sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

254 HOMOSSEXUAIS ASSASSINADOS NO BRASIL EM 2010. TRISTE RECORDE.

A senadora Marta Suplicy conseguiu desarquivar no Senado, no último dia 8 de fevereiro, o projeto de lei (PLC 122/2006), que criminaliza a homofobia e iguala essa prática ao racismo. A proposta, originalmente apresentada pela então deputada federal Iara Bernardi, também do PT de São Paulo, tinha sido aprovada na Câmara dos Deputados em dezembro de 2006 e voltará agora a ser apreciada pelos senadores, inicialmente nas comissões de Direitos Humanos e de Constituição, Justiça e Cidadania, antes que possa ser votada em plenário.

É um passo importante na luta pelo respeito irrestrito aos direitos dos homossexuais, que sofrem com as perseguições e os preconceitos que se revelam em diferentes segmentos da sociedade (poder judiciário, forças armadas, religiões) e que se manifestam em distintos espaços públicos (escolas, ruas e avenidas, shopping centers, clubes e estádios). 

As raízes dessa intolerância estão conectadas ao machismo colonial e ao desejo de manter a supremacia branca no Brasil, principalmente depois da Independência, em 1822, e da abolição da escravatura, em 1888. Em reportagem publicada pela revista Pesquisa Fapesp, o sociólogo Richard Miskolci, estudioso do tema, usa como um dos exemplos desse projeto "branco-machista" o livro "O Ateneu", de Raul Pompéia, um clássico do movimento realista no país. 

Para o especialista, a obra revela como o "fantasma a assombrar os homens de elite parece ser – muito mais do que o desejo pelo mesmo sexo – a possibilidade de ser tratado, ou maltratado, como uma mulher. O romance de Raul Pompeia, datado de 1888, mostra, assim, como ocorre o disciplinamento da masculinidade: há práticas “pedagógicas” violentas, combatendo e desqualificando qualquer traço de personalidade que pudesse ser associado ao feminino. Ou seja, mais que a homossexualidade, o que se pretende conter, pelas lentes de O Ateneu, é a existência de “efeminados”. 

Disposto a colaborar com o debate e acreditando sempre na informação como instrumento de transformação e de superação dos preconceitos, o blog conversou, com exclusividade, com o antropólogo Luiz Mott, paulistano, 65 anos, formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores do Grupo Gay da Bahia (vive em Salvador há 32 anos e é professor aposentado de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, a UFBA). 

Nessa primeira parte da entrevista, ele fala sobre crimes cometidos contra homossexuais, analisa as origens e razões da intolerância e enumera ações para superar a truculência, além de condenar a polêmica a respeito dos kits contra a homofobia produzidos pelo Ministério da  Educação e que deverão, com apoio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), ser distribuídos em seis mil escolas públicas do país. "Esperamos que a presidenta Dilma tenha a sensibilidade necessária e vontade política para avançar no enfrentamento das ameaças que estão colocadas para os homossexuais", diz.

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Aumento da violência contra homossexuais e visibilidade midiática
"De todas as chamadas minorias, os gays, lésbicas e travestis são as principais vítimas da intolerância, porque sofrem preconceito dentro da própria casa. São pais e mães que agridem, que xingam, que chutam, que batem e expulsam os filhos dos lares. É diferente do que em geral acontece por exemplo com judeus, negros ou portadores de deficiências, que são acolhidos e recebem apoio paterno e materno para enfrentar o preconceito. A homofobia institucional e cultural também pesa muito nas escolas, no exército, nas igrejas e na política, que ainda enxergam o gay como marginal. A violência contra os homossexuais portanto vai dos insultos às agressões físicas e aos assassinatos. O Brasil lamentavelmente ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos de homossexuais. Em 2009, foram 198 assassinatos. Esse número chegou a 254 no ano passado. O aumento de violência letal tem sido acompanhado pelo crescimento de casos de agressão física em locais públicos, nas ruas, como aconteceu recentemente em São Paulo e no Rio de Janeiro, e que receberam atenção da imprensa. Mas não se trata apenas de visibilidade maior oferecida pela mídia. Há infelizmente um aumento real do número de casos de mortes e de agressões. Um aspecto positivo a ressaltar é que essa visibilidade, por conta da pressão das paradas e de ações afirmativas, tem levado muitos gays e lésbicas a ter mais coragem de assumir a homossexualidade e a demonstrar carinho em público, a andar abraçados, de mãos dadas. Ao mesmo tempo, esse comportamento provoca a ira e a intolerância dos homofóbicos de maneira ainda mais intensa. Portanto, temos de pensar em três questões principais e conectadas: a visibilidade, o crescimento da violência e a incompetência da polícia e da justiça em reprimir esses atos e em garantir a segurança de todos os cidadãos". 


Formação da sociedade brasileira e caldo de preconceito
"Pois é, como explicar o fato de o Brasil ser campeão mundial de assassinatos contra homossexuais? A cada dia e meio, um gay, lésbica ou travesti é morto barbaramente no país. Penso que esse cenário cruel e inaceitável está relacionado a nosso passado escravista. O Brasil foi dominado por uma minoria branca insignificante, quem mandava aqui eram os 10% de machos brancos, que deveriam manter todas as mulheres e outras raças e culturas como subalternas e submissas. Isso obrigou os machos portugueses e brasileiros a desenvolver um código de extrema violência, de uso constante de armas, para garantir a supremacia dos machos. E isso obviamente fez com que qualquer sinal de efeminação ou de delicadeza por parte de homens fosse imediatamente considerado crime de lesa-sociedade, pois ameaçava a manutenção do projeto hegemônico no país". 


Superação do preconceito
"Vou ser bem objetivo. Acho que essa luta passa por três vertentes principais: educação sexual obrigatória em todos os níveis escolares, para ensinar a diversidade sexual; leis e ações afirmativas, para garantir a punição da homofobia, com o mesmo rigor com que é combatido o racismo; e severidade e rigor da polícia e da Justiça para investigar e punir os crimes cometidos contra homossexuais". 


Kits escolares contra a homofobia
"O governo brasileiro, desde 1996, ainda com Fernando Henrique, e depois no governo Lula, abriu discussões importantes sobre direitos dos homossexuais. Porém, das mais de 600 propostas encaminhadas pela I Conferência Nacional LGBT, realizada em 2008, nem 5% chegaram a se concretizar. Houve boa vontade, mas poucas medidas se efetivaram. Entre as ações afirmativas sugeridas estava justamente a produção de material escolar para o enfrentamento da homofobia. Essa reação de setores mais fundamentalistas reflete a intolerância ainda dominante em amplos segmentos da sociedade. Esse comportamento se manifesta no exército, que proíbe a presença de homossexuais; nas igrejas, sobretudo nas evangélicas neopentecostais, que primam pela intolerância, mas também na católica, que muitas vezes acaba por refletir posição do atual papa, para quem a homossexualidade continua sendo intrinsicamente má. Nesse caso específico dos kits, acho que faltou também por parte do governo e da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) uma divulgação mais bem planejada e articulada desse material. As mais de 200 ONGs ligadas ao tema no Brasil sequer receberam os kits. E poderiam ter sido parceiras e aliadas para responder os ataques e ajudar a desconstruir esse discurso homofóbico, esse pânico que não tem razão de ser. O material vai orientar, foi muito discutido por entidades sérias e responsáveis, tem o aval do MEC".


Projeto que criminaliza a homofobia
"É importantíssimo, fundamental. A iniciativa equipara a homofobia ao crime de racismo, o que é uma coisa elementar. Chutar um negro é crime inafiançável, mas se o chute for dado em um homossexual, a punição vai depender da boa vontade do policial, do delegado e do juiz de considerarem o ato um delito, já que ainda não foi legalmente tipificado como crime". 


Campanha presidencial e resgate de preconceitos
"Penso que houve retrocessos dos dois lados envolvidos na disputa. Tanto Serra quanto Dilma tiveram um receio e medo injustificados de defender temas como aborto e união homossexual, o que é ridículo e lastimável. Espero que tenha sido uma coisa apenas pontual. Toda aquela grita, que ainda permanece, embora em menor escala, me parece ter sido mais uma estratégia eleitoral. E espero que a presidenta Dilma, que recentemente disse ter Marcel Proust como um de seus autores de cabeceira, possa ter a sensibilidade necessária e a vontade política para avançar no enfrentamento das ameaças que estão colocadas para os homossexuais. Esperamos as garantias mínimas, a equiparação da homofobia ao crime de racismo. Como aconteceu na Argentina, desejamos também a aprovação do casamento integral. Não há razão histórica, legal ou ética para impedir que casais de gays e de lésbicas possam ter direitos e deveres idênticos aos consagrados aos heterossexuais". 


No próximo post - segunda e última parte da entrevista com Luiz Mott, que  fala sobre homofobia e religiões, redes sociais e paradas do orgulho gay. 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O CLUBE DOS TREZE, O MOLEQUE ESPERTALHÃO E O EXEMPLO ARGENTINO

(*) Rodrigo Vianna, jornalista. Texto originalmente publicado no blog "O Escrevinhador", em 23/02/2011



Acabo de voltar da Argentina. Passei dias agradáveis em Buenos Aires. Sábado, fim da tarde. Depois de uma longa jornada de caminhadas por Palermo e Barrio Norte, parei com minha mulher num café. Na tela: Newell´s x Lanús. Só o garçon e eu parecíamos interessados na partida. O time de Rosário faturou, com um gol no finzinho: 2 a 1.

Cheguei ao hotel às 10 da noite, e liguei a TV. Já havia outro jogo, ao vivo, na tela: Racing versus Boca. Jogaço. O Racing (time pelo qual tenho simpatia, sabe-se lá porque – era o time do coração de Kirchner, e ele morreu do coração…) jogava melhor. Mas o Boca fez um a zero no contra-ataque, e segurou o resultado.

Acompanhei só o primeiro tempo (até porque me esperava um belo bife de chorizo com purê de papas). No intervalo, entrou propaganda institucional do governo argentino: “obras na província de Chubut”.  Anúncio curto. Fiquei esperando a propaganda privada. E nada. O sinal voltou ao estádio para os comentários e melhores momentos (os locutores argentinos são impagáveis, com aqueles ternos anos 70, com um lencinho pendurado do bolso). Novo intervalo: de novo, anúncio institucional do governo… E só então lembrei: na Argentina, os direitos de transmissão do futebol foram comprados pela TV pública!!! Mais um capítulo da briga entre Cristina Kirchner e as TVs privadas.

Nesse caso, parece que o público saiu em vantagem. Há jogos em horários variados: sábado à tarde, à noite. Domingo à tarde e à noite. Tudo pela TV aberta. Dizem-me que, antes do Estado entrar na parada, os jogos passavam só pela TV a cabo (agradeço se alguém trouxer informações mais detalhadas sobre isso…)  Não sei se os horários já eram assim quando a transmissão estava nas mãos das TVs particulares. Não vou mais longe nos comentários, porque não conheço os detalhes das negociações na Argentina.

Mas claro que lembrei disso tudo quando voltei a São Paulo e dei de cara com essa barafunda no Clube dos 13.

O Corinthians, meu time do coração, acaba de se desfiliar do Clube dos 13. Andres Sanchez, com aquela cara de espertalhão mexicano de filme “B”, foi chamado de “moleque” e “advogado da Globo” pela direção do Clube dos 13.

Pra quem não acompanha a confusão: pela primeira vez, a Globo corria o risco de perder a transmissão do futebol. É que, até hoje, a Globo sempre teve direito de “cobrir” a proposta apresentada por qualquer concorrente. Dessa vez, seria diferente: envelopes fechados seriam apresentados com as propostas. Para transmitir jogos na TV aberta, o lance mínimo seria 500 milhões de reais. Direitos da TV fechada, internet e pay-per-view (quando o telespectador paga pra ter direito a transmissão de jogos específicos): tudo isso seria negociado à parte.

A Globo corria risco sério. Alguns clubes alegavam que, mesmo com valor um pouco menor, valeria a pena aceitar a proposta da Globo, por causa do “tradição” da emissora, da “capilaridade da rede” (a Globo, de fato, tem uma rede bem montada e estruturada em todo o país). O Clube dos Treze, então, estabeleceu uma cláusula razoável: para vencer a Globo, os concorrentes teriam que oferecer ao menos 10% mais do que a emissora da família Marinho. Mas as ofertas seriam feitas no escuro, sem privilégios.

Se a Record oferecesse 650 milhões de reais e a Globo 600 milhões, a transmissão ficaria com a Globo. Mas se a Record oferecesse 800 milhões e a Globo 600 milhões de reais, aí a emissora de Edir Macedo ganharia a disputa.

A situação não era confortável para a TV Globo. Teria que jogar, e tentar ganhar “na bola”. Sem ajuda do juiz. O que fez o Andrez Sanches? Tirou o time de campo. Agiu sozinho? Não. Com ele estariam saindo do Clube dos 13 Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo. Grêmio também poderia seguir esse caminho.

Ou seja: o Clube dos 13 (que, apesar do nome, representa duas dezenas de clubes) está em decomposição. E ele é que tem o direito de negociar as transmissões em nome dos clubes.

A barafunda está criada! Os cinco ou seis dissidentes vão negociar à parte com a Globo? E se os outros fecharem com a Record?  

Como disse um jornalista amigo meu: aos 44 do segundo tempo, o jogo estava zero a zero. Pênalti pra Record. Aí alguém apaga a luz do estádio. “Alguém”! Quem seria? Andres apagou a luz sozinho?

Os espertalhões mexicanos normalmente atuam em parceria com um sócio rico do outro lado da fronteira. 

Andres conseguiu (será?) o estádio para o Corinthians. A CBF (que é parceira da Globo, e não se dá tão bem com a atual dioreção don Clube dos 13) tirou o Morumbi da Copa. Retaliação contra o São Paulo F. C. O time do Morumbi não aceita cartas marcadas na negociação. Queria entregar os direitos a quem pagasse mais. Seria a decisão “capitalista”.

Mas o Brasil é terra de “capitalistas de araque”. Capitalismo sem concorrência.

A Globo perdeu o direito às Olimpíadas porque lá vale o óbvio: quem paga mais leva. No futebol brasileiro, valem os arranjos dos poderosos de outros tempos com os espertalhões fajutos.

O futebol é algo tão sério para o brasileiro que o governo federal deveria intervir nessa história. Intervir, não: “arbitrar”. Já que a concorrência não vale, deixemos o Estado cuidar disso.

Não digo que precisemos imitar a Argentina, com jogos transmitidos pela TV pública. Mas que tal a TV pública brasileira entrar na disputa, montar um pacote razoável de horários, e depois vender cada horário para uma emissora privada?

Seria o fim do monopólio. E o fim dos espertalhões.
Mas quem acredita nisso…
O mais provável é que se estabeleça a confusão. Isso a 3 anos da Copa. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

RUMO AO FUTURO


Fim de semana no Nordeste antecipa aventuras de um admirável mundo novo

(*) Roger Ventura, de Natal, especial para o Blog do Chico



Na estrada entre Natal e Macaíba,[1] aonde iria me mostrar naquela tarde de sexta, 21 de janeiro, a quantas andava a construção da escola do Campus do Cérebro, espécie de utopia em fase de materialização, Miguel Nicolelis atende à ligação de um repórter do Sunday Times. Há pouco recebera uma mensagem de um admirador americano que lhe indagava como poderia ter acesso ao trecho de seu livro, Beyond Boundaries: the new neuroscience of connecting brain with machines – and how it will change our lives, que a Scientific American, revista com 6 milhões de leitores no mundo todo,  acabara de publicar. O livro será lançado nos Estados Unidos em 15 de março próximo e, traduzido pelo próprio autor para o português, tem lançamento previsto no mercado nacional para o final de maio com o título Muito além de nosso Eu, enquanto o subtítulo traduz literalmente o original inglês.
Ele estranhara a informação do admirador, afinal a publicação fora acertada para a edição impressa da revista que seria lançada só no começo de fevereiro, mas outras mensagens chegavam insistentemente por e-mail não deixando dúvidas de que algo fora de fato publicado. Ah, ok! Mistério desvendado: saíra online o material que estaria nas páginas impressas no começo de fevereiro.
Estamos ali conectados com a velocidade do mundo da web, suas infinitas redes entrecruzadas, suas infindáveis teias plasticamente se fazendo e refazendo a cada instante, no meio do caminho para uma cidadezinha perdida no Nordeste (perdida? Isso foi antes de Miguel encontrá-la!). Esse é um mundo, ou melhor, uma reunião de mundos - o físico, da estrada recém-asfaltada daquele pedaço de Brasil distante que poucos brasileiros conhecem, e o virtual, da troca instantânea de mensagens por um vasto espaço cultural humano, sem fronteiras territoriais - na qual Miguel, que alcançará os 50 anos de vida em 7 de março próximo, sente-se completamente à vontade.
Redes são, afinal, o domínio por excelência desse genial neurocientista brasileiro que decifra incansavelmente mistérios do cérebro, vislumbra e vai construindo com sua equipe avançadíssimos sistemas e mecanismos para conectá-lo diretamente a máquinas sofisticadas que possam responder com precisão às determinações desse cérebro ­– quer dizer, o de primatas e, em especial, num futuro próximo, o do mais avançado deles, o Homo sapiens
Por essas pesquisas ele tem hoje indiscutível presença internacional numa ciência feita para valer. E são as redes neuronais que, primeiro e acima de tudo, fazem parte dos domínios desse professor na Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos, criador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) e inventor desse Campus do Cérebro que vai se erguendo em Macaíba. 
Digamos, para explicar inclusive um pouco mais a referência à decifração de mistérios do cérebro, que as redes neuronais constituem um campo sobre o qual a percepção aguda de Miguel permitiu, além das experiências práticas na fronteira mais avançada da pesquisa da interface cérebro-máquina, a proposição de novas vias teóricas para produzir saltos no debate quase secular entre localizacionistas e relativistas da neurofisiologia.  Miguel adere sem vacilar à visão dos relativistas, que jamais tomarão um neurônio isolado como unidade do funcionamento do cérebro, e trabalha duro pelo desenvolvimento dessa abordagem (seu livro, entre outros méritos, vai oferecer uma visão cristalina desse embate científico de enormes consequências até para o tratamento que a medicina dispensa a nosso pobre/rico cérebro).
De todo modo, quando digo que redes são o campo próprio de Miguel, falo também de outros tipos, incluindo aquelas inventadas para aparar a bola, indiferentes à explosiva alegria e à decepção, raiva ou profunda tristeza, que sempre se distribuem democraticamente pelas arquibancadas do estádio ante o gol, admitam isso ou não os torcedores. Tudo bem, torcedores não estão mesmo ali para admitir nada, mas para torcer e enlouquecer um pouco, saudavelmente, por um par de horas. Refiro-me também a uma rede toda verde da Sociedade Esportiva Palmeiras (tem gosto futebolístico para tudo neste mundo, perdoemos Miguel!), pendurada na varanda de seu apartamento em Natal, aberta para uma visão deslumbrante do mar potiguar. Visão que clama, acreditem, por um reverencial silêncio de pura celebração da vida, pelo fato simples e inescrutável de existirmos ali, naquele instante – e com a consciência dessa existência. O curioso é que, ao ouvir uma vez o professor Nicolelis dizer “agora vou para a rede do Palmeiras” (terei lido isso no twitter?), eu o imaginei sentando-se à frente do computador para tecer comentários apaixonados sobre o desempenho de seu time naquele dia. Ele realmente posta, de vez em quando, comentários numa rede virtual da torcida alviverde, mas era daquela bendita rede de algodão escandalosamente verde que falava. “Ninguém é perfeito, suspirou a raposa”, naquele doce libelo sobre a amizade do escritor-piloto francês desaparecido numa travessia do deserto. O pobre do Exupéry, aliás, foi execrado, lançado aos leões pela intelligentsia nativa durante anos só porque um néscio, um mentecapto qualquer lá nos anos 60, resolveu obrigar as candidatas a miss, desafiadas pela pergunta “qual o seu livro de cabeceira?”, a responder sempre: O pequeno príncipe.
Enquanto segue no carro para Macaíba nessa tarde quente, Miguel expõe detalhadamente para o repórter perguntador do Sunday, num inglês para gringo nenhum botar defeito, mas friendly ao mesmo tempo para ouvidos tupiniquins, o conteúdo geral do livro já anunciado na Amazon e em fase final de preparação aqui na Companhia das Letras. Emerge em frases límpidas e bem construídas amostras preciosas de toda a revisão que fez de 100 anos da neurociência, com destaque para a oposição sempre polêmica entre localizacionistas, os que insistem em colocar estritamente em um pequeno grupo de neurônios no sítio A, B ou C a função cerebral xis, e relativistas, aqueles cientistas que foram percebendo e, passo a passo, desenvolvendo o conceito de rede neuronal - que o próprio Miguel terminou lançando a um novo e decisivo patamar.
O repórter quer saber agora sobre os experimentos no campo da interface cérebro-máquina. Aos poucos, roedores, macacos e pacientes humanos vítimas do mal de Parkinson, colaboradores todos de pesquisas fascinantes, parecem tomar forma dentro do carro e seguir para longe, aspirados por uma irrefreável curiosidade vinda do hemisfério norte. Personagens a essa altura bastante midiáticas emergem das palavras do neurocientista: ali está a estrela de 2003, Aurora, com sua revelada capacidade para mover um braço robótico só com a intenção do gesto, impelir esse braço a jogar o game posto na tela do computador com a força de seus neurônios, fazê-lo realizar por ela, em suma, a tarefa que lhe trará gratificação certa. E ali está Idoya que, em 2008, deixou o mundo boquiaberto e encantado ao conseguir fazer, desde uma esteira num laboratório da Universidade Duke, um robô mimetizar seus movimentos lá do outro lado do mundo, no Japão, e, por fim, quando os pesquisadores desligaram sem que ela esperasse sua esteira na Carolina do Norte, fazê-lo seguir andando só com a força de seu pensamento e de seu olhar.
Miguel explica ao jornalista inglês como a atividade elétrica dos neurônios pode ser convertida em códigos matemáticos para movimentar braços e pernas mecânicos, descreve os pequenos dispositivos introduzidos superficialmente no córtex cerebral, os ICM, que captam os sinais da atividade elétrica dos neurônios e os transformam em comandos em tempo real, tornando assim efetiva a conexão entre o cérebro e máquinas postas no ambiente. Fala da evolução técnica dos eletrodos (os dispositivos) bidimensionais para os tridimensionais, que lhe possibilitarão passar da marca de registro simultâneo da atividade elétrica de 600 para 60 mil neurônios. Aborda o conceito de interface bidirecional, que dará ao cérebro instantaneamente o feedback daquilo que a máquina está captando do ambiente (ele gosta do exemplo de que vamos poder experimentar no futuro, e com extraordinária intensidade, a sensação táctil de uma caminhada em Marte que nos virá de um robô posto a andar por lá). A exposição inteira é clara, calma, com as acelerações e pausas naturais de uma aula para turma conhecida - ou mesmo de uma conversa à vontade.
E entram nessa conversa o exoesqueleto, o sonho de colocar um paciente brasileiro tetraplégico para andar com o apoio dessa veste especial em 2014, detalhes científicos e técnicos de como e por que o pensamento, a vontade, o desejo do indivíduo, participam desse empreendimento do voltar a caminhar (Walking again é o nome desse projeto do exoesqueleto que tem suporte de um consórcio internacional).
A ligação cai quando já estamos entrando no Campus do Cérebro. Vejo de cara no terreno imenso (100 hectares) três grandes edifícios que estão sendo erguidos. Juntos, vão somar 14 mil metros quadrados de área construída. Ouço as explicações de Miguel: 1.400 crianças, da pré-escola ao último ano do ensino médio, receberão ali educação pública, gratuita e integral de alto nível. Com o passar dos anos, a matrícula começará quando as crianças estiverem ainda na barriga de suas mães, que terão atendimento pré-natal no centro de saúde materno-infantil, um elemento, assim como os berçários, sempre presente nos empreendimentos educativos realizados ou sonhados pelo neurocientista (a propósito, há outra experiência educacional de sua lavra já em curso em Serrinha, na Bahia, que fica para um próximo relato).
Serve certamente como campo de provas para este ousadíssimo empreendimento, cujos fundamentos arquitetônicos se mostram ante meus olhos, a experiência pioneira desse sistema de educação científica (neste caso, complementar ao ensino regular) já desenvolvida há quatro anos nas unidades da Escola Alfredo J. Monteverde de Natal e Macaíba, respectivamente para 400 e para 600 estudantes. Marginalmente percebo o que parece ser uma conspiração surda para agradar o formulador e comandante geral desse ambicioso projeto: todos os operários que trabalham na construção dos prédios ao cair daquela tarde vestem macacões verdes. É puro acaso, sei – e sorrio de leve.
Procurando bons ângulos para ver melhor o conjunto de prédios, circulamos com cuidado por sobre estreitas faixas de terra que delimitam áreas escavadas para as fundações de uma outra construção, enquanto Miguel vai deixando escapar em falas rápidas, olhos azuis brilhantes, partes de seu sonho: as crianças vão se revezar em turnos entre a escola pública regular e os laboratórios; cada um com seu I-Pad, eles irão desvendando e construindo novas formas de aprender e conhecer. Não sei se é real minha percepção, mas escuto sonoridades de intensa emoção em sua voz quando ele aborda esse passo a passo concreto no campo da educação para fazer da ciência um agente de transformação social. Esse é, aliás, seu mantra, o slogan que repete incessantemente desde que retornou (ainda parcialmente) ao Brasil em 2003, determinado a por de pé o IINN-ELS e uma dúzia de outras iniciativas similares, surdo e estudadamente indiferente às vozes dos céticos.
Um dia depois dessa visita ao Campus do Cérebro eu teria uma amostra privilegiada das novas formas de aprender a que Miguel se referira. Da ampla varanda de seu apartamento, I-Pad em punho, ele me falaria de um programa baratíssimo de astrofísica que tem instalado dentro do reader (“menos de um dólar”), me fornecendo detalhes, mostrando o que seria possível fazer. E então viajo até a lua de Natal que vejo bem ali à minha frente, vou me acercando aos poucos, suas crateras tornam-se mais e mais visíveis, os nomes dos sábios de todos os tempos que as batizam vão aparecendo, até que enxergo a pequena, única cratera que carrega o nome de um brasileiro, o grande herói de Miguel: Alberto Santos Dumont. Ali está ela bem em cima de um pequeno ponto do istmo que divide os mares Imbrium e Serenitatis.   O cientista atravessado por intensas preocupações sociais me diz: “Isso é conhecimento que estava em mãos dos astrofísicos, agora ao alcance de qualquer criança brincando de ver o céu. Não dá para ficar amarrado às velhas fórmulas da escola pública, são imensas as novas possibilidades do aprender bem e com prazer para saber e poder transformar a realidade”. Eu quero ver Andrômeda. Depois exploro diferentes pontos do universo alcançável por telescópios numa viagem virtual extraordinária, maravilhosa. Mas isso é o dia seguinte.
Por ora observo os três blocos implantados paralelamente, que serão integrados por jardins e passarelas onde, em breve, crianças estarão circulando, brincando, aprendendo, crescendo - com suporte sólido para sonhar novos mundos. Miguel parece antever o que vai descrevendo do futuro próximo e, pelo brilho tão particular de seus olhos visionários, vejo quando de vida, intensa e apaixonada, está empenhada nessa criação de futuros – no plural, sim, porque se trata do futuro de milhares de crianças de Macaíba, talvez de milhões de outras espalhadas pelo Brasil se essa experiência influenciar muitas mais no sistema educacional brasileiro, e, claro, do futuro do país como nação, pelo que projetos assim podem mover do potencial criador de seu povo para a construção do conhecimento. Uma construção com gigantescas consequências, como o mundo inteiro sabe.
Vamos até a área do terreno delimitada e já preparada para receber as fundações do Instituto de Neurociência que fará parte desse campus. Vejo mais ao longe a área reservada para o Instituto de Estudos Avançados, que abrigará o supercomputador doado pelo governo suíço, desembarcado em Natal em dezembro passado, vindo diretamente da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL).  A máquina um BlueGene/L, da IBM, com capacidade de 22 teraflops, pode processar e analisar informações em tempo real da atividade elétrica, magnética e metabólica do cérebro humano, além de fazer 46 trilhões de operações por segundo. Mas ele será transformado num BlueGene/Q, com capacidade para 1,2 pentaflop, o que o tornará uma das 10 máquinas mais velozes do planeta.  Pesa duas toneladas e seu custo está em torno de R$ 20 milhões (antes do upgrade). Miguel conta que poucos países do mundo têm um equipamento igual e vislumbra o supercomputador sendo utilizado também por várias universidades e institutos federais de pesquisa, mesmo escolas da educação básica, em pesquisas e simulações na área de matemática, física e outras disciplinas, além de campos transdisciplinares, como o de estudos do clima. Os softwares que o acompanham permitem o treinamento na operação do supercomputador, e o neurocientista já imagina alguns operadores seguindo de Natal à Suíça para estudar o funcionamento de outros supercomputadores, depois de se tornarem craques neste.  O BlueGene/L será, a partir do segundo semestre deste ano e certamente por algum tempo, o computador mais rápido da América Latina e um dos mais potentes do hemisfério sul.
Deixamos o Campus do Cérebro ao cair da tarde (escurece muito rapidamente na zona equatorial, Miguel me lembrou). No resto do fim de semana eu iria ouvir muito mais sobre os planos desse cientista brasileiro que alia a uma rara capacidade empreendedora e realizadora o tônus mental de sonhador incurável, que lhe faz tirar sempre uma nova ideia de dentro da que acabou de expor, numa espécie de moto contínuo verdadeiramente inesgotável. E isso se daria entre momentos de confraternização com seus companheiros de viagem, maravilhosos almoços e jantares numa terra onde os frutos do mar se oferecem numa abundância alucinada para deleite de comilões como eu, relatos hilários das aventuras de Miguel e colegas nos tempos da residência médica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP), risos e gargalhadas.
Deixei Natal no fim da manhã do domingo, 23 de janeiro, com a certeza de que a maior das muitas notáveis características de Miguel Nicolelis é uma coragem desmedida para formular e criar concretamente futuro no Brasil. Que sorte a nossa que ele seja brasileiro!



[1] *Macaíba, de acordo com a Wikipedia,  fica às margens do Rio Jundiaí a 14 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte e integra a sua região metropolitana. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2010 sua população foi contada em 69 538 habitantes numa área territorial de 512 km².

sábado, 19 de fevereiro de 2011

DITADURA MILITAR - AS HISTÓRIAS QUE A FOLHA NÃO CONTA

Retomo e desenvolvo neste texto alguns posts que escrevi no twitter. O tema merece.

Caderno especial publicado pela Folha de São Paulo neste sábado, 19 de fevereiro, sobre os 90 anos do jornal traz um breve relato a respeito do papel desempenhado pela publicação durante a ditadura militar. O texto adota a estratégia da afirmação que parece assumir, mas que acaba por sempre oferecer uma "nuance", uma "justificativa", uma "ressalva" ou um "mas...", suavizando e pulverizando o que se relata. 

A Folha admite que apoiou o golpe - "como praticamente toda a grande imprensa brasileira". É justificável o comportamento "maria vai com as outras, só porque os outros foram eu embarco também?"

O texto diz ainda que "jornal submeteu-se à censura, acatando proibições", mas ignora benefícios alcançados por conta do silêncio conivente. Será que não foi muito mais auto-censura, sem necessidade de intervenção direta dos militares, justamente porque o jornal compreendeu com bastante clareza o que era permitido e o que era proibido dizer? A Folha nunca precisou ter censores em sua redação. 

A matéria deste sábado alega que a redação da Folha da Tarde foi entregue a jornalistas entusiastas da linha dura como reação à presença de militantes da ALN. Será mesmo? Seria então aceitável transportar para o jornal a guerra suja dos milicos e permitir a atuação de agentes infiltrados no jornal? 

No final, diz o texto que "segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usadas por agentes da repressão para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros". O que os militantes contam, desde sempre,  é que a empresa emprestava viaturas de reportagem para transportar opositores do regime para centros de tortura. 

Vejamos o que escreve o jornalista Jorge Claudio Ribeiro, em passagem do livro "Sempre Alerta - Condições e contradições do trabalho jornalístico", da editora Olho D´Água, em parceria com a Brasiliense:

"A partir de 1969, a FT (Folha da Tarde) fez a festa da direita, atuando como porta-voz do regime militar e chegando até a ser aparelhada pela polícia. Lourenço Diaféria lembra como foi essa oscilação: 'A FSP sempre foi um jornal ambíguo; botava uns caras de direita, outros de esquerda. Já a FT era feita por gente ligada à ditadura. A empresa tinha ligações com delegados do Dops".

Em outro trecho da obra, Ribeiro cita a socióloga Gisela Taschner, autora de "Folhas ao Vento", que lembra que "jogando sempre dos dois lados no campo político nos marcos do capitalismo e, na medida de suas possibilidades, diversificando a linha de produção, mesmo com alguns desacertos do ponto de vista de segmentação, o grupo consolidou seu império. Para qualquer tendência de mercado ou da política que se esboçasse, ele tinha um produto pronto para ser ativado. Nos momentos de opacidade apostava dos dois lados. Tinha montado um aparato para seguir os ventos e tirar proveito deles, qualquer que fosse a sua direção".

Eis o famoso jornal-camaleão, a mudar de cor de acordo com a conjuntura política, que se cala e sustenta o projeto de terror da ditadura nos anos de chumbo para em seguida tentar se redimir e se consolidar como o porta-voz dos ventos da redemocratização no país, quando a tirania do regime militar já estava com os dias contados. Oportunismo ideológico de mercado, não? 

Em março de 2009, em ato de repúdio contra a Folha, que havia em editorial classificado a ditadura de "ditabranda", o ex-preso político Ivan Seixas lembrou que "o jornal colocava carros à disposição da tortura, colocou um jornal inteiro à disposição do DOI-CODI" (clique aqui para ver o vídeo do depoimento). Na época, Ivan chegou a enviar cartas para a Folha (jamais publicadas), lembrando que a empresa "empregava carros para nos capturar e entregar para sessões de interrogatórios, como sofremos eu e meu pai. Ninguém me contou, eu vi carro da Folha na porta da OBAN/DOI-CODI.” (clique aqui para ler artigo publicado na Agência Carta Maior). 

No Observatório da Imprensa, em resenha do livro "Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988", de Beatriz Kushnir, a jornalista e à época mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Juliana Sayuri Ogassawara destaca que "a Folha da Tarde pôde ser considerada um porta-voz, o "diário oficial" da Operação Bandeirantes, a Oban, por publicar informes oficiais do governo como se fossem reportagens. Além disso, a partir de 1969 passaram a circular pelas redações os setoristas, isto é, jornalistas credenciados e vinculados à seara policial, dentre os quais se destacam o repórter e major da PM Edson Corrêa e o editor de Internacional e agente do Dops Carlos Antonio Guimarães Sequeira".

Como se vê, há várias outras histórias sobre as relações da Folha com a ditadura militar. Mas o jornal crítico, plural e apartidário não dá conta dessas outras versões.

Mais uma vez, quem defende a tese da "ditabranda" tenta mudar a História e apagar a memória dos anos de chumbo no Brasil.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

LEMOS POUCO? POIS É. A IMAGEM VENCEU.

Tatiana Belinky, escritora de livros infantis e primeira roteirista do "Sítio do Picapau Amarelo", costuma dizer em suas entrevistas que as crianças devem ser desde muito cedo convidadas a participar do encantador mundo da leitura. Sugere que os pais não apenas contem histórias para seus filhos, tarefa fundamental, mas que deixem os livros soltos e ao alcance dos pequenos, em prateleiras bem baixas e estrategicamente espalhadas pela casa, para que a criança possa parar, escolher sua obra preferida, tocar e trocar o livro, virá-lo de cabeça para baixo. É ali que eles vão se deparar com suas princesas, príncipes, heróis, monstros, medos, agonias, desejos, vitórias e frustrações.

Não importa, sugere Tatiana, se o jovem leitor vai contar sua história do fim para o começo, se vai começar pelo meio, se vai pular páginas, se vai prestar mais atenção às figuras, se vai costurar a narrativa de forma diferente em relação ao projeto original idealizado pelo autor. Para ela, leitores se formam sem imposições, a partir do contato permanente e natural com as histórias, levando em consideração o exemplo inspirador e motivador, o espelho dos pais que valorizam os livros, estimulam a criatividade, facilitam o acesso e valorizam o hábito e o mergulho livre no mundo da fantasia, fomentando imaginação que viaja solta, sem amarras.

Esse, no entanto, parece ainda não ser o caminho percorrido por parcela representativa dos brasileiros, infelizmente. A pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", desenvolvida e divulgada em 2008 pelo Instituto Pró-Livro (entidade sustentada pela Câmara Brasileira do Livro, Sindicato Nacional de Editores de Livros e Associação Brasileira de Editores de Livros) revela que o país tem cerca de 95 milhões de leitores (pessoas que declararam ter lido pelo menos um livro nos três meses anteriores à realização do levantamento), contra 77 milhões de não leitores. Situação crítica de quase empate. Em média, cada brasileiro lê quatro livros por ano (estima-se que na Argentina sejam 12 livros, ou seja, três vezes mais) e compra apenas 1,2 livro anualmente.


No Brasil, leitura não é relevante
"Não dá para negar que tem havido avanços importantes nos últimos anos e que os brasileiros estão lendo mais. Mas o país está longe de ser uma nação de cidadãos leitores e há muito chão pela frente até que se chegue lá. A má notícia é que o Brasil, apesar dos recentes avanços, ainda não reconhece a questão do livro e da leitura como algo realmente importante e estratégico para seu presente e, sobretudo, para construir outro tipo de futuro", escreve Galeno Amorim, diretor do Observatório do Livro e da Leitura, na introdução de "Retratos da Leitura no Brasil", obra que oferece os detalhes da pesquisa citada, além de reflexões produzidas por diversos especialistas no assunto.

Ainda de acordo com o levantamento, 49% dos leitores dizem que o hábito foi influenciado pela mãe; para 33%, a grande incentivadora foi a professora. Sobre as motivações, 63% afirmam ler por prazer, gosto ou necessidade espontânea; 53%, por atualizações culturais e conhecimentos gerais e 43% lêem por conta de exigência escolar ou acadêmica (eram permitidas respostas com até três opções). O tempo gasto com a leitura distribui-se da seguinte forma: 2% investem mais de dez horas por semana na atividade; 10% dedicam de quatro a dez horas semanais; 51% passam de 1 a 3 horas semanais lendo; e 34% lêem menos de uma hora por semana. Ou seja: 85% investem menos de 3 horas por semana em leituras. Três em cada quatro brasileiros não frequentam bibliotecas. No grupo dos não leitores, 29% dizem não ter o hábito por falta de tempo; 28% não são alfabetizados; 27% não gostam de ler e 7% afirmam não ter dinheiro para investir em livros.


Não é difícil decodificar os recados transmitidos pelos números e perceber que há uma infinidade de obstáculos à leitura no Brasil: preços dos livros, falta de bibliotecas, analfabetismo, equívocos de distribuição, dificuldades em compreender o que se lê, aversão que se cria quando a tarefa é obrigatória e imposta, políticas públicas não adequadas, não incentivo das famílias. "Tanto é que 85% dos não leitores nunca foram presentados com livros na infância, enquanto no universo dos considerados leitores, 51% receberam livros como presente. Nos lares dos não leitores, 63% dos informantes nunca viram os pais lendo", avalia Lucília Helena do Carmo Garcez, professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), em artigo que faz parte do livro "Retratos da Leitura no Brasil". A pesquisadora completa o raciocínio: "como a leitura faz variadas solicitações simultâneas ao cérebro, é necessário desenvolver, consolidar e automatizar habilidades sofisticadas para pertencer ao mundo dos que lêem com naturalidade e rapidez". E essas competências nem sempre estão presentes no universo intelectual do brasileiro.


A supremacia da imagem
Todas essas variáveis são extremamente importantes e precisam ser consideradas com seriedade por educadores, especialistas, estudiosos do assunto e por formuladores de políticas públicas de incentivo à leitura. Mas penso ser necessário agregar mais um fator a esta lista, de natureza mais filosófica e diretamente ligado ao momento histórico que vivemos e ao atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista. Quando pensamos nos recursos que mobilizamos para construir repertório de conhecimentos e na concorrência estabelecida entre palavras e narrativas imagéticas, é preciso admitir que o segundo grupo prevalece, cada vez mais. A leitura perdeu seu trono especial de admiração e reverência, teve seu espaço social de reconhecimento bastante abalado e minimizado. Foi desbancada pela imagem. Tornou-se artigo de segunda categoria, a quem recorremos "quando e se temos tempo". 

Dois exemplos emblemáticos do que afirmo: em sala de aula, quando o professor sugere uma obra literária, invariavelmente recebe como réplica a pergunta "mas já tem em DVD?". Outra: o jovem que liga para o colega na sexta-feira à noite para convidá-lo para a balada será capaz de compreender perfeitamente e com muita tranquilidade se o interlocutor responder "OK, vamos, mas passe por aqui depois do último capítulo da novela". No entanto, ficará muito bravo e inconformado, achará mesmo um absurdo e despropósito se, de outra forma, o convidado disser "me pegue em uma hora, estou no último capítulo de um livro ótimo". Como assim o sujeito vai perder uma hora da balada para continuar a ler? É um tonto, um nerd mesmo!

O professor e jornalista Eugênio Bucci afirma, no debate "Jornalismo Sitiado" (disponível em DVD), que "somos a primeira civilização autorizada a acreditar naquilo que nossos olhos vêem, como se a imagem fosse a exata reprodução da realidade, e não uma representação dela". As razões dessa mudança? Somos uma sociedade marcada pela velocidade e aceleração, pelo tudo ao mesmo tempo aqui e agora, pela exigência sistemática de não desperdiçar um segundo sequer, pela pressa levada às últimas consequências, pela máxima que diz que "tempo é dinheiro", pelos simulacros e representações. E, com as imagens, as narrativas já nos chegam praticamente prontas, mais acabadas, previamente estabelecidas. É o prato feito, o lanche rápido. Basta pedir pelo número. Não é preciso pensar muito. São mais facilmente absorvidas e digeridas, incorporando-se rapidamente a nossas visões de mundo - e ajudando a modificá-las e construí-las. De que forma? É outra história. 


Instrumentalização e minimalismo 
Já a leitura é um exercício de paciência, persistência, concentração, solidão, construção e reconstrução. Volto, retomo, reorganizo, preciso lembrar o que li ontem, idealizo os personagens da maneira que bem entendo, faço anotações, vou pesquisar mapas e nomes citados naquelas páginas, costuro lenta e gradativamente os acontecimentos e seus significados. E as histórias nascem também a partir da minha recepção, das minhas singularidades. Não é fácil ler. O prato não vem pronto - ao contrário, precisa ser cuidadosamente escolhido e montado. É mais refinado. Em tempos de "menos é mais", no entanto, ouvimos exigências de textos mais "suscintos, mais curtos", e nos deparamos com a instrumentalização do ato de ler. Para que serve esse texto? Que vantagem imediata consigo com ele? Que benefícios materiais instantâneos posso obter? Professor, vai cair na prova? É mais importante ter do que ser. São perdidos de vista o desafio proporcionado pelo contínuo aprendizado, a saga do conhecimento, o encontro com a alma humana, a beleza do prazer curioso - e lentamente instigante e revelador.  

Não se trata, atenção, de demonizar uma e endeusar outra. Não tenho problema algum em admitir que, na sexta-feira, dia 11 de fevereiro, acompanhei por várias horas, sem tirar os olhos da telinha, o triunfo da revolução no Egito. Era preciso materializar aquele acontecimento histórico, por meio das imagens. Ao mesmo tempo, aguardei com ansiedade a chegada dos jornais impressos e revistas do final de semana, com reportagens de fôlego, artigos e análises mais aprofundas sobre o tema. Com as duas em cena, há equilíbrio. O que acontece é que, cada vez mais, a imagem é cultuada e reificada, quase a única referência de construção de visão de mundo, enquanto a palavra é esquecida e abandonada. No centro dos lares, a televisão transformou-se no Príncipe Eletrônico, como identificou o sociólogo Octavio Ianni.  

Essa é a questão - e uma diferença primordial: a imagem, ainda mais em eras de celebridades e de espetáculo arrebatador, provoca sensações. "Quem presta atenção à tela se dedica a ela, vive uma dependência crescente dela, vincula suas expectativas, sua economia emocional e intelectual a ela. Assim como o drogado aplica injeções de heroína, uma sociedade que depende da tela se expõe a bilhões de choques imagéticos. O choque singular é mínimo, quase imperceptível e não faz mal. Bilhões, no entanto, destroem justamente a atenção que elas atraem magneticamente", afirmou o filósofo alemão Christoph Türcke, em entrevista publicada pela Folha de São Paulo em setembro do ano passado.  A leitura permite respirar, pede que coloquemos o pé no freio para desacelerar. E nos convoca ao exerício da razão e da reflexão - privilégios do Homo sapiens.

Falar e dizer
Enfim, será possível à leitura resgatar o trono que já ocupou? Difícil. Mas a batalha com esse objetivo é imperativa, pois, como destaca Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura de 2010, no texto "É possível pensar o mundo moderno sem o romance?" (no livro "A cultura do romance", organizado por Franco Moretti), "ler boa literatura é divertir-se, com certeza; mas, também, aprender, dessa maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através das obras de ficção, o que somos e como somos, em nossa integridade humana, com os nossos atos e os nossos sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das relações que nos ligam aos outros, em nossa presença pública e no segredo da nossa consciência, essa soma extremamente complexa de verdades contraditórias - como as chamava Isaiah Berlin - de que é feita a condição humana". O autor é cortante: "uma pessoa que não lê, ou que lê pouco, ou que lê apenas porcarias, pode falar muito, mas dirá sempre poucas coisas, porque para exprimir-se dispõe de um repertório reduzido e inadequado de vocábulos". 


Não tem jeito: para ler o mundo, é preciso ler bons livros.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

REVOLTA ÁRABE: ORIENTE MÉDIO NÃO TERÁ PAZ SEM DEMOCRACIA

Entrevista originalmente publicada pela Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), em 15/02/2011. Reprodução autorizada.


“Se Israel for inteligente, se for governada por pessoas inteligentes, tem que perceber que acordos firmados com ditadores não se sustentam. É melhor para Israel viver cercado por países democráticos do que por ditaduras supostamente amigas. É muito mais justo e muito mais duradouro também”. A opinião é do vice-presidente do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe) e professor da Unicamp, Mohamed Habib, que, em entrevista à Carta Maior, analisa as causas e possíveis consequências dos levantes populares no Egito e em outros países árabes. Para ele, o principal combustível dos protestos no Egito foram as péssimas condições de vida da maioria da população – mais de 40% vivendo abaixo da linha da pobreza.

O que está acontecendo agora, defende ainda, traz um recado muito importante para os líderes dos EUA, Israel e Europa: só haverá paz e prosperidade no Oriente Médio com democracia e qualidade de vida.

Carta Maior: Qual sua avaliação sobre os recentes acontecimentos no Egito e seus possíveis desdobramentos?

Mohamed Habib: O que aconteceu nas últimas semanas no Egito acabou escrevendo uma nova página na história do Oriente Médio. A queda do presidente Mubarak abre caminho para a democratização da região. As ondas de protestos que estamos vendo agora podem se propagar para outros países de modo mais ou menos pacífico e em ritmos diferenciados. Isso vai depender, em grande parte, da qualidade de vida da população de cada país. Quanto pior for essa qualidade de vida, mais rápida pode ser essa propagação.

O que ocorreu no Egito mostra que as demandas sociais falam muito mais alto do que as questões políticas e ideológicas. O que fez com milhões de pessoas fossem para às ruas não foi o fato de o país ter um ditador há 30 anos no poder, mas sim as condições de vida da maioria da população. A paciência acabou, principalmente entre os estudantes e jovens universitários que não encontram uma perspectiva de futuro.

Carta Maior: Quais são hoje as condições de vida da maioria do povo egípcio?

Mohamed Habib: O Egito tem hoje mais de 40% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza. Ou seja, pessoas vivendo com menos de dois dólares por dia. Esse problema agravou-se muito nos últimos anos. Há quatro ou cinco décadas, uma libra egípcia valia cerca de 4 dólares. Hoje, um dólar compra seis, sete libras. Houve uma desvalorização assustadora da moeda egípcia. Em tempos passados, o Egito não tinha muitos ricos, mas também não havia miseráveis. Hoje, além dos mais de 40% vivendo abaixo da linha da pobreza, temos alguns grandes bilionários, cuja riqueza foi adquirida de modo ilícito por meio da apropriação do poder por um grupo privado bastante pequeno. Esse grupo reúne, entre outros, a família de Mubarak, alguns generais e empresários que fundaram o Partido Nacional como uma fachada. Eles se apropriaram da riqueza do país.

O modelo econômico vigente nestes últimos anos é o neoliberal, com suas práticas de economia aberta. É um capitalismo mais selvagem do que o praticando na América Latina, com muita corrupção. O empobrecimento que atingiu o país é resultado direto da aplicação desse modelo. Um modelo acompanhado de uma ditadura com bem mais do que 30 anos de vida. Com Sadat, é bom lembrar, foram outros 11 anos e Mubarak era vice dele.

Carta Maior: Como, na sua avaliação, o Egito pode superar esse quadro de pobreza e desigualdade?

Mohamed Habib: Estamos falando de um país que tem um grande peso econômico e muitos recursos para sustentar o seu povo. O Egito tem o Canal de Suez, que liga o Ocidente ao Oriente, que é uma grande fonte de recursos. Tem ainda muito petróleo e gás natural. A atividade turística é fantástica, a maior do Oriente Médio. O país apresenta ainda uma agricultura de qualidade e algumas empresas que sobreviveram a toda essa deterioração. Ou seja, é um país que tem recursos e riquezas. Não é uma tribo africana perdida no meio da selva, como o preconceito de alguns quer fazer acreditar. Nas últimas décadas, milhares de egípcios qualificados deixaram o país. Se regressarem ao Egito, poderão ajudar a reerguer o país.

Carta Maior: O senhor enxerga, portanto, uma boa perspectiva de futuro para o país?

Mohamed Habib: Quando olhamos para os 19 dias de levante popular, iniciado em 25 de janeiro, podemos constatar que foi uma revolta pacífica. O povo saiu pacificamente às ruas, não houve homens bomba ou ataques às instituições. Pelo contrário, quem saiu às ruas sofreu com os ataques das forças paramilitares de Mubarak.

O futuro desse movimento dependerá muito das negociações com o Conselho Superior das Forças Armadas. As demandas apresentadas a este conselho mostram um levante popular muito consciente: banir o atual corpo de ministros; formação de uma nova Constituição a partir de um grupo de intelectuais independentes que assumiria o compromisso de não disputar as eleições de setembro; formação do Conselho Superior de governo com quatro civis e um militar que conduziria o país até as eleições de setembro; dissolução do parlamento atual que perdeu sua legitimidade com a renúncia de Mubarak; banir o Estado de Emergência que vigora desde 1971; libertação de todos os presos políticos; liberdade de criação de partidos políticos; liberdade para os meios de comunicação e acesso à informação; movimento sindical livre; fechamento dos tribunais militares e revogação das sentenças.

Essa é a agenda. Essas propostas, repito, mostram a consciência do movimento que foi para as ruas. O povo egípcio vive há cerca de 40 anos sob Estado de Emergência, que concentra enormes poderes nas mãos do presidente da República, com um Parlamento fantoche e corrupto. O que deve ser discutido agora é a cronologia para a implementação dessas medidas.

Carta Maior: Na sua opinião, a Irmandade Muçulmana é favorita para vencer as eleições de setembro?

Mohamed Habib: Não. A Irmandade Muçulmana não teria hoje nem 5% do Parlamento em um processo de eleições livres e abertas. Essa organização surgiu nos anos de 1920, cabe lembrar, com a intenção de libertar o país do domínio inglês. Esse processo foi concluído em 1954. Mesmo naquela época, quando era fortíssima, não reivindicou o poder. O Egito não é um país religioso e a Irmandade não é um grupo terrorista. Isso foi um fantasma criado por Mubarak e pelos EUA. Aliás o nome correto da organização é Fraternidade Muçulmana. O mundo está vendo agora um lado do Oriente Médio que a grande mídia não exibia. O padrão até aqui foi mostrar o árabe como terrorista.

A história dos EUA ajuda a entender isso. Primeiro foram os índios norteamericanos que foram mostrados como uma subespécie. O projeto de expansão territorial para o Oeste foi acompanhado de uma campanha política de lavagem cerebral. Fomos criados vendo faroestes e batendo palmas para os “mocinhos” que eram os brancos. Depois, o projeto expansionista virou-se para o Sul e os vilões da vez passaram a ser os mexicanos. Depois foram os comunistas. E agora são os árabes.

Carta Maior: A relação do Egito com Israel pode sofrer alguma mudança, na sua avaliação, a partir da queda de Mubarak?

Mohamed Habib: Se Israel for inteligente, se for governada por pessoas inteligentes, tem que perceber que acordos firmados com ditadores não se sustentam. É melhor para Israel viver cercado por países democráticos do que por ditaduras supostamente amigas. É muito mais justo e muito mais duradouro também. Os dirigentes de Israel, dos Estados Unidos e da Europa precisam estar atentos a estes detalhes. Um ditador amigo e corrupto não é sinônimo de paz e prosperidade. Há chances muito melhores para paz se países democráticos estiverem sentados à mesa de negociações.

Minha esperança é que essa nova página que está sendo escrita no Oriente Médio coloque o Estado de Israel e o mundo árabe em melhores condições para negociar e buscar a paz e a prosperidade na região, para construir um Oriente Médio estável e desenvolvido. Na situação atual, com países árabes governados por ditadores, não temos um solo fértil para cultivar a paz.

Carta Maior: Os atuais governos de Israel não parecem muito animados com essa ideia...

Mohamed Habib: Chega uma hora em que a incoerência começa a ter efeitos negativos. Os EUA são um país democrático. Mas, na sua política externa, não aplicam os mesmos conceitos que pregam em sua democracia interna. Essa incoerência acaba desmoralizando o seu discurso frente aos demais países. No caso da revolta no Egito, demoraram muito para abrir a boca e quando abriram foi para apoiar a indicação como vice do chefe de serviço de inteligência de Mubarak durante 18 anos, amigo da CIA e do Mossad. Acharam que os egípcios eram tão burros e ignorantes que aceitariam isso. Mas acabaram se surpreendendo com a reação do povo egípcio. Resultado: os Estados Unidos acabaram se queimando politicamente. Quando o mundo ficou sabendo de tudo isso, os EUA se desmoralizaram. Esse episódio mostra que, para o mundo viver em paz, deve-se buscar a coerência em primeiro lugar: democracia para todos e não apenas no nosso país. Aí poderemos ter um mundo mais justo, com ética e prosperidade.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O TRIUNFO DA REVOLUÇÃO NO EGITO

Cheguei a trocar com amigos algumas mensagens por celular e nas redes sociais comemorando a queda do presidente egípcio Hosni Mubarak, no final da tarde da última quinta-feira, 10 de fevereiro. A festa foi bem mais do que breve e, atônitos e incomodados, fomos dormir poucas horas depois com a amarga sensação de decepção e de História interrompida - num anti-clímax tresloucado, o tirano havia decidido por seu dia do "fico". Por aqui, nas nossas rodas de conversas, ficamos perguntando: 'O que vai acontecer agora?'. 

A resposta das ruas no Cairo, em Suez, em Alexandria e em tantas outras cidades do Egito foi contundente e imediata - ainda mais pressão e mobilização, nenhuma disposição para recuar - e não deixou outra alternativa ao ditador a não ser finalmente dar adeus à presidência, no início da tarde da sexta-feira. Passei o restante do dia com os olhos marejados grudados na transmissão da Al Jazeera, reverenciando e agradecendo o povo corajoso e revolucionário do Egito. Quem foi mesmo que disse que a História tinha acabado?

É curioso notar como, naquele momento, por laços de solidariedade e admiração, por sentimentos revolucionários comuns, estávamos conectados aos cantos, buzinas e gritos que vinham da Praça Tahrir. De certa forma, pedíamos licença aos camaradas egípcios para participar, de forma muito limitada e respeitosa, apenas como personagens secundários, da vitória imensa que haviam alcançado. De casa, na frente da televisão (que loucura!), eu gritava: "adeus, Mubarak! Já vai tarde! Viva a revolução do povo do Egito!". E sorria, sem conseguir conter a emoção. Ao mesmo tempo, aquela mesma inevitável pergunta voltava à tona: "e o que vai acontecer agora?". 


A beleza da História, a Revolução em marcha
Nesse momento, é preciso admitir que reflexões sobre o futuro do Egito representam uma tarefa extremamente complicada e desafiadora; o risco é escorregar em exercícios de adivinhação. Além do mais, como já registrei no primeiro texto postado no blog sobre o tema, estou longe de ser especialista no assunto. Mais uma vez, meu objetivo é identificar algumas cartas que estão sendo colocadas à mesa, alguns horizontes que começam a ser desbravados e considerados como cenários possíveis, costurando uma rede de análises relevantes para a compreensão mais aprofundada do processo. 

Dito isto, parece não haver muitas dúvidas sobre o significado das transformações profundas que estão sendo vividas pelo Egito (a revolução não chegou ao fim, continua em marcha). "O grande feito da revolução foi quebrar a barreira do medo e mostrar a capacidade de organização espontânea da população. Os protestos foram comandados por jovens pedindo democracia clássica. O regime caiu de forma pacífica", avaliou Mamede Mustafá Jarouche, professor de Letras da Universidade de São Paulo (USP), na Globonews

Ao portal Terra, Márcio Scarlécio, professor do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), reforçou que estamos falando de uma vitória sensacional. "É um presidente baseado num regime autoritário que está sendo derrubado pelas ruas. É importante para caramba". O linguista norte-americano Noam Chomsky é outro que não contém o entusiasmo. "O que está ocorrendo é espetacular. A coragem, a determinação e o compromisso dos manifestantes são destacáveis. Independentemente dos resultados, estes momentos, que sem dúvida não vamos esquecer, seguramente terão consequências. Eles enfrentaram a polícia, tomaram a Praça Tahrir e se mantiveram ali, apesar dos grupos mafiosos de Mubarak", afirmou, em entrevista reproduzida pela Agência Petroleira de Notícias. 

Incansável e preciso narrador da revolução egípcia, consagrando a máxima que diz que reportagem se faz é na rua mesmo, pisando no barro, no meio do povo, o jornalista britânico Robert Fisk escreveu, em texto reproduzido pela Agência Carta Maior, que "para sempre se conhecerá a Revolução Egípcia de 25 de janeiro - o dia em que começou a revolta - e para sempre será a história do povo que ressuscitou". Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos definiu: "É a queda do Muro de Berlim do mundo árabe". 


A derrota dos Estados Unidos
Se a vitória do povo do Egito é cantada em verso e prosa como grandiosa, há também um consenso em relação ao principal derrotado dessa história (além, claro, de Mubarak e seu regime sanguinário): o Império norte-americano. Nesse episódio, o democrata Barack Obama seguiu à risca a cartilha conservadora e agiu como teriam agido os falcões republicanos: negou a relevância das agitações, tentou mostrar que o "regime era estável", lavou as mãos tal qual Pilatos, sugeriu uma "transição gradual e sem movimentos bruscos", para somente abandonar o barco quando o triunfo da revolução já se anunciava como inevitável, num suspiro final desesperado e a tentativa de não passar para a História como o principal fiador da ditadura. Como Obama pretende agora discursar a favor de liberdades e direitos humanos? A máscara caiu. A esperança ficou perdida pelo caminho. A memória coletiva já registra: Obama não foi apenas omisso, mas medroso e conivente.

"Os Estados Unidos têm uma imensa lista de pecados no Oriente Médio. Em primeiro lugar, os americanos tradicionalmente apoiam todos esses regimes pavorosos", disse o professor Scarlécio, na entrevista já citada. Para Chomsky, também no mesmo texto indicado acima, "os EUA seguiram o manual costumeiro. Ocorre como uma rotina padrão: seguir apoiando o ditador o tempo todo, enquanto for possível; quando se torna insustentável - especialmente se o exército muda de lado -, dá uma volta de 180 graus e diz que sempre estiveram do lado das pessoas, para apagar o passado e depois fazer todas as manobras necessárias para restaurar o velho sistema, mas com um novo nome".

Segundo Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC/SP, em artigo publicado na Carta Maior, "Obama inicialmente preferiu ficar ao lado de seu “aliado leal”, contra um movimento que levou a fundo a retórica dos direitos humanos presente em seu discurso no Cairo em 2009. Diga-se, é verdade, que esses momentos revelam a essência da decisão na política externa dos EUA, que vai muito além da órbita do presidente da república. Apesar da celebração ritual da sociedade civil, autoridades dos EUA (militares, agências de inteligência e lobbies no congresso) sempre mantiveram fortes ligações com regimes repressivos e nunca mantiveram qualquer tipo de contato com os principais grupos oposicionistas". 

Em matéria publicada pelo jornal espanhol El País, Antonio Caño cita Nicholas Burns, professor de Harvard, para quem "os EUA não terão mais alternativa a não ser aceitar o resultado de futuras eleições no Egito, gostando ou não gostando; não há outra saída". Para Caño, o povo egípcio deu uma lição aos Estados Unidos sobre como construir suas alianças. "A velha doutrina que diz que qualquer tirano é válido desde que cumpra as ordens de Washington foi varrida", sentencia. 

Por tabela, a derrota fragorosa dos Estados Unidos representa ainda um tremendo abalo nos interesses e nas posições até aqui consolidadas de Israel no Oriente Médio. Sai de cena o principal aliado árabe às pretensões expansionistas e colonialistas do Estado israelense, que teme agora que a reviravolta faça do Egito mais uma pedra em seu sapato. O que as duas nações (Estados Unidos e Israel) não querem compreender é que regimes democráticos seriam muito mais benéficos para a garantia de estabilidade na região, como destacam Reginaldo Nasser e Mohamed Habib, pró-reitor de extensão e assuntos comunitários da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe, no programa "Entre Aspas" transmitido na quinta-feira, 10/02, pela Globonews.

Como apresentei em texto postado no blog na sexta-feira passada, ainda antes do triunfo da revolução, para o Império e seu fiel escudeiro, assimilado o fracasso e digerida a contragosto a queda de Mubarak, o mundo dos sonhos seria então uma transição controlada pelos militares egípcios, até chegar a um regime parecido com o da Turquia, onde as forças armadas funcionam como um grilo falante da política local, a voz da consciência coletiva que esvazia e monitora a perspectiva de hegemonia de radicalismos islâmicos. 


Um risco chamado Forças Armadas?
A essa altura, com o antigo regime apodrecido e derrotado e o novo ainda sendo gestado, a partir da diversidade das forças de oposição e das diferentes vozes e propostas que nasceram dos protestos nas ruas, os militares parecem mesmo representar a única força social e institucional com capacidade para ocupar esse vácuo de poder e conduzir a transição. É perigoso? Claro que sim. Pode acontecer um golpe de Estado branco e disfarçado, simplesmente responsável por transferir o controle do país a novos candidatos a ditadores? É um risco. O exército vai abrir mão de seus lucrativos negócios (controla cerca de 30% da economia nacional), em nome do interesse coletivo e da reconstrução do país? Há controvérsias.

Robert Fisk, no texto citado, alerta que "embora tenham se desligado do presidente, o alto comando do exército está formado por homens da velha ordem. A maioria dos oficiais de patente mais alta do exército foi absorvida pelo núcleo do poder do regime. Durante o último governo de Mubarak, o vice-presidente era um general, o primeiro ministro era um general, o vice-primeiro ministro era um general, o ministro da Defesa era um general e o ministro do Interior era um general. O próprio Mubarak era comandante da força aérea. O exército levou Nasser ao poder e apoiou o general Anwar Sadat. Apoiou o general Mubarak. O exército introduziu a ditadura em 1952 e, agora, os manifestantes acreditam que se converterá na agência da democracia. Haja esperança! Portanto – tristemente – o Egito é o exército e o exército é o Egito".

A questão que se coloca é: estaria o povo do Egito disposto a se resignar, voltar para casa e aceitar passivamente a simples substituição do ditador de plantão, depois de tanta luta e de ver concretizada a mudança que tanto almejava? Para Emilio Platti, do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo, "os jovens da Praça Tahrir já estão impregnados desses valores (liberdade de expressão, direitos humanos). Não querem o modelo militar, como não querem o modelo islâmico nos moldes do Irã. Cansaram-se de ser abordados pela polícia nas ruas e detidos para interrogatórios, prática tão comum no Egito". 

As primeiras medidas parecem caminhar em sintonia com a vontade das ruas: a Junta Militar que assumiu o país dissolveu o Parlamento que apoiava Mubarak, abandonou o texto constitucional que legitimava a ditadura e confirmou eleições para o mês de agosto. Mas, nesse momento, qualquer julgamento é precipitado. É preciso aguardar. O cenário é ainda nebuloso e confuso.


Marcha da Vitória
É honesto dizer portanto que, embora o exercício de reflexão seja imprescindível, é difícil vislumbrar com exatidão quais serão os caminhos da revolução a partir de agora; mas arrisco dizer que o Egito - e o Oriente Médio - jamais serão os mesmos. "Não é possível prever se haverá contágio (dos demais países árabes), mas é um efeito possível. Mas depois esses países vão passar por um período de crise até reorganizarem suas economias, suas sociedades e sua política. Espero que resulte na emergência de novos partidos, com forte presença dos movimentos sociais", diz Boaventura, na entrevista citada. 

Em conversa com a Agência Carta Maior, Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, avalia que "uma mudança política no Egito terá certamente um impacto em toda região, podendo inclusive provocar uma mudança de relacionamento com países como Israel e Síria. Mas isso dependerá da evolução dos acontecimentos". E para o jornalista Luiz Carlos Azenha, no blog Vi o Mundo, "o fato é que a queda de Mubarak transformará o mundo árabe, a política externa dos Estados Unidos e de Israel e deixará clara a hipocrisia dos que acreditam que os direitos humanos dos iranianos, por exemplo, importam mais que os direitos humanos dos egípcios ou sauditas". 

Sem abandonar as ruas, onde de fato a revolução aconteceu, os egípcios já convocaram a Marcha da Vitória para a próxima sexta-feira, 18 de fevereiro. Será mais um dia em que não será possível tirar os olhos das telinhas de televisão ou computador. Pedindo novamente permissão aos camaradas do Egito, fica aqui o convite: temos mais um encontro marcado com a Revolução.