segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

CONSEGUEM OS PETISTAS EXPLICAR A ALIANÇA COM KASSAB?

Foto - Agência Estado (dezembro 2011)
O trator passou primeiro por cima da pré-candidatura da ex-prefeita Marta Suplicy, que desejava disputar a indicação do Partido dos Trabalhadores para novamente concorrer à administração municipal paulistana. Não cabe aqui discutir se ela seria efetivamente a escolha mais adequada, se teria densidade e viabilidade eleitorais, se representaria um projeto político capaz de promover certo renascer da cidade, depois de oito anos de demo-tucanismo-kassabismo.

O fato é que Marta tinha o legítimo direito de pleitear a vaga; e o PT tinha o dever de promover prévias para definir seu candidato à Prefeitura de São Paulo, consagrando uma prática historicamente defendida e respeitada em tantas outras situações pelo partido, justamente como exercício de um mecanismo que é tido politicamente como sinônimo de vida partidária oxigenada e democrática. Foi também essa mesma dinâmica de embate e debate internos uma das principais responsáveis, em eras remotas, por abrir espaço para que segmentos importantes da sociedade e da cidade, incluindo periferias e movimentos sociais, pudessem participar de forma mais viva e pulsante da definição não só do candidato, mas da construção de projeto político coletivo e de bandeiras de luta que posteriormente seriam defendidas publicamente durante a campanha. Era um PT que se definia como de massas e popular. 

Foi-se o tempo. O PT preferiu sucumbir às benesses do poder e aos ditames do lulismo e aceitou, submisso, praticamente em silêncio e cabisbaixo, sem resistência, tal qual alguém que apenas reage mecanicamente para cumprir ordens, que o ex-presidente Lula falasse grosso, apontasse o dedo e resolvesse sozinho: "o candidato será o ex-ministro Fernando Haddad".

Nas últimas semanas, o trator político se movimenta perigosamente, de forma ardilosa e com voracidade para consagrar mais uma ação política devastadora: o ex-presidente da República determinou que o PT considere seriamente a possibilidade de aliança com o PSD do prefeito Gilberto Kassab, que teria a prerrogativa de indicar o candidato a vice na chapa de Haddad. Petistas e kassabistas se juntariam para derrotar os "adversários" do PSDB (que, pelos sinais emitidos até agora, não terá José Serra como candidato. Mas...). 

A "sugestão" do grande líder se transformou rapidamente em possibilidade concreta. Declarações dadas por importantes lideranças regionais do PT e publicadas pela grande mídia nos últimos dias são de arrepiar. O vereador Francisco Chagas afirmou que "nosso diálogo com Kassab não é artificial, irreal ou fora de contexto. O PT não pode mais ser um partido sectário". O também vereador Senival Moura completou: "Se há esse entendimento por parte do ex-presidente Lula, que tem uma visão muito ampla da política, e ele acha que isso é bom para o PT, não tem motivos para os vereadores se posicionarem contrariamente". Arselino Tatto foi taxativo: "Se o Lula é favorável, eu sou favorável. A opinião dele dentro do partido é muito forte. Para ganhar dos tucanos, temos que fazer todos os esforços. Apoio não se recusa".  Tudo isso sem contar os elogios rasgados feitos pela presidenta Dilma Rousseff ao prefeito Kassab em evento realizado durante o aniversário da cidade ("é um político agregador, capaz de unir pessoas diferenciadas"), 

Logo se vê que o lulismo transformou-se em fenômeno muito maior e mais relevante que o petismo - e o primeiro acaba por emparedar e engolir o segundo. O que resta é a vontade pessoal de uma liderança que tem e fez história, reconhecidamente, mas que passa a ser vista como infalível, inquestionável, pairando acima do bem e do mal, num messianismo tão nefasto quanto despolitizante. Diante da figura de Lula, todos se ajoelham, ninguém questiona, somem alternativas, críticas ou divergências. Fica apenas a obediência cega. Se o chefe mandou... Voto - ou aliança - de cabresto. Coronelismo partidário, se preferirem. Saudades de um PT que ficou perdido em algum lugar do passado.

As vantagens que Kassab pode alcançar com a possível (seria arriscado dizer provável?) aliança são evidentes: gratidão do governo federal (que pode se reverter em verbas e cargos públicos), verniz político de esquerda, vitamina eleitoral para interferir na disputa municipal deste ano como protagonista, além de já se posicionar bem em relação à sucessão estadual, em um possível enfrentamento com a candidatura à reeleição de Geraldo Alckmin, em 2014, quando poderá cobrar a fatura e exigir apoio do PT (ainda que seja em eventual segundo turno).


E o PT? Será que tem mesmo algo a ganhar? Vai correr o risco de ver sangrar e sacrificar votos que são identificados com o que ainda resta da história do partido, como os que se originam de setores da periferia e da intelectualidade? Será que as lideranças petistas que defendem a aliança estão mesmo convencidas de que conquistarão por simples atração os votos das classes médias conservadoras de São Paulo, que mantêm a ojeriza ao partido, por conta daquilo que ele já representou um dia? 

E, ainda que a vitória eleitoral venha, terá valido a pena, politicamente, a longo prazo, se mancomunar com as ações higienistas de Kassab, a demonização dos movimentos sociais, a militarização das subprefeituras, a especulação imobiliária, o abandono do transporte público, o sucateamento da saúde e da educação, a perseguição aos moradores de rua? Aliás, defenderá o PT em campanha todas essas práticas tipicamente kassabistas? Vai se sujeitar a aparecer na TV chancelando a truculência da Polícia Militar na Cracolândia, por exemplo? Mesmo que a prefeitura seja reconquistada, terá valido a pena ter oferecido lastro político e ter feito aliança com aquele que por sua vez não cansa de se anunciar como aliado de primeira hora de José Serra, um obcecado pela Presidência da República? 

Gostaria muito que o silêncio quase absoluto (sim, é preciso reconhecer, vozes pontuais e isoladas, quase heróicas, têm manifestado estranhamento e oposição à aliança) fosse rompido e que os petistas - e tenho ainda amigos, a quem respeito, no partido - estivessem dispostos a debater publicamente todas essas questões. Gostaria muito de ouvi-los contestar a aliança com Kassab. Sem medo do lulismo. 

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A PM NO PINHEIRINHO - IMPORTANTE ERA GARANTIR A INTOCÁVEL PROPRIEDADE PRIVADA

O Pinheirinho era um acampamento na periferia da cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo, onde viviam cerca de nove mil sem-teto, desde 2004, em uma área com 1,3 milhão de metros quadrados, três vezes mais que a ocupada pelo Vaticano. O terreno pertencia ao especulador Naji Nahas - que nunca pagou IPTU à prefeitura. Com os cuidados e esforços dos moradores, transformou-se em bairro, com ruas, igrejas, lojas e escolas. Por lá, uma vida social intensa, relações humanas consolidadas, uma rotina estabelecida, dignidade resgatada com as próprias mãos - e tudo isso foi brutalmente destroçado pela ação ilegal (de acordo com a Ordem dos Advogados do Brasil) e truculenta da Polícia Militar, a mando da Justiça do estado de São Paulo, numa manhã de domingo, de surpresa, quando os moradores ainda acordavam. Dois mil policiais seguiram à risca o que tem sido a marca da PM do governador Geraldo Alckmin, quando estão em pauta as questões e os movimentos sociais: pés na porta, fardas sem identificações, bombas de gás lacrimogênio, viaturas, helicópteros, ameaças com armas. Tiros. Para que não restem dúvidas: dois mil policiais foram envolvidos na operação de guerra. Os moradores do Pinheirinho foram todos expulsos do bairro. A maioria não teve sequer tempo para pegar roupas ou documentos. Estão agora confinados em escolas e igrejas - "abrigos" que merecem ser de fato ser chamados de guetos, quem sabe campos de concentração, impostos pela prefeitura de São José dos Campos. Há doentes sem qualquer assistência ou atendimento. Crianças que brincam perto de dejetos de animais e de restos de comida. Os pouquíssimos banheiros disponíveis não têm privada nem água encanada. Os sem-teto receberam pulseiras coloridas de identificação - os nazistas marcavam os judeus com números nos braços e estrelas de Davi no uniforme. Passam fome e frio - alimentos e roupas chegam por meio de doações solidárias. São vigiados dia e noite pela PM, com todos os passos controlados, sem poder circular ou sair dos "locais estabelecidos". Deveras generosa, a prefeitura está ainda oferecendo passagens rodoviárias (até para o Piauí), com forte desejo de que partam rapidamente. A limpeza social foi feita. Muitos respiram aliviados. Dormem mais tranquilos. O Pinheirinho é agora um bairro-fantasma. As quase mil casas serão em breve demolidas. Com elas, cairão também os sonhos e histórias de vida de quase nove mil pessoas. A terra arrasada ficará por lá. Sem as casas, sem os moradores, mas finalmente de volta para seu "dono". O importante foi garantir a posse da propriedade, ainda que ela não vá cumprir sua função social, como determina a própria Constituição do Brasil. Mas aí são outros quinhentos, não? O fundamental era fazer valer a lei (dos mais fortes, dos mais ricos, dos privilegiados, dos que têm amigos influentes...). No domingo, em almoço em um restaurante de São Paulo, o cineasta Tiago Marconi ouviu uma senhora dizer que "não quero saber se tinha grávida ou criança, quero saber quem tinha a escritura". É assim que pensa parcela significativa da nossa sociedade. Por isso a PM pôde agir da maneira como agiu.
Entenderam?        

domingo, 22 de janeiro de 2012

IMAGENS DE UM DOMINGO NO MASP


"Sentir profundamente qualquer injustiça cometida contra qualquer ser humano, em qualquer lugar do mundo. Eis o dever de todo revolucionário" 
(Ernesto Che Guevara)

Manifestação no MASP - 22 de janeiro de 2011 - Foto: Chico Bicudo

Manifestação no MASP - 22 de janeiro de 2011 - Foto: Chico Bicudo

PM IGNORA JUSTIÇA FEDERAL E ACORDO E INVADE PINHEIRINHO



Na sexta-feira, 20 de janeiro, a Justiça Federal havia determinado a suspensão da reintegração de posse da Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos, onde vivem cerca de nove mil pessoas, há oito anos. Na quarta-feira, dia 18 de janeiro, acordo feito entre lideranças do acampamento e a massa falida da proprietária do terreno, mediado por parlamentares como o senador Eduardo Suplicy (PT), o deputado federal Ivan Valente (PSOL) e o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL), e chancelado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, garantia uma trégua de 15 dias à ordem de reintegração, para que uma solução política e pacífica para o impasse pudesse ser negociada.

Pois eis que o governo estadual tucano não perde mais uma chance de escancarar seu viés truculento e autoritário: desrespeitando tanto a Justiça quanto o acordo – ou seja, solenemente ignorando aspectos tanto legais quanto morais -, a Tropa de Choque da Polícia Militar invadiu na manhã deste domingo o acampamento, expulsando os moradores do local.

A ação seguiu o arcaico roteiro de violências, abusos e desrespeito aos direitos humanos consagrado por Geraldo Alckmin, quando o assunto são os movimentos sociais: pé na porta, bombas de gás lacrimogênio, tiros, viaturas, helicópteros. Até aqui, início da tarde, já há a confirmação de ao menos um morador baleado - e em estado grave. A PM não assume o disparo. 

Em matéria veiculada pelo portal UOL, Nivaldo Melo, 42 anos, morador do Pinheirinho, diz que está preso dentro de casa. "Aqui dentro está uma bagunça só. A polícia não deixa a gente sair de casa, e quem ela permite está saindo com RG nas mãos e só a roupa do corpo", conta. Ainda no UOL, outra moradora, Alexandra Monteiro, 29 anos, dona de casa, diz que estava em casa quando a ocupação começou: "A polícia começou a soltar bombas e quando eu quis sair de casa, a tropa de choque mandou a gente voltar pra dentro". 

Como contextualiza o Blog “Outro Brasil”, do jornalista Alceu Castilho, “as 9 mil pessoas da Ocupação Pinheirinho estão desde 2004 no local. Já foram construídas casas de alvenaria, em uma área de 100 hectares. O terreno pertence à Selecta, empresa do investidor Naji Nahas – famoso por ter quebrado a Bolsa dos Valores do Rio, em 1989. Em 2008 ele foi preso pela Polícia Federal durante a operação Satigraaha, acusado de crimes contra o sistema financeiro. A Selecta está falida. Seu único credor, o município de São José – pois nunca pagou IPTU”.

O Blog “Outro Brasil” destaca ainda que, em entrevista ao Jornal da Cultura, o cientista político Carlos Novaes defendeu o direito à resistência dos moradores do Pinheirinho, sugerindo a desapropriação da área, com base no dispositivo constitucional que trata da função social da terra.

No entanto, na calada da noite, num domingo, de surpresa, de maneira dissimulada e oportunista e aproveitando-se de forma torpe da desmobilização dos moradores, que confiaram na Justiça e no acordo celebrado, o governo estadual preferiu mais uma vez investir no uso da força, atacando a população pobre, para defender interesses de ricaços privilegiados investigados pela Justiça que usam a terra apenas para fins de especulação.

E o que se pode afinal esperar de um governo que ignora determinação judicial?

Nas redes sociais, os moradores do Pinheirinho convocam a resistência. "Quem estiver por perto, deve ir a São José dos Campos imediatamente, fortalecer a resistência. Quem estiver distante, vamos divulgar essa atrocidade e denunciar aos 4 ventos a enorme injustiça que estão promovendo".

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

SOBRE A DENÚNCIA DE VIOLÊNCIA SEXUAL NO BBB

Como o Blog nasceu e tem se consolidado como um espaço de reflexões, procurando (às vezes desesperadamente) nadar contra a corrente do conformismo e do senso comum alienante, procurei sistematizar aqui trechos de falas diversas e representativas a respeito daquele que já vem sendo chamado como o “episódio BBB” (denúncia de estupro). O objetivo é que possamos pensar juntos. E que cada um possa democraticamente construir suas convicções. Como alerta Elisa Marconi, radialista e professora universitária, precisamos deixar de lado a armadilha de vivermos a vida apenas “borboleteando”, sem exercitar nossa humana capacidade de indignação. Então...
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* "Ela não confirmou que teve sexo e disse que tudo o que aconteceu foi consensual. Não dá para garantir que houve sexo, muito menos estupro. Eles estavam debaixo do edredon e de lado. Mas o mais importante é que ela [Monique] estava consciente de tudo. Ela me disse que na hora que o clima esquentou pediu para ele [Daniel] sair da cama". (Boninho, diretor do programa, no twitter e em entrevistas, ainda no domingo, quando a discussão apenas começava a ganhar as redes sociais)

* "Estupro não houve. O problema é que a lei brasileira é muito ampla. O que se discute é o abuso [sexual], porque ela estava fora de condições. Ela estava sóbria, mas dormiu profundamente. Ele saiu do programa porque passou dos limites do relacionamento com as pessoas. O que ele fez na noite, até na visão dela, foi exagerado. A gente avaliou que a atitude dele foi ruim. Não tem uma regra muito clara. O comportamento dele foi excessivo. Para evitar algo pior, resolvemos eliminá-lo. Foi a primeira expulsão do BBB". (Boninho, terça-feira, em entrevista ao portal R7, e depois da reação nas redes sociais e do início da investigação policial).

* "De tudo, me arrepia mais o Bial dizer que o fulano foi eliminado porque infringiu o regulamento do programa. Às favas com o programa. Ele infringiu a condição primeira do ser humano: aquela que dá a cada um a posse sobre seu próprio corpo, de forma a tornar-se sujeito. Violar essa condição é fazer do outro objeto, ou seja, a maior violência que um humano pode impor ao outro". (Elisa Marconi, em sua página no facebook).

* “Assisti ao vídeo da cena em questão e não tive dúvida. O cara tinha penetrado-a ou tentado penetrá-la enquanto ela parecia completamente inconsciente. Monique não esboçava reação alguma enquanto o sujeito se mexia em cima dela sob o edredom. A ação de Daniel não é tão incomum. Há muito “garanhão” que faz e faria o mesmo numa boa. A frase que justifica o ato é sempre a mesma: “até parece que ela não estava gostando”. Ou seja, haveria um consentimento implícito. E mesmo inconsciente e sem condições de reagir a vítima teria sido premiada. A covardia é inominável. Mas terrível ainda é ver canalhas fazendo ziguezagues para justificar o pode tudo do macho. Houve gente que gastou o questionável juridiquês entre ontem e hoje para dizer que estupro não era um “conceito filosófico”. Ou seja, a tese era a de que para saber o que é um estupro precisava ter estudado Direito. Sensacional. E como ainda existem mulheres que consideram a violência masculina como algo menor. Não foram poucas as que não viram “nada demais” na cena. Talvez porque ainda existem garotas que se divertem quando são puxadas pelos cabelos em micaretas ou quando são literalmente laçadas em rodeios. É preciso começar a meter a mão na cara desses patetas. E chamar a polícia. O que as mulheres da rede social que se indignaram fizeram foi isso. Não arredaram pé do tema enquanto algo não fosse feito. Em certos momentos não se pode ter medo de barracos. É preciso gritar algo". (Trecho do texto “Daniel do BBB, Boninho e a força das mulheres da rede”, escrito pelo jornalista Renato Rovai).

* “Estupro não é sexo. Estupro não é uma vontade incontrolável de dar prazer à outra pessoa mesmo que ela não saiba que quer muito isso. Estupro não é um favor, não é um acidente, não é uma empolgação. Estupro é uma violência que decorre de uma relação de poder. No estupro, aproveita-se da vulnerabilidade do outro. Estupro não tem atenuante. Mulher pode gostar de sexo, de beber, usar roupas provocantes e se divertir e isso não dá a ninguém o direito de estuprá-la. Vamos desenhar, atenção: Não é porque ela estava bêbada que pode estuprar. Quando alguém diz não, significa exatamente isso: NÃO. Não importa o que ela “quer dizer”, importa o que ela efetivamente disse. E se a pessoa está desacordada, bêbada, drogada ou sonolenta e não tem condições de dizer sim ou não, saiba: é sempre não. (...) Não são as mulheres que precisam aprender a evitar e se prevenir contra estupros, são os homens que precisam aprender que não podem estuprar”. (Trecho do texto “Estupro não é sexo”, publicado pelo Blog Biscate Social Club. Chegou até mim por sugestão da Niara de Oliveira e da Suzana Vasconcellos, no facebook)

* “Não houve violência, constrangimento, nem grave ameaça. Houve aproveitamento de um momento em que ela não podia oferecer resistência. E sim, independentemente de penetração, é estupro. Basta ler a definição na Lei 12.015/09. E, principalmente, ela pode ter bebido, mas isso não justifica. Só para esclarecer: se ela não pode consentir, é estupro. Ela pode estar bêbada, pode estar desmaiada, pode ter passado mal. Não tem condições de consentir, se a outra pessoa resolver seguir adiante, é estupro. Espero que o Ministério Público tome providências e a que a família de Monique faça alguma coisa. Acho muito estranha essa necessidade que as pessoas têm de justificar o estupro.  A gente vê isso em todo caso que aparece: “Ah, mas ela estava de roupa curta? Ela estava bêbada? Ela estava drogada? Ela foi pra casa dele?”. Muito preocupante. Vamos fazer como no caso da pastora evangélica que foi demitida depois de ter sido estuprada por um fiel da igreja? Por que os chefes dela entenderam que ela foi estuprada porque quis? Por que não lutou e gritou o suficiente? Parece que as pessoas acham que estupro ocorre somente quando um psicopata armado te aborda na rua e te obriga a fazer sexo com ele. Pois saibam que a maioria dos estupros são cometidos por pessoas conhecidas. Amigos, colegas, namorados, maridos, tios, pais etc". (Trecho do texto “Violência sexual no BBB e muito machismo fora dele”, publicado no Blog “Blogueiras feministas”).

* “Nada como (mais uma) noite de insônia para a reflexão e o alinhamento das idéias. É o que segue (quanto ao “caso” do BBB): se houve ou não estupro, cabe à Polícia a apuração. Não vi as cenas (nem pretendo ver). Se houve, o sujeito que seja, obviamente, devidamente punido.      O que deve ser mantido na pauta das discussões é, isso sim, a questão  das concessões de TV e o “nível” da programação oferecida”. (Reinaldo del Dotore, advogado, em sua página no facebook).

* “E não é que o BBB está trazendo muitas lições?! Meninos, não é preciso colocar o glorioso instrumento dentro das moças para configurar estupro. Claro, vale também pras meninas. Se você considera o programa um lixo e, por isso, não comenta o assunto para parecer intelectual, sorry, você é uma besta. Se você acha que fulana merece isso porque bebeu/estava provocando/é safada, você merece passar por uma situação ainda pior. Mulheres conseguem ser tão – ou mais – machistas que os homens. Não adianta a Globo tentar esconder. Agora somos nós que espiamos. E por aí vai..." (Thaís Pinheiro, jornalista, em sua página no facebook)
* “A glamourização da bebedeira e do sexo irresponsável e o decorrente abuso de vulnerável na tevê são exatamente o que precisa um país campeão de gravidez precoce, de desastres de trânsito causados por condutores alcoolizados e de tudo mais que condutas como a que o Big Brother estimula causam. E a sua família vendo isso na tevê, na internet ou no boca a boca. Mas disso ninguém reclama. Até porque, como não há regulamentação da mídia no Brasil, não há a quem reclamar”. (Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, no texto “Ela bebe até cair, ele abusa dela e a sua família assiste”).
* “De todos os erros que o diretor Boninho cometeu nas últimas 48 horas, o único que ele evitou foi o de atuar como se fosse polícia ou Justiça. Escapou desta cilada ao não acusar Daniel de ter cometido algum crime. Mas agiu novamente como se o “BBB” estivesse acima do bem e do mal, como se acreditasse, de fato, no apelido que lhe deram, o “Big Boss”. “Depois de criteriosa avaliação, a direção do programa entendeu que sim, o comportamento de Daniel na noite da festa foi motivo de eliminação”. E pronto. Nenhuma informação além dessa.  Nada. Pedro Bial dedicou 14 segundos na abertura do programa para dizer que Daniel era “suspeito de ter infringido as regras do programa” e precisou de mais 33 segundos, ao fim do primeiro bloco, para avisar que o candidato dançou. Que regras são essas? Como foram infringidas? Por que foi necessário fazer “criteriosa avaliação”? Daniel teve chance de se defender? O que disse Monique?” (Mauricio Stycer, jornalista, no portal UOL)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A CRACOLÂNDIA NÃO QUER SÓ POLÍCIA

Retorno das férias disposto a sugerir mais algumas reflexões sobre a farsa policialesca-midiática patrocinada pela prefeitura de São Paulo na região da Cracolândia. A tal da estratégia "dor e sofrimento", idealizada e defendida com unhas e dentes pelo prefeito Gilberto Kassab e por outras lideranças demo-tucanas, continua muito longe de se mostrar minimamente efetiva e capaz de enfrentar com dignidade e responsabilidade pública os complexos dramas sociais vividos pelos usuários de drogas que frequentam o local. 

Ao contrário: serviu a medida higienista apenas para reforçar e legitimar, em tempos de "Era dos Adjetivos", a mensagem generalista que diz que "a presença da Polícia Militar (que aliás, diga-se de passagem, continua sendo o único agente estatal a marcar ponto por lá) é fundamental para combater a criminalidade e a bandidagem que tomaram de assalto um espaço simbólico da cidade". Quem, no entanto, estiver disposto a se despir dos discursos prontos e dos preconceitos, a abandonar o senso comum reducionista e a pensar com um pouco mais de profundidade sobre a questão vai se deparar com uma fotografia social significativamente distinta.     

Pesquisa feita pelo Instituto Datafolha e divulgada pela Folha de São Paulo no domingo, 15 de janeiro, ouviu 188 usuários de crack da região e revelou que na Cracolândia vivem os excluídos dos excluídos, aqueles que são vítimas de toda sorte de privações sociais e já não têm mais perspectivas de vida digna. Foram abandonados pela sociedade. Vivem no gueto. Segundo o levantamento, 27% dos que lá estão não têm trabalho e sequer procuram mais emprego; 45% dos que conseguem trabalhar vivem na verdade de bicos. Em relação à escolaridade, 64% dos usuários de crack concluíram no máximo o ensino fundamental - apenas 6% têm o curso superior. 

Ainda de acordo com o Datafolha, a população local é formada majoritariamente por homens (84%, contra 16% de mulheres) e por jovens (18% têm entre 16 e 24 anos; 45%, entre 25 e 34 anos; 28%, de 35 a 44 anos; e 9% têm mais de 44 anos). A média de idade é de 33 anos. A cor da pele é também fator a ser considerado: 44% são pardos e outros 22% são negros (66%, no total), enquanto há 22% de brancos. 

O vício começa cedo: 23% tiveram a primeira experiência com crack quando tinham entre 11 e 15 anos; outros 23% travaram o primeiro contato com a droga com de 16 a 20 anos. Dos que vivem na Cracolândia, 28% usam crack há pelo menos cinco anos; 30% consomem a droga há pelo menos 10 anos.

Realizado em dezembro de 2011, trabalho feito pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Uniad/Unifesp) traz à tona outras informações importantes para a compreensão do problema - e, portanto, para o combate do mesmo. O estudo mostra que 47% dos entrevistados (170 dependentes que vivem na região, sendo 102 homens e 68 mulheres) estão dispostos a se submeter a tratamento e 62,3% desejam parar de usar drogas. A maioria dos usuários (61%) já passou por tratamento. 

Revela ainda o estudo que "em relação aos recursos para obter as drogas, 59% afirmam ter dinheiro próprio para a compra do produto, 13% reconhecem apelar aos roubos, outros 13% recorrem à troca de objetos pessoais, 12% recebem esmolas, 9% furtam, outros 9% vendem objetos de família, 11% trocam a droga por sexo e 13% prestam serviços diversos aos traficantes". 

Quando se pensa que atingimos a situação de máximo aviltamento da dignidade humana, vislumbramos que, na Cracolândia, é ainda possível encontrar, nos excluídos dos excluídos, aquelas que são ainda mais excluídas - as mulheres gestantes. Também feito pela Unifesp e divulgado com exclusividade pela Folha de São Paulo na edição do último dia 12 de janeiro, outro estudo acompanhou dez grávidas usuárias de crack que vivem na Cracolândia. Segundo a reportagem, "apenas duas estavam fazendo pré-natal. Cinco sabiam quem eram os pais dos filhos - parceiros também usuários do crack. Oito delas já tinham filhos e três tinham sofrido abortos anteriores. Seis fumavam até dez pedras por dia. As demais chegavam a consumir vinte pedras. Metade das gestantes financia o consumo de crack pedindo esmola ou trocando sexo pela droga". 

Embora não se possa avaliar com precisão quais os efeitos específicos do crack sobre a gestação - as grávidas não raro são também fumantes, dependentes de álcool e enfrentam quadros de desnutrição -, a matéria lembra que os "bebês dessas mulheres tendem a nascer prematuros e com atraso de desenvolvimento. Também têm mais chances de apresentar sequelas neurológicas, retardo mental, déficit de aprendizagem e hiperatividade". 

Os números aqui apresentados certamente não esgotam o assunto nem estabelecem mensagens absolutas, mas sugerem caminhos e abordagens possíveis e precisam ser mais discutidos e bem avaliados, para que as diversas e complexas histórias de vida (individuais e coletivas) que guardam possam auxiliar na definição de políticas públicas sociais articuladas e dispostas a dar conta do problema, em seus mais diferentes aspectos. O prefeito Gilberto Kassab conhece essa fotografia. Mas, em ano eleitoral, de forma ideologicamente convicta, prefere prestar contas aos setores conservadores da sociedade - as elites brancas paulistanas, interessadas em varrer a "sujeira" para debaixo do tapete, a qualquer custo. Legitimam, assim, as ações higienistas e a presença truculenta do aparato policial na região. 

Trata-se de um clichê, do óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, mas que precisa ser repetido à exaustão, sob pena de naturalizarmos uma chaga que é social e política. Na Cracolândia, as drogas não são porta de entrada, mas o fim da linha para pessoas que já sequer se reconhecem como tal. São farrapos humanos degradados, alijados de qualquer possibilidade de garantia de direitos, de qualquer perspectiva de exercício de cidadania, em busca de momentos efêmeros de um prazer tão desesperado quanto suicida, e que sem alternativas e abandonados pela sociedade definham diante de nossos olhares muitas vezes cúmplices e silenciosos. A vida segue, não é mesmo?

Em entrevista publicada pelo portal Terra, Rubens Adorno, antropólogo e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), reforça que os habitantes da Cracolândia "não são marginais. Predominam pessoas muito pobres e que, por circunstâncias da vida, acabaram indo para a rua. O importante é que o usuário acaba incorporando aquilo que as pessoas externamente pensam dele". O pesquisador coloca o dedo na ferida: "A cidade de São Paulo é uma cidade atrasada. A estratégia atual é militar. Tratam essas pessoas como a escória a ser varrida e confinada. Estamos vivendo a política sanitária do século 18. A prefeitura e o governo não chegaram nem ao século 19".

Na sexta-feira, 13 de janeiro, o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, escreveu em sua página no facebook que "é impressionante a quantidade de viaturas policiais, motos, helicópteros e a abordagem truculenta (na região). Com duas defensoras públicas, ficamos na mira da polícia, que sacou uma arma para abordar os que estavam vagando pelas ruas. Verdadeira operação de guerra".

Claro está que o problema não será resolvido com fardas, botas e armas apontadas para vítimas da exclusão social. O Estado precisa dizer "presente" de outras maneiras - com moradia, coleta de lixo, lazer, espaços culturais, quadras esportivas, escolas, oferta de emprego, postos de saúde, atendimento e tratamento multiprofissional e qualificado aos usuários de drogas, garantindo opção de vida e devolvendo ao menos em parte a esperança roubada dos que lá vivem. Pois, como já cantou o Rappa, "paz sem voz não é paz - é medo". 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O PREFEITO HIGIENISTA E A LIMPEZA DA CRACOLÂNDIA

Achei por bem interromper brevemente as férias para compartilhar com vocês algumas inquietações a respeito da "limpeza" patrocinada pela Prefeitura de São Paulo na região conhecida como Cracolândia, área central da cidade. Claro está que o prefeito Gilberto Kassab, agora no PSD, mas desde sempre demo-tucano na alma, abre o ano eleitoral jogando para a plateia conservadora (que, no caso de São Paulo, não é pequena), abrigada em suntuosos camarotes de luxo, e de onde "observa" a realidade (em geral com empáfia e egoísmo). Dessa forma, Kassab envia sinais, tenta mostrar serviço e, quem sabe, resgatar ao menos parte do apoio político perdido, agindo para restabelecer pontes com o eleitorado de direita da cidade, com intuito de se cacifar para assumir o papel de um dos protagonistas da disputa pela Prefeitura - processo que, aliás, já está em curso.   

A "limpeza" não passa disso - medida de caráter puramente higienista, marca, aliás, da administração kassabista. E já que "Narciso acha feio o que não é espelho", como cantou Caetano Veloso, é preciso tornar a Cracolândia palatável e acessível para as elites brancas paulistanas, (re) construindo a região à imagem e semelhança dos anseios limpinhos. É fundamental resgatar uma área simbólica e histórica da megalópole, mas que se tornou "feia, suja, fedida e repugnante, por culpa dos marginais e dos drogados que se apossaram dela". Para tanto, basta expulsar os bandidos de lá. Uma vez mais, associa-se pobreza e exclusão social à criminalidade, em generalização que compõe relação tão simplista quanto falsa.

Em nome de uma cidade "mais limpa", vale tudo - inclusive e principalmente tratar seres humanos como produtos descartáveis, que devem ser expulsos e despejados em qualquer outro canto, longe do alcance dos holofotes da mídia e dos olhares das elites. Esse é o raciocínio. Não por acaso, o único representante do Estado (poder público) a fazer parte da operação é a Polícia Militar, o que revela com nitidez o viés reacionário e puramente repressivo da iniciativa. Assistência, apoio e amparo aos viciados e moradores de rua? Para quê? São a escória da sociedade, não? Tratamento? Educadores? Médicos? Psicólogos? Ninguém os viu por ali. Nem vai ver.

Porque, afinal, o objetivo não é lidar com um dos mais graves problemas sociais da cidade, mas maquiar a fotografia e transformar a discussão em mero caso de polícia, para alcançar visibilidade midiática - e então finalmente prestar contas e tranquilizar os representativos segmentos da sociedade que não só desejam, mas que defendem fervorosamente a truculência como método cotidiano de administração pública. Como bem destacou no Blog "Outro Brasil" o jornalista Alceu Castilho, "a reportagem do SPTV (exibida no primeiro dia da ação), da Rede Globo, legitima o higienismo. Ela começa exatamente com cenas de limpeza - caminhões de lixo, carro-pipa jogando água nas ruas e trabalhadores da limpeza urbana tirando lixo do local, no centro de São Paulo".

A estratégia de "dor e sofrimento" patrocinada pela Prefeitura - supostamente, a falta da droga obrigaria os usuários a procurar ajuda - tem sido duramente criticada por especialistas das mais diferentes áreas, inclusive em matérias e artigos veiculados pela grande imprensa.

Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, Antônio Carlos Malheiros, desembargador e coordenador da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, escreve que "além das operações policiais, há necessidade de se ampliar a atuação médica, assistencial e do Judiciário para viabilizar o tratamento desses usuários. (...) Um alerta: qualquer que seja a operação, não pode ter um caráter higienista disfarçado. Não precisamos limpar as ruas, mas tratar as pessoas". Também no Estadão, Guaracy Mingardi, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, lembra que "é preciso combater o narcotráfico, que abastece os pequenos traficantes da Cracolândia. Isso sem falar na prevenção. Para mim, essa ação só visa a melhorar a questão urbana, ou seja, esconder pessoas e limpar ruas".

Sempre no jornal da família Mesquita, Marcelo Ribeiro, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que "a estratégia não tem lógica. A sensação de fissura provocada pela abstinência impede que o usuário tenha consciência de que precisa de ajuda. Ela causa outras reações, como violência"; Arthur Pinto Filho, Promotor de Justiça da Saúde, diz que "não conhece estudo científico que comprove que uma pessoa em abstinência procura por tratamento. Sem base teórica e prática para adotar essa estratégia, essa ação pode ser mais uma sem resultado".

Em sua página no Facebook, o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, reforça que "o uso da força para resolver problemas psicossociais é perigoso e enseja ações arbitrárias e autoritárias, que ferem a dignidade humana". Ele manifesta espanto diante da tímida reação às ações truculentas da Prefeitura. "Com a palavra, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Câmara Municipal e a Assembléia Legislativa. Estão todos em férias?", cobra Lancellotti.

Meu receio, padre Julio, é que não sejam apenas as férias. Lamento, mas boa parte dos paulistanos concorda com as medidas higienistas. Apóia a "limpeza". Sustenta a estratégia. O silêncio não é o do descanso - é o da conivência.