que o governo se constitui, bandeiras de luta são abandonadas e a barganha por cargos se impõe, deixando para trás os sonhos de uma geração. "Foi por isso até chamado de romance profético", lamentou. 

O mediador sugeriu nova provocação: "a crítica diz que trabalham com pequenas realidades e que falta a vocês ambição para escrever o romance de uma geração...".

O autor pernambucano sorriu de leve. Disse que não saberia como escrever algo que representasse a geração dele, até porque a literatura brasileira atual é múltipla, plural, a lidar até mesmo com realidades que não são nacionais. Reforçou que procura desenvolver histórias nas quais há pequenos canais que nos conectam a um passado que irrompe e de onde algumas questões voltam para nos atormentar. O que ele almeja é entender a complexidade dessa relação temporal, que não raro nos cobra preço alto. "É a minha questão. Não sei se é a da minha geração". Scott aproveitou a deixa e, num desabafo, reforçou que o fato de a geração dele ter falhado em suas experiências políticas e de ter prometido uma democracia que jamais foi capaz de colocar em prática é algo que o incomoda profundamente. "Queríamos construir um futuro acima de qualquer suspeita. Mas o sonho foi perdido. De alguma maneira, meus livros promovem esse acerto de contas", reconheceu.

Foi inevitável: "vocês acham que uma geração será sempre responsabilizada pelos erros cometidos pelas anteriores?", Lima insistiu e cutucou. Passos foi mais do que rápido no raciocínio: "Escrevo para contar histórias de pessoas que arcam com consequências de escolhas e decisões que elas não tomaram. Para mim, imaginar essas narrativas significa chamar a atenção para o atual estado das coisas". Scott foi sucinto. E perspicaz: "Acompanho o senhor relator!".    



3. A VOZ DAS RUAS, EM QUATRO VOZES

As vozes das ruas também se fizeram presentes - e foram debatidas - na Festa Literária Internacional de Paraty. Na noite de quinta-feira, na Tenda dos Autores, entre aplausos e gritos de "fora, Cabral!", puderam ser ouvidas quatro narrativas sobre os protestos que tomam conta do país. Em comum, o tom otimista, a percepção de que vivemos momento político privilegiado e a convicção de que o Brasil que sairá das manifestações será bem melhor do que aquele que temos hoje.

Pablo Capilé, coordenador da Rede Fora do Eixo e da Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) - "Hoje, só consegue entender o que está acontecendo nas ruas quem está no mesmo lugar onde as manifestações acontecem, onde estão os desejos dessa geração. Há uma sinergia, é algo orgânico. Se não está dentro, não entende a dimensão dos atos, dos protestos. Há uma evidente crise dos intermediários, o jornalismo feito por empresas como Globo, Folha e Veja caducou. Não estão entendendo nada, estão perdidos. Não é nem mais a tentativa de impor agenda conservadora, mas a reação a um fim que é inevitável. Há quinze anos, algo parecido aconteceu com a música, quando rompeu-se a centralidade da distribuição das gravadoras. Esse dilema agora impacta a imprensa, que estava acostumada a controlar, a ser filtro e é pega de calças curtas. A partir da experiência que tivemos aqui no Brasil, acabamos de mandar um repórter para passar vinte dias no Egito, financiado por colaboradores. É o novo que se impõe. O governo Lula teve a competência para tirar 40 milhões de pessoas da miséria, mas criou novas expectativas e levantou novas perguntas. Há muitas micro indignações nas ruas, que estão se somando. O Brasil pode ser vanguarda nessa crise civilizatória, na crise do capital e vetor de um novo mundo possível. Nessa hora, ficar em cima do muro não é opção. Não dá para ter medo". 

Marcus Vinicius Faustini, escritor, diretor teatral e criador da Agência Redes para a Juventude - "Estamos filmando uma história de amor que nasce nas passeatas. É ficção, usamos atores que encenam pessoas que não são militantes e que se conhecem nas ruas. Queremos discutir como se constrói essa imagem das manifestações, quem narra, como narra, retratando ainda as agressões que o capital impõe ao território do Rio de Janeiro. O gigante não acordou agora. Os movimentos sociais estavam agindo, vivos, discutindo, cobrando. O que aconteceu foi uma reordenação dessa expressão, quando todo mundo se encontrou nas ruas. É algo expressivo, vem dos coletivos, das plenárias, das assembleias, das periferias. Nesse momento de disputa do país, vários setores passaram a constituir suas dicções. Por medo, todos querem controlar a multidão, categorizar, hierarquizar. Estamos atrás da nossa versão. É uma disputa interessante. A pauta é clara: queremos espaços de participação. Também não tenho medo. E é preciso dizer bem alto que a Polícia Militar não está preparada para lidar com essas demandas populares e democráticas. É fundamental acabar com essas polícias".

Fabiano Calixto, poeta e organizador do e-book 'Vinagre: Uma antologia de poetas neobarracos' - "A manifestação do dia 13 de junho em São Paulo, duramente reprimida pela PM, gerou uma mistura de preocupação e de solidariedade. Pensei na força que teria um grito. Não importava o poético. Conversando com amigos que estavam produzindo textos para distribuir na manifestação do dia 17, decidi viabilizar um material on-line. A iniciativa repercutiu no face, ferramenta fantástica para esse tipo de demanda, e conseguimos reunir, no final, 170 poetas. O livro foi resultado desse trabalho coletivo. É a linguagem como ferramenta política. Disputamos narrativas e ressignificamos o 'vândalo' midiático, que ganhou sentido de alguém que se insurge contra as coisas que incomodam. Fazer poesia já é uma forma de resistência, é algo anárquico em um país que não lê poesias. Juntamos poemas visuais, alguns que implodiam a linguagem, outros mais formais, outros bem humorados. A antologia foi esse gesto de solidariedade". 

Juan Arias, correspondente no Brasil do jornal espanhol El Pais - "Estou muito orgulhoso. O Brasil é um adolescente rebelde agora. Nos últimos dez anos, eu viajava pela Europa e por outros lugares do mundo e ouvia sempre maravilhas sobre o Brasil. Era um país tido como rico, invejado, cheio de conquistas, que não tinha mais pobres, onde hospitais e escolas funcionavam perfeitamente. Pensava comigo mesmo: é verdade, o país cresceu, está melhor. Mas faltava muita coisa. E a sociedade estava morta. Em 2011, escrevi um artigo que questionava quando esse Brasil que juntava milhões em passeatas do orgulho gay e das marchas de Jesus iria também protestar contra tantas coisas que estavam ausentes. E aconteceu. Na Espanha, os protestos são contra direitos que eles estão perdendo. No Brasil, as pessoas se manifestam e tomam as ruas por coisas que ainda não têm. É diferente. A sociedade resgatou sua voz e está fazendo perguntas aos poderes. E a História se faz perguntando, não obedecendo. O Brasil já perguntou. A responsabilidade agora é dos que estão no poder. E não vai adiantar tentar enganar e criar respostas para questões que não nasceram nas ruas". 



4. POR QUE GOSTAMOS DE LER?

O escritor e ensaísta Francisco Bosco pediu que desenhássemos no ar um diagrama, com uma reta dividindo o plano imaginário em duas metades. Na porção direita (aqui, sem qualquer conotação ideológica) encontraríamos o lugar da cultura - os hábitos, tradições e representações que vivemos, a partir dos quais nos reconhecemos e que nos ajudam a reforçar identidades. À esquerda, a oposição, o campo que ele chamou de destruição absoluta, uma espécie de contra-cultura, aquilo que se choca diametralmente com todos os nossos valores e convicções e que de alguma maneira duvida daquilo que somos. 

Para o autor, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a sensação de prazer  que a leitura nos proporciona pode ser explicada pelo lado direito do desenho, pois é uma percepção que mantém relações de proximidade com a cultura. Já o gozo que sentimos pelos textos explode por conta da outra metade - nasce dos ruídos, estranhamentos e confrontos estabelecidos com a cultura. "Os livros de (Honoré de) Balzac, por exemplo, nos dão prazer, porque reafirmam a nossa identidade e nos confortam. Revelam o mundo tal qual o conhecemos. Já 'Ulisses', de James Joyce, é claramente uma obra que nos faz transbordar de gozo, porque nos tira da zona de conforto, em função da desconstrução de linguagens, do tempo, das estratégias narrativas distantes dos modos tradicionais de contar histórias", ilustrou. 

Foram esses dois conceitos originalmente desenvolvidos pelo escritor e crítico literário francês Roland Barthes (1915-1980) que inspiraram e ditaram o norte do debate travado na mesa "O prazer do texto", que aconteceu no início desta tarde ensolarada de sexta-feira na FLIP.

Ao olhar para o próprio ofício e abordar a outra face do mesmo processo - o prazer de escrever -, Bosco afirmou que essa sensação é resultado do potencial que o escritor manifesta de conseguir passar para os seus leitores aquilo que ele (autor) não é. "A literatura faz com que a gente saia do campo do 'eu', implodindo a relação de impessoalidade que carregamos. Escrevemos para acionar esse transporte para a impessoalidade", insistiu. 

Candidatíssima a conquistar o posto de xodó da FLIP 2013, esbanjando didatismo e simpatia, falando em Português quase perfeito (com o charme do sotaque francês) e até arriscando cantar alguns versos de 'Trem das Onze', a escritora Lila Azam Zanganeh (francesa, filha de iranianos) embarcou na exposição inicial de Bosco e lembrou que Vladimir Nabokov (1889-1977) costumava dizer que lemos para nos encantar com o mundo. 

Autora de "O encantador - Nabokov e a felicidade", lançado recentemente no Brasil e onde desenvolve ensaio de fôlego sobre a obra do clássico russo, Lila revelou que decidiu escrever o livro justamente porque sentia falta de transgressão na Literatura contemporânea. "Há muitos autores atualmente nos Estados Unidos e na Europa que falam de origens, de identidades. Respeito, mas não são assuntos que me interessam. Pode parecer estranho, mas 'Lolita'  (1955) é o mais importante romance de amor do século XX, exatamente porque lida com os dois grandes tabus do nosso tempo, a pedofilia e o incesto. É dessa forma que promove o jogo do êxtase, que é algo bem próximo daquilo que o Bosco chama de gozo", analisou. Ela lembrou ainda que Nabokov admirava sobremaneira os contos de fadas, que considerava a literatura verdadeira, pontes mágicas para a criação de universos originais. "Ler nos faz imaginar o mundo", completou.

Ela admitiu que "O encantador" sistematiza algumas verdades - mas é ao mesmo tempo permeado por muitas invenções e mentiras, desafiando o leitor a todo instante a exercitar esse território da imaginação. O ponto alto da narrativa é o capítulo em que Lila "entrevista" Nabokov (detalhe: ela tinha apenas dez meses quando o escritor russo morreu, muito embora alguns jornalistas já tenham perguntado para ela, em tom sério, como teria sido a experiência...). "Sonhei várias vezes com Nabokov, era uma obsessão literária. Nos sonhos, ele nunca era perfeito, tinha várias ideias atrasadas e erradas, não gostava de escritoras mulheres. Chegou uma hora em que não queria mais apenas sonhar, mas falar com ele". 

Materializou-se assim a suposta e idealizada conversa, de forma crítica e irreverente. "Construir aquele diálogo me fez sentir imenso prazer. Era a voz dele na minha voz, ele, eu, ele novamente, alternando falas, num jogo de espelhos infinito", contou. A tensão veio à tona quando ela teve de ler o trecho, em voz alta, para o filho adoentado de Nabokov. Ele não gostou. Ficou bravo. Questionou cada resposta, afirmando que muitas não representavam o que o pai pensava. "Mas ele acabou me ajudando. E fomos procurar juntos o que significava aquela felicidade proporcionada pela escrita".

Como bem lembrou o mediador Cassiano Elek Machado logo no início da conversa, o advento das novas tecnologias e plataformas fez com que o cuidado com as narrativas fosse relegado a quinto plano. "Mas haverá um tempo em que daremos conta da importância do tema, que voltará a ser valorizado". Concordo. Afinal, não há existência humana civilizada sem o contato muito estreito - marcado por prazer ou por gozo - com uma boa e bem contada história. 



5. MANIFESTAÇÕES MOSTRAM QUE DEMOCRACIA REPRESENTATIVA BRASILEIRA CADUCOU

Se estivesse vivo e pudesse observar as manifestações que acontecem em todo Brasil, Vladimir Lênin, líder da revolução socialista russa de 1917, talvez em algum momento perguntasse: "O que fazer?". Um outro Vladimir, o filósofo Safatle (brasileiro, por coincidência bem parecido com o xará famoso), responderia sem pestanejar: "camarada, não devemos ter medo do povo". Em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, Safatle já havia escrito, em 18 de junho, ainda no calor dos acontecimentos e no dia seguinte à gigantesca manifestação que ocupou a cidade de São Paulo, que "democracia é barulho e quem gosta de silêncio prefere ditaduras". 

Foi essa a mensagem que ele reforçou em sua participação na FLIP, quando não escondeu a satisfação com os tremores populares vividos pelo país e destacou que as recentes passeatas e protestos cumpriram a tarefa de recolocar a política nas ruas, resgatando uma característica de identidade da população brasileira - que, ao contrário do retrato que se pinta dela, não teria nada de submissa ou pacata. 

"Esses últimos vinte anos é que representaram exceção. Somos um povo de lutas. O que fizemos agora foi negar a política dos gabinetes e dos bastidores para reconectá-la ao espaço público, a partir de demandas populares que são amplas. Quem acompanhou o que aconteceu no Brasil nos últimos dois anos não se surpreendeu. Não tomou susto. Nem deve temer. É o novo eixo da política funcionando", afirmou. Para ele, as tensões vão existir. A disputa está em curso. "Mas nos impedir de tentar é um crime", completou.

Safatle lembrou que as duas últimas décadas foram dominadas pela polarização entre PT e PSDB, dois consórcios que sentiam-se confortáveis por achar que controlavam por completo o jogo político nacional. O PT acreditava que tinha o monopólio dos movimentos sociais e a hegemonia das mobilizações de rua, e o PSDB entendia que aglutinava o pensamento conservador e a antiga classe média. "Os dois pólos estão atordoados. Já não representam mais quem imaginavam representar", definiu. 

Ele citou como exemplos dessa crise de identidades as passeatas que se espalham pelo país (à esquerda) e a mais recente marcha para Jesus (à direita). Nos dois casos, PT e PSDB estiveram muito longe de serem protagonistas dos processos e das mobilizações. Ficaram à margem, como meros espectadores, vendo a banda passar. "Havia um descontentamento social crescente no Brasil, criando um caldo de indignações que acabou explodindo".

Na avaliação que faz, Safatle identifica pelo menos duas pautas que estão definitivamente instaladas na agenda nacional. A primeira diz respeito ao esgotamento das possibilidades de funcionamento da democracia representativa parlamentar, incapaz de dar respostas aos anseios populares. Segundo o filósofo, o Brasil vive uma profunda crise de representação, não só dos políticos, mas também da imprensa, atores que se descolaram por completo do que acontecia nas ruas. 

Diante desse estremecimento, e sem um novo modelo institucional, a política não vai funcionar. A melhor resposta para essa crise teria sido a Constituinte, que permitiria à população escapar do papel de mero boneco de ventríloquo. O filósofo ironizou: "A iniciativa era tão boa que durou apenas 24 horas", em uma capitulação que sugere mais uma evidência da falência do atual sistema. "Não dá mais para reformar. É preciso refundar as nossas instituições". Veio então o xeque-mate: "o que se quer é que o último mensaleiro petista seja enforcado nas tripas do último mensaleiro tucano, levando com eles os empreiteiros e banqueiros que corromperam o Estado nacional". 

A segunda mensagem que vem das ruas, diz Safatle, exige novo ciclo de combate à desigualdade social e a ampliação dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. A era Lula produziu inclusão importante, mas não é mais capaz de dar conta das esperanças do povo, que cobra saúde, educação e transporte gratuitos e de qualidade. O Estado vai precisar ampliar o seu leque de atuação e de cobertura e terá de ser capaz de ler e entender o que acontece nas ruas. "O lulismo atingiu seu máximo, esgotou-se", sentenciou.

Com a bola pingando na área e pedindo "me chuta", o psicanalista Tales Ab'Saber, autor de "Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica", entrou em cena, procurou contextualizar a discussão e retomou as origens do movimento, que começou com um pequeno grupo de militantes que, segundo o especialista, fizeram uma avaliação teórica aprofundada das tensões latentes na sociedade brasileira e do ponto que poderia exatamente revelar o eixo de desequilíbrio da nossa democracia. "Eu me lembro de passar pela avenida doutor Arnaldo em 2006, 2007 e ver os meninos do Movimento Passe Livre protestando contra as passagens de ônibus. Eram poucos, algumas dezenas, mas sempre que a tarifa subia eles estavam lá, com cartazes, chamando a atenção para o tema. Foram minando o sistema". 

Apesar de controversa, ele fez questão de insistir na tese de que o MPL agiu com lucidez política singular e que conseguiu costurar um diagnóstico preciso de onde falhava a máquina da nossa democracia, recusando o cabresto da máquina lulo-petista. Os líderes do Movimento revelaram que há pontos estruturais e nevrálgicos em nossa organização social e que, se bem apontados e apertados, fazem rachar um cristal imaginário. "É a leitura das contradições da sociedade de classes e a aposta nas questões em que a esquerda deve investir para ganhar esse embate. É uma análise marxista da realidade. Por conta dela os meninos souberam conquistar a totalidade". 

O psicanalista afirmou ainda que a consolidação do transporte público e de qualidade como um direito da cidadania e o recuo da Polícia Militar fascista de São Paulo, que foi obrigada a abandonar a postura truculenta e repressora das primeiras manifestações, podem ser consideradas as duas primeiras vitórias - concretas e simbólicas - do movimento. "O que está nas ruas é um evidente questionamento sobre para onde vai a riqueza produzida pelo país, se ela vai servir à eterna concentração ou se vai ser destinada à cidadania. Essa agenda é clara. Só não vê quem não quer. Ou quem tem medo e quer fragmentar e dividir", avaliou.



6. AS REVOLUÇÕES NO EGITO

O escritor egípcio Alaa Al-Aswany, também especialista em relações internacionais, cravou em entrevista publicada neste domingo pelo caderno "Aliás" do jornal "O Estado de São Paulo" que a derrubada do presidente Mohamed Morsi não foi um golpe de Estado. "Democracia não é um livro sagrado. A sensação é de vitória. Morsi é um terrorista fascista. Estamos tomando de volta a revolução roubada. Estávamos frustrados, pois não víamos nada mudar. Agora tomamos as rédeas, ninguém poderá ignorar a vontade do povo", comemorou. Sobre o protagonismo do Exército nos acontecimentos recentes e a possibilidade de as Forças Armadas se perpetuarem novamente no poder, ele foi também categórico: "não aceitaríamos um novo regime militar nem por um único dia". 

Essa pergunta - o que se deu agora foi um golpe ou nova revolução? - não apareceu no debate sobre o Egito que aconteceu na FLIP. O filósofo Vladimir Safatle e o professor, tradutor e especialista em literatura árabe Mamede Jarouche aproveitaram experiências pessoais, escolheram outro recorte e dedicaram-se a tecer reflexões sobre a explosão popular inicial que tomou conta da Praça Tahrir, em janeiro de 2011, além de analisar os desdobramentos da revolta, um ano depois da queda de Hosni Mubarak, quando o sentimento de euforia já tinha sido substituído por nuvens de preocupações. A imagem que se usava era que a primavera fora substituída pelo outono ou até mesmo pelo inverno. Com essa opção de avaliação, e ainda que não tocassem diretamente na nova onda de protestos, os especialistas ajudaram a jogar luzes sobre o processo de convulsão social que tomou conta do Egito. 

Mamede presenciou o início da versão egípcia da Primavera Árabe. Estava na cidade do Cairo no começo de 2011, para aproveitar as férias e aprofundar pesquisas para a tradução do livro "As mil e uma noites", que estava desenvolvendo. As manifestações começaram na Tahrir um dia depois que o brasileiro desembarcou por lá. Ele confessa que foi pego de surpresa. "Estudo o mundo árabe antigo, até o século XIII, no máximo. Para mim, o século XIV já é por demais moderno. Não tinha a menor noção da ebulição vivida pelo país. Sinto-me envergonhado, mas eu era um completo alienado sobre aquele processo". 

Quando a praça foi tomada, a cidade parou. Bibliotecas e universidades fecharam as portas. Ficou perigoso transitar pelo Cairo. O hotel onde Mamede estava hospedado resolveu jogar a diária para 300 dólares, valor que ele se recusava a pagar. Depois de atravessar barricadas e tanques carregando malas, conseguiu alugar uma casa numa rua perto do Departamento de Polícia da cidade - segundo o proprietário, era o local mais seguro da capital. De sua janela, via os franco atiradores do governo postados em cima dos prédios no entorno, atirando contra os manifestantes. Define essas cenas como apavorantes. 

"Comecei a prestar atenção naquilo tudo. Notei uma insatisfação enorme no país, principalmente por conta da miséria. E, havia muitos anos, um movimento de jovens vinha se organizando nos subterrâneos, com muito cuidado, germinando. Naquele mês, ganhou as ruas". Segundo ele, a tática dos jovens era o enfrentamento direto com a polícia, atacando, emboscando e fugindo, em combates violentíssimos. "Fui espectador privilegiado de uma revolução que estava em curso", confirmou.

Um ano depois, em janeiro de 2012, Safatle viajou pela Tunísia, Egito e Palestina e entrevistou cerca de 60 pessoas, disposto a compreender as tensões, tendências e possibilidades assumidas pela Primavera. Os relatos dele foram publicados no caderno "Ilustríssima" da "Folha de São Paulo". "Fiz uma espécie de reportagem de ideias", define.

A primeira percepção que saltou aos olhos do filósofo foi a incomunicabilidade entre as sociedades ocidentais e o mundo árabe. Na imprensa daquela região, sempre que lia análises sobre os movimentos populares e seus desdobramentos, eram textos escritos por especialistas europeus (de origens diversas) ou estadunidenses. Raramente era ouvido algum pesquisador das universidades do Cairo ou de Túnis, por exemplo. "As narrativas sobre os impasses eram sempre construídas a partir de olhares de fora, deixando extravasar outros problemas e medos, que não especificamente os do mundo árabe. Dessa forma, alimentavam-se caricaturas", explicou.

O filósofo também entendeu com mais propriedade a importância das religiões para aquelas sociedades. Novamente de acordo com a visão ocidental, ali viveriam somente povos atrasados, fundamentalistas e reféns dos deuses e dos dogmas, como se a razão e a consciência iluminista terminassem exatamente no Estreito de Bósforo, que separa a Europa da Ásia, na Turquia. "A imagem que temos é que lá as religiões seriam obstáculos intransponíveis ao exercício da democracia e à presença da modernidade, o que não procede". Na verdade, em grande medida as crises instaladas naquela porção do globo têm também raízes nas relações estabelecidas com o Ocidente, nas intervenções e negociatas feitas por conta da geopolítica internacional, além das imposições da agenda neoliberal."Não há nada de irracional ou de atrasado naqueles países. Aliás, se formos entrar nessa discussão e quisermos destacar uma nação que sofre grande intervenção da religião na política, talvez devamos olhar para os Estados Unidos".

A viagem pela região permitiu ainda que Safatle tivesse mais clareza sobre a natureza política que caracteriza acontecimentos históricos com essa magnitude. "Revolução é uma trama que se dá em dois tempos, com uma abertura que dá início a uma série de efeitos, que vão ressoar durante anos", definiu. Para ele, é um erro e uma temeridade intelectual querer rotular um processo tão complexo e profundo apenas a partir de seus primeiros passos. "O que vemos hoje no Egito? Novamente a força da população, em mobilizações gigantescas de rua, que derrubam mais um governo e insistem na necessidade de levar esse processo revolucionário adiante. É o modelo revolucionário clássico. Foi assim que se desenrolou a Revolução Francesa". 



7. AS HISTÓRIAS DO GALERA

O paulista criado em Porto Alegre Daniel Galera é certamente um dos autores mais intensos e talentosos da atual Literatura brasileira, elogiado pela crítica e apreciado pelo público. "Barba ensopada de sangue", seu romance mais recente, lançado no final do ano passado, foi o protagonista da fala dele na mesa "Tragédias no microscópio", realizada na FLIP. Na obra, o personagem principal decide morar na cidade litorânea de Garopaba, em Santa Catarina, disposto a desvendar um mistério que envolve o avô dele. A partir desse universo específico, Galera faz estourar uma avalanche de dúvidas, aprendizados, angústias, amores, desejos sexuais, traições e violências, numa muito bem tramada narrativa que escancara dramas existenciais coletivos, a incomodar toda a humanidade, sem perder de vista as dimensões individuais, as pequenas histórias.

O livro não nasceu ao acaso. Desde muito jovem, morando em Garopaba, o escritor ouvia falar de pessoas que tinham virado lendas, em enredos marcados por superstições, e que vão se propagando e crescendo, até se tornarem inquestionáveis, impositivos. Para ele, nessas trajetórias, quando se faz o caminho inverso, de desconstrução, percebe-se que eram sujeitos anônimos, pessoas absolutamente normais, que não tinham a menor ideia de que poderiam alcançar essa imagem gigantesca. Foi esse roteiro que ele pretendeu levar para "Barba". Na definição do autor, o romance é um pequeno estudo sobre como um aspecto mítico pode brotar de uma história trivial. E nesse jogo narrativo, ao desejar descobrir o que aconteceu com o avô, o protagonista vai simultaneamente se reencontrando e passando sua vida a limpo. "Quis provocar no leitor a sensação de estar dentro da obra, que ele estivesse no mesmo ritmo da narrativa".

Outra característica marcante do livro é que o personagem principal não tem nome - é sempre 'ele', o 'nadador', 'o que veio de fora', o que exigiu de Galera um esforço literário extra, já que foi preciso encontrar recursos eficientes para que ninguém na obra pronunciasse o nome dele. "Não é para esconder, não sei mesmo o nome do cara, nenhum nome tinha o jeito dele. Pensei em vários, mas acabei recusando todos", explicou. Sobre o fato de a história se passar em uma cidade pequena, Galera considera que o romance funciona exatamente por isso. "Articula e identifica relações e situações que dificilmente aconteceriam numa cidade grande".

Muito leitores já perguntaram a ele se não foi deprimente escrever sobre um personagem infeliz, em permanente dúvida, que não sabe o que quer. Galera diz que entende o protagonista de forma oposta - um sujeito a viver exatamente como gostaria, a encontrar o lugar que lhe pertencia. É alguém feliz. Quem percebe essa felicidade, já no final da trama, é a ex-namorada dele, que identifica que o antigo amor está justamente escapando e deixando para trás os traumas antigos - a paixão que não deu certo, o suicídio do pai, os entreveros com o irmão. "Ela é a única que saca que ele está bem, não está sofrendo". 

Galera reconheceu que não tem pudor de se deixar influenciar por outros escritores e que também não acha ruim que os leitores detectem essas influências. "Inspiração é para ser usada". Em "Barba", ele admitiu que, para estruturar os longos trechos descritivos, bebeu na fonte do falecido romancista e contista estadunidense David Foster Wallace (1962-2008). Mas a contribuição decisiva, garante, veio de outro estadunidense - Cormac McCarthy, autor de "A Travessia", onde é possível notar a presença do misticismo. "Essa foi uma conexão literária decisiva para meu romance", reforçou.

Em determinado momento de "Barba', Jasmin, a segunda namorada em Garopaba do homem que não tem nome, decreta que 'estamos vivendo a era do tá foda". Para Galera, sempre estivemos despreparados para o sofrimento, mas o excesso de informações nos faz sofrer ainda mais. Em contrapartida, ele disse que a vida não é difícil, e que a felicidade está em saber aproveitar a beleza dos pequenos momentos e gestos. Aqui, parece existir estreita conexão entre autor e personagem. "Se há algo de heroico nele, e é uma característica com a qual concordo, é que ele é um cara desprovido de ambições, que pensa que o excesso resulta em transtornos. Talvez seja uma projeção minha. É algo que também procuro colocar em prática". 



8. ENSAIO, ESSA AGRADÁVEL BAGUNÇA LITERÁRIA

O inglês Geoff Dyer já escreveu a respeito de jazz, ioga e fotografia; John Jeremiah Sullivan, estadunidense, acaba de publicar no Brasil um livro que reúne textos sobre um festival cristão de rock, o furacão Katrina e o ídolo pop Michael Jackson. Com temas tão diversos, o que têm em comum? O fato de terem alcançado a condição de mestres na arte do ensaio, gênero tão sedutor, se considerarmos seus atrativos literários, quanto controverso, quando se pretende conceituá-lo, e que mais recentemente vem cavando espaços importantes por aqui, em revistas como a Piauí e a Serrote. Juntos na última mesa da FLIP, já em clima de final de festa, desafiando as formalidades e investindo mais num bate-papo divertido e bem humorado, os dois escritores, em discursos afinados, arriscaram algumas respostas para a dúvida principal que incomodava boa parte da plateia presente: afinal, o que é um ensaio?

De fato, a primeira definição foi sugerida pelo mediador do debate, o escritor, jornalista e editor da Serrote, Paulo Roberto Pires, para quem "ensaios são textos movidos por curiosidade sobre os mais diferentes assuntos, narrativas impecáveis, com estilo, sem preconceitos, que pensam e fazem pensar. Não pretendem concluir, mas sugerir. É um texto para alguém que deseja algo além do jornalismo e aquém do que fazem os especialistas". 

Ajudando a desenrolar o novelo conceitual, Dyer afirmou que o ensaio está presente em nossas vidas desde a educação básica, quando somos obrigados a fazer dever de casa, escrevendo redações que exigem pesquisa, registro de notas e citações. "É uma espécie de ensaio, que agora tornou-se moda. O fato é que nunca parei de fazer essa tarefa de casa", completou. Foi a estratégia que encontrou para garantir um processo contínuo de auto-educação, que escapasse das aulas à distância e das escolas formais, mas permitisse manter a disciplina para aprender sobre assuntos que lhe interessam. Para o autor inglês, a vida acadêmica tende a limitar e afunilar a trajetória intelectual - e o ensaio é a brecha para fazer exatamente o movimento contrário, de anti-especialização. "É uma miscelânea de saberes, de áreas e de temas. E só funciona por conta desse hibridismo". Trata-se, em essência, de uma jornada que nos conduz da ignorância ou da curiosidade para algum tipo de conhecimento. E, mais fascinante ainda, o leitor é também um convidado privilegiado dessa viagem, a compartilhar com o autor esse processo de descobertas. "O ensaísta é um exímio contador de histórias", cravou.

As reflexões de Sullivan também exaltaram essa mistura, que representaria justamente a principal virtude do ensaio. "É uma forma solta, informal, que funciona bem para amadores", completou. Ele não nega: é confusa mesmo, gera dúvidas e arrepios dos mais puristas e que gostam de rótulos absolutos, uma mescla anárquica de reportagem jornalística, precisão conceitual e espírito literário. "Não há separação explícita entre gêneros. É propositalmente bagunçado. O ensaio é como aquele pasto comum nas aldeias inglesas, algo natural, lugar que todos desejamos visitar e onde nos encontramos", comparou. Para ele, os assuntos devem obrigatoriamente ser diversos, múltiplos, e o bacana é poder aprender sobre o que se deseja. O escritor estadunidense disse que não briga com essas características - ao contrário, as aceita e também reconhece que são as características marcantes de um  bom ensaio. O que deseja é escrevê-los da melhor maneira possível. "Eu me sinto privilegiado por poder fazer perguntas que me encantam e seduzem o meu leitor. O ensaio é o veículo para alcançar essa empatia". Por fim, revelou que a ausência de relação de autoridade é outra qualidade que o empolga. "O que dizemos para nossos leitores é: que tal sentarmos juntos para pensar sobre esse problema?".