O meu sonho, descrito aqui num texto-desabafo quase quixotesco, mas que ajudou a tirar um nó da garganta, virou decepção e pesadelo. Conservador, incapaz de ouvir os insistentes convites feitos pela História, o presidente Barack Obama virou as costas para a multidão reunida na praça Tahrir, no centro da cidade do Cairo, e os Estados Unidos continuam a sustentar o governo tirano e corrupto do Egito - que já teve seu fim decretado pela vontade soberana do povo egípcio.
Em um discurso recheado de medo e covardia, medindo cada palavra, tal qual Pôncio Pilatos, o líder dos Estados Unidos citou a necessidade de uma transição "organizada e pacífica" e contentou-se com o jogo de cena e a "disposição altruísta" de Hosni Mubarak, que anunciou não pretender concorrer à presidência nas próximas eleições. Obama só não foi pior que sua Secretária de Estado, Hillary Clinton, que no dia 25 de janeiro, quando começaram as manifestações mais intensas, veio a público para garantir que o governo do Egito era "estável e buscava maneiras de responder às necessidades e interesses legítimos da população".
Politicamente, como destaca texto de Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, parece ser o lamentável fim de linha para uma administração que foi eleita prometendo mudanças e dizendo "sim, nós podemos", mas que não se cansa, nesse episódio que tem potencial para redefinir os rumos da História global, de repetir "não, nós não queremos" e de se esforçar para manter o status quo. E faço aqui mea culpa. Talvez até de maneira exageradamente otimista e romântica, admito, mantive até o limite máximo as esperanças, e torci muito por uma postura digna do presidente Obama, a única aceitável: apoiar verdadeiramente as manifestações populares e a democracia no Egito e exigir a renúncia imediata de Mubarak. Pedi demais?
O companheiro Fabio Cardoso, também jornalista e professor universitário, sábio interlocutor de todas as horas, lembra que Obama é um presidente que consegue alcançar unanimidade - desagrada tanto americanófilos como não americanófilos, aliados e adversários, republicanos e democratas. Coloca a própria reeleição em risco. Mas, cá entre nós, por que desejar mais um mandato se é para continuar agindo em política internacional como os falcões republicanos, defendendo única e exclusivamente a pax militarizada norte-americana, exportada ao mundo? Talvez Bush Junior não fizesse melhor. Triste fim. Escrevo esses parágrafos com dor no coração.
Tchau, Mubarak!
Enquanto Obama vacila e agoniza, o Egito já traçou seu futuro e começa a pensar no cenário pós-ditadura. Em uníssono e enfurecidos, os mais de dois milhões de manifestantes reunidos na praça Tahrir gritavam na terça-feira, 01 de fevereiro: "Mubarak, vá-se para sempre", mesmo depois de o tirano ter comunicado oficialmente que não se candidataria a novo mandato. O jurista Walter Maierovitch escreve, em artigo reproduzido pelo blog Escrevinhador, do jornalista Rodrigo Vianna, que "não há mais dúvida que na complexa geopolítica médio-oriental, Hosni Mubarak, ditador por quase 30 anos, já é carta fora do baralho. No momento, o problema é saber quem conduzirá o país durante a transição e até a eleição de outubro".
No programa "Entre Aspas" transmitido pela Globonews na última terça-feira, dia 01 de fevereiro, Arlene Clemesha, do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (USP), disse que os egípcios não estão dispostos a aceitar que Mubarak conduza qualquer processo de transição e que todos as propostas indecentes e os acenos feitos pelo ditador estão sendo rechaçados. "Não há mais volta. Mubarak cairá. O que há é uma tentativa desesperada de manter esse processo de mudanças sob controle e o mais próximo possível do cenário atual", completou Salem Nasser, professor de Direito Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo.
Os dois especialistas criticaram duramente a "transição lenta e pacífica" sugerida por Obama (a propósito, teria o presidente dos EUA buscado inspiração no processo de redemocratização brasileiro?). Segundo Nasser, os EUA estão duplamente atrasados: porque há 30 anos sustentam uma ditadura sanguinária e porque há oito dias se recusam deliberadamente a compreender os significados das manifestações de rua no Egito. "O discurso de Obama beirou o absurdo, porque diz que aceita a democracia, desde que essa abertura não signifique a eleição de determinados grupos não tolerados pelos EUA".
Para o jornalista Pepe Escobar, em análise disponível no site da Agência Carta Maior, "a rua, no momento, não está apontando para ninguém. El Baradei (prêmio Nobel da Paz de 2005 e ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica) talvez seja escolha popular, mas estritamente como líder de transição, para por nos trilhos o país que está paralisado e criar sistema transparente para eleições livres e limpas".
Além do cenário de transição liderada por Baradei, o jornalista cita a possibilidade de concretização de um plano B, uma possibilidade que, avalia Escobar, não pode ser descartada: um golpe de Estado dado pelo Exército e autorizado pelo povo. Ele lembra que essa alternativa deve ser considerada com ressalvas, não apenas porque os manifestantes podem torcer o nariz para ela (como diria o genial Garrincha, 'já combinaram com o povo?'), mas também por conta de disputas e divisões enfrentadas pelos diferentes segmentos militares.
Irmandade Muçulmana?
No processo revolucionário em curso no Egito, é preciso considerar mais uma variável: a Irmandade Muçulmana, nascida na década de 1920 sob forte inspiração religiosa. A possibilidade de o grupo aproveitar-se das revoltas populares para ocupar o vácuo de poder e cacifar-se como força política protagonista do Egito pós-Mubarak deixa arrepiados muitos líderes ocidentais, que classificam a Irmandade como uma organização fundamentalista e terrorista, aliada da Al-Qaeda.
Pepe Escobar, em outro artigo também publicado pela Agência Carta Maior, desmonta esse rótulo e diz que o que causa medo nos Estados Unidos, caso a Irmandade chegue ao governo, é mesmo a brecha que se abrirá para a revisão do acordo de paz que o Egito mantém com Israel - fato que, como efeito dominó, teria consequências imprevisíveis e que poderia modificar radicalmente todo o tabuleiro de xadrez cuidadosamente montado no Oriente Médios pelos norte-americanos, em fina sintonia com Israel.
O jornalista, aliás, lança dúvidas sobre a real possibilidade de um governo comandado pela Irmandade. Diz que até aqui a "situação é de revolução clássica; os poucos que permanecem no topo do governo já não conseguem, como antes, impor sua vontade; os muitos que sempre viveram por baixo recusam-se a continuar dominados como antes". Para ele, "o complexo caminho à frente aponta para uma aliança civil no Egito, de todos os setores que se opõem ao regime (praticamente todos os habitantes do país) e o componente inevitável, o exército". Ele é enfático: por enquanto, não há sinais de que o Egito possa trilhar o mesmo caminho que o Irã adotou, em 1979, transformando-se em uma república islâmica.
Avaliação semelhante é feita pelo jornalista britânico Robert Fisk, para quem a participação da Irmandade na revolução em curso no Egito é até aqui secundária e bastante discreta. Não se trata, de acordo com Fisk, de uma revolução islâmica - nem de longe. Em riquíssimo relato feito para o The Independent sobre a manifestação que reuniu mais de dois milhões de pessoas na praça Tahrir, o especialista em Oriente Médio lembra que "havia vários elementos sobre este evento político sem precedentes que se destacavam. Primeiro foi o secularismo de toda a questão. Mulheres em chadors e nicabs e cachecóis andando feliz ao lado de meninas com cabelos longos soltos sobre os ombros, os estudantes ao lado de Imãs [autoridade religiosa] e homens barbados que fariam ciúmes a Bin Laden. Os pobres de sandálias rasgadas e os ricos com finos ternos, esmagados nesta massa a gritos, uma amálgama do real Egito, até aqui, divididos por classes e simpatizantes ao regime. Eles haviam feito o impossível – ou assim pensavam –, e de certa forma já haviam vencido sua revolução social".
A Irmandade? Fisk responde: "E lá estava a ausência do “islamismo” que assombra os mais escuros cantos do Ocidente, influenciados – como sempre – pelos Estados Unidos e Israel". Quem ocupou as ruas foi o povo egípcio, com toda sua diversidade e espontaneidade. Sem cabrestos ou motivações religiosas. Parênteses: não há como compreender a profundidade da revolução no Egito sem ler os textos diários que Fisk tem publicado no The Independent.
Mas será que os temores do Ocidente estão mesmo relacionados a um suposto regime fundamentalista islâmico no Egito? Em artigo publicado na Folha de São Paulo (disponível para assinantes), o filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle, chacoalha nossas cabeças, põe o dedo na ferida, inverte a mão de direção, sugere outra leitura e transita por outro espectro de análise. Para ele, o que realmente incomoda os países do Ocidente, Estados Unidos à frente, é a possibilidade concreta de o Egito tornar-se uma democracia laica e com grande participação popular, capaz de recusar as ordens e desmandos de potências que até aqui enxergaram o Oriente Médio apenas como quintal de seus venais interesses.
Para ele, o suposto temor da Irmandade Muçulmana é a névoa que pretende esconder e camuflar uma discussão de fundo. "Na verdade, precisamos desesperadamente da narrativa que consiste em dizer que, no mundo árabe, só pode haver ou regimes teológico-políticos ou autocracias amistosas. Afinal, como justificar que durante 30 anos nós, arautos dos direitos humanos, apoiamos um regime despótico, com eleições de fachada, assassinatos de opositores, censura rígida e plutocracia? Só mesmo inventando que, se não fosse isso, teríamos que engolir o fundamentalismo islâmico".
Todo poder ao povo do Egito
O povo não arreda pé e promete não sair das ruas enquanto Mubarak não se for. No texto já citado, Robert Fisk reproduz mensagens que foram postadas no twitter ou enviadas por internet, durante a mega manifestação da terça-feira. Uma delas diz que: "Eu sou um escritor e eu só quero dizer às pessoas no mundo livre que têm medo dos fanáticos islâmicos assumirem o poder, isso não vai acontecer no Egito. Quando os egípcios apreciarem a liberdade real, eles nunca vão deixar o fanatismo assumir o poder”. Outra: "aconteça o que acontecer, não pode ser pior do que ficou para trás. O caminho é um só, nós temos que seguir até o fim. Eu sinto que até o vento, o vento é novo e diferente. O vento e a terra, andamos em mudanças".
Mubarak tem as bombas, as armas de fogo, os tanques e as tropas (ainda). A repressão na praça revela com nitidez que, sem a legitimidade das ideias, o ditador só pode mesmo recorrer à força bruta, em um último e desesperado suspiro. O povo carrega na alma a intensa vontade de transformar a História. Não há como segurá-lo. Quer emprego, justiça social, liberdade, democracia. Como escreve Larbi Sadiki, conferencista sênior em Política do Oriente Médio na Universidade de Exeter, em artigo publicado no site da revista Fórum, "as massas querem sonhar seus próprios sonhos, e não impedidos pelos sonhos de colecionadores de tigres bebê, de caçadores de ouro ou Faraós juniores. Aqui começa a recuperação e a retomada do espaço de ação que havia sido perdido".
As oposições convocaram nova manifestação para esta sexta-feira, 04 de fevereiro. A expectativa é que o protesto reúna ainda mais gente que o da última terça. Será a "sexta-feira da partida". O tempo de Mubarak está se esgotando.
As oposições convocaram nova manifestação para esta sexta-feira, 04 de fevereiro. A expectativa é que o protesto reúna ainda mais gente que o da última terça. Será a "sexta-feira da partida". O tempo de Mubarak está se esgotando.
Você podia tentar descobrir o que é que está sendo negociado de fato nos bastidores, hein?
ResponderExcluirEnquanto isso, a capa da Veja, a revista de maior circulação no Brasil, estampa o "casal perfeito" Angélica e Luciano Huck!
ResponderExcluirObama é mais um produto tipicamente americano. Na hora do aperto, dos grandes questionamentos morais trazidos pela era Bush, a terra de Hollywood, da publicidade, do showbusiness de um modo geral, trouxe a possibilidade de eleger um homem negro, fruto de um casamento interracial, de origens africanas e carismático, como presidente.
ResponderExcluirO homem era um show só. O apelo midiático em torno de sua imagem era grande. E enorme tem sido a decepção. Ele é mais do mesmo, em uma hora ruim da política internacional norte-americana.
Particularmente nunca fui um entusiasta de Obama. Não acredito em nenhuma mudança através de políticos vinda dos EUA. Afinal, ali é a terra em que governam os grandes conglomerados, mais do que em qualquer outro lugar do mundo.
Por trás de uma grande imagem produzida pelo marketing político, há mais poderosos lobbies do que pode supor a nossa vão filosofia de esquerdistas do mundo em desenvolvimento...