sábado, 5 de fevereiro de 2011

"HITLER MOSTROU COMO UMA SOCIEDADE MODERNA PODE AFUNDAR NA BARBÁRIE"

Aproveitei o mês de janeiro para mergulhar na leitura de "Hitler", biografia do ditador alemão escrita pelo historiador britânico Ian Kershaw, um dos mais importantes especialistas em Terceiro Reich do mundo. A obra, totalizando quase duas mil páginas, incluindo mapas e notas explicativas, foi inicialmente lançada no exterior em dois volumes, em 1998 e 2000, que foram recentemente condensados e transformados em volume único, com pouco mais de mil páginas, desembarcando no Brasil em cuidadosa edição da Companhia das Letras (o maior livro já produzido pela editora), com direito à capa dura e ensaios fotográficos. O autor admite já no prefácio que "a poda drástica, com a perda de mais de 650 páginas e de 300 mil palavras, foi muito dolorosa". Mas faz questão de garantir que o resultado final "é perfeitamente fiel ao original e que a essência do livro permanece completamente intacta". 

"Hitler" é daqueles livros instigantes e arrebatadores, que a gente tem vontade de enfrentar de uma tacada só, sem parar, numa madrugada talvez, e que levamos como companheiro para os mais diferentes cantos e situações, apenas pela oportunidade de, em qualquer brecha possível, retomar a leitura, só mais um pouquinho, só mais algumas páginas. Às vezes nem percebemos, é instintivo - e lá está "Hitler" conosco no sofá, na mesa do almoço, na beira da piscina, antes da partida de futebol do time de coração, no quarto do hotel durante a viagem de férias, após uma brincadeira com os filhos. É difícil deixar a obra de lado. 

Mas a biografia também provoca outro movimento apenas aparentemente contraditório, mas na verdade complementar: a narrativa é tão intensa, tão caudalosa, uma avalanche informativa e analítica tão profunda e recheada de detalhes que, mesmo com o desejo ardente da leitura corrida, fui não raro obrigado a parar para buscar os contextos do que estava lendo, para entender quem era quem, para passear o dedo pelos mapas e refazer neles os desenhos das operações militares descritas, para resgatar siglas e para juntar as peças de um complexo quebra-cabeças. Era preciso vir à tona, respirar, recuperar o fôlego e novamente mergulhar na história, num permanente exercício de entrar e desencarnar (com a licença do ex-presidente Lula) da narrativa, para poder fruí-la da maneira mais rica e produtiva possível. Ora, e não são esses justamente os predicados, prazeres e encantos de uma leitura paciente? Slow reading!

O livro combina pesquisa, precisão e rigor históricos com linguagem fluente e acessível, envolvente. E, ressalto, é muito mais que uma biografia - trata-se de um documento soberbo de reconstrução da história da Alemanha, na primeira metade do século XX, o que por consequência acaba se transformando também, embora com menos evidência, em uma aula sobre a história da Europa, no mesmo período. Consegue articular discussões sobre política, economia, estratégias militares, filosofia, comunicação, religião, preconceitos e intolerâncias (a crueldade humana elevada à enésima potência), observando cada árvore sem jamais perder de vista a floresta. 


Nessa associação estreita entre geral e particular, é possível travar contato com passagens da vida de Hitler já relativamente bem conhecidas, como suas relações conturbadas com a família (a proteção sufocante da mãe e a violência quase diária do pai), as duas tentativas frustradas de ingresso na Academia de Artes de Viena e a juventude boêmia e sem emprego fixo na capital austríaca, onde chegou a viver em albergues e em companhia de moradores de rua (de onde supostamente teria nascido sua ojeriza pela pobreza).  

Mas a narrativa é também permeada por surpresas. Engana-se quem imagina que Hitler tenha sido um legítimo representante da disciplina germânica. "Já morando na Chancelaria do Reich, o führer em geral dormia de madrugada, acordava só depois do meio-dia, atrasava duas horas para aparecer à mesa do almoço e dava bolos em seus convidados. Era também preguiçoso: evitava as reuniões maçantes sobre questões estritamente financeiras e orçamentárias e pouco se preocupava com a base prática para seus sonhos megalômanos", escreve Otávio Marques da Costa, no blog da Companhia das Letras. 


Aquele que poucos conheciam torna-se führer
Kershaw deixa claro que Hitler foi um ilustre desconhecido até 1919, quando, inconformado com a rendição alemã na I Guerra Mundial, acabou por se juntar a um grupo que ficaria popularmente conhecido como "agitadores das cervejarias de Munique", embrião do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores da Alemanha. Sua oratória refinada e sedutora, a argumentação bem construída e conduzida e a capacidade de defender ideias com paixão na voz e brilhos nos olhos, invariavelmente dizendo aquilo que as massas desejavam ouvir, alçaram Hitler rapidamente à liderança do partido, já em 1921. 

Não demora muito para que o futuro führer manifeste abertamente sua ambição e gana desmedida pelo poder, convencido de que havia sido o escolhido para conduzir a Alemanha a um novo tempo de pujança econômica e de protagonismo mundial. Com a imposição do Tratado de Versalhes, em 1918, ao final da I Guerra, o país se lançara em uma profunda crise de identidade, com o orgulho nacional mortalmente ferido. Bajulado e tratado como semi-deus, Hitler encarna a perspectiva de revanche e de vingança contra os algozes do primeiro conflito mundial. História e personagem se encontram. Como escreve Kershaw, não haveria Hitler se a Europa não tivesse vivido a I Guerra.

"A crise na sociedade alemã, que foi uma verdadeira crise de identidade nacional, fez com que a mensagem de Hitler atraísse setores muito mais amplos da população, levando-o dos arrabaldes para o centro do espectro político da época", avalia o autor, em entrevista publicada pelo jornal O Globo, em dezembro do ano passado.  

A escalada ao poder foi gradativa - mas inevitável. Nas eleições de 1924, os nazistas conquistaram apenas 32 cadeiras no Parlamento, pulando para 107 em setembro de 1930 e saltando para 230 em julho de 1932 (cerca de 40% do total). Embora representassem a maior bancada, ainda não dispunham de maioria absoluta e portanto da prerrogativa legal de indicar o chanceler. Hitler recusou-se terminantemente e durante muito tempo a participar como coadjuvante ou mero colaborador em um governo de coalizão. Queria o papel de ator principal, finalmente conquistado a partir de 30 de janeiro de 1933, quando, legitimado pelo voto popular e sem a necessidade de um golpe (fundamental lembrar), assumiu a chancelaria. Tinha 43 anos.

Depois da bancarrota econômica provocada pela crise mundial de 1929, do fracasso da República de Weimar e da completa falência do sistema político-partidário alemão, não restou outra alternativa ao marechal Paul von Hindenburg, então presidente da Alemanha, senão convocar os nazistas a formar o governo. Era a agremiação ainda "virgem", que não havia sido testada no poder, depositária das esperanças de segmentos expressivos da sociedade alemã. Hitler era o nome do partido. Em pouco mais de 12 anos, seu governo levaria o mundo à II Guerra Mundial, ao extermínio de seis milhões de judeus e de outros milhões de negros, ciganos, homossexuais, portadores de deficiências e comunistas e à tragédia maior vivida pelo século XX, quando a humanidade perigosamente se aproximou da barbárie bestializada. 


Gênio político. E desastrado comandante militar
Dois dos alicerces fundamentais do projeto expansionista e militarista de Hitler, em busca do espaço vital para a Alemanha e do desejo de vingança sempre anunciado contra França e Inglaterra, foram o anti-semitismo e um sentimento de violenta repulsa ao bolchevismo soviético, no poder desde a Revolução de 1917. A biografia de Kershaw sugere que a perseguição implacável de Hitler aos judeus teria como motivações o fato de ocuparem postos estratégicos na economia alemã (os invasores que roubavam empregos e acumulavam riquezas em momento de crise), além de um ódio incontido por entender que os judeus tinham sido ainda responsáveis pela capitulação alemã em 1918, fracasso que Hitler jamais perdoou. 

Em relação aos comunistas, além das divergências ideológicas (propriedade privada, lucros) e da disputa pelos mesmos territórios (Europa do leste e Balcãs), é possível inferir, a partir da leitura da obra, que Hitler associava diretamente os bolcheviques à defesa dos pobres - por quem o ditador alemão nutria desprezo e asco.

O livro trabalha ainda a dualidade gênio político x desastrado estrategista militar. Enquanto encontrou pouca ou nenhuma resistência e pôde blefar à vontade e usar de ameaças e bravatas, das pressões diplomáticas, Hitler nadou de braçada e conquistou vitória após vitória.  O livro narra com pormenores um episódio emblemático dessa habilidade política. Por ocasião da invasão da Tchecoslováquia, o presidente daquele país, Emil Hácha, solicitou uma audiência com Hitler, na expectativa de reverter a movimentação alemã. Chegou a Berlim no final da tarde de 14 de março de 1939. Hitler lhe deu um chá de cadeira e fez com que esperasse até mais de meia-noite, quando foi recebido e apelou para a negociação. Hitler respondeu aos berros que aquele pedido não poderia ser aceito: as tropas alemãs estavam chegando à Praga. Encontrariam uma nação acéfala, sem condições de oferecer resistência. Diante da notícia, o presidente tcheco compreendeu a armadilha de que tinha sido vítima. E desmaiou. 

Em compensação, esse mesmo Hitler insistiu em batalhas perdidas, em pleno inverno com temperaturas que chegavam a menos vinte graus centígrados, na desastrada campanha contra a União Soviética. "Os triunfos de Hitler na política externa, nos anos 1930, e até 1941, deviam-se à sua habilidade infalível de explorar as fraquezas e divisões de seus oponentes e à oportunidade das ações levadas a cabo com extrema rapidez. Quando teve de enfrentar um longo jogo com mão fraca e chances cada vez menores, os instintos perderam sua eficácia", escreve Kershaw, já no trecho final do livro. 

Mesmo na iminência da derrota, com o Exército Vermelho soviético nos arredores de Berlim, em abril de 1945, Hitler decidiu permanecer em seu bunker. Suicidou-se no dia 30 daquele mês, aos 56 anos, junto com a esposa Eva Braun. Os corpos foram queimados. Em 1º de maio, Dia Internacional do Trabalhador, a bandeira vermelha com a foice e o martelo tremulou no topo do Parlamento alemão.


O fenômeno Hitler
A pergunta que costura toda a narrativa biográfica de Kershaw é: como foi possível fazer de Hitler o führer, em um país politicamente esclarecido, desenvolvido do ponto de vista econômico e culturalmente avançado como a Alemanha? O autor destaca que alcançou resposta parcial para a questão na personalidade de Hitler. Revela que, em outra perspectiva de análise, procurou resgatar ainda o conceito de "autoridade carismática" idealizado pelo sociólogo alemão Max Weber. Trata-se de um atributo que "deriva da percepção de qualidades importantes de um indivíduo por um séquito que, em meio a condições de crise, projeta sobre um líder escolhido atributos heroicos e nele vê grandeza pessoal, a encarnação de uma missão salvífica". Por fim, sem jamais esquecer as condições históricas, é preciso acrescentar a esse caldeirão efervescente as estratégias de comunicação de massas nazistas (discursos, símbolos, bandeiras, desfiles, cinema, cartazes, transmissões de rádio), que levavam a população a um estágio de êxtase e verdadeira histeria coletiva. 

"Explicar (Hitler) apenas ou principalmente em termos de sua personalidade seria de certa maneira enganoso. O que temos que entender são as condições que permitiram a essa figura, de quem ninguém havia ouvido falar até 1919, conquistar tanto poder sobre um Estado tão sofisticado quanto a Alemanha. E, em seguida, ver as condições, estruturas e mentalidades que permitiram que esse poder fosse exercido nos 12 anos seguintes com um efeito tão terrível sobre a Alemanha, a Europa e o mundo", reforça o autor, na entrevista já citada concedida a O Globo.

Na história do século XX, algum outro ditador se aproxima do führer alemão? "Há semelhanças , mas nada que chegue perto. Pode-se pensar em Mussolini na Itália, em Franco na Espanha, em Stalin na Rússia. Nos três casos, o líder era crucial, mas em nenhum deles exercia o poder de forma tão personalizada quanto Hitler. Na Alemanha nazista não havia um senado, um gabinete, um conselho, nenhum tipo de corpo político que pudesse ao menos ponderar as opiniões de Hitler", responde Kershaw, em O Globo. 

Em outra entrevista, publicada pelo jornal O Estado de São Paulo em novembro passado, o historiador é taxativo: "O impacto de Hitler foi o maior produzido por um único indivíduo no século XX".  


"Hitler", de Ian Kershaw, é leitura fundamental para conhecer a História contemporânea. E para ajudar a combater os perigosos rastros da serpente da intolerância, infelizmente ainda bem visíveis em nosso cotidiano. 

2 comentários:

  1. Em tempos de confusão emanada de fenômenos estranhos como o Tea Party, é assustadoramente atual a lembrança da figura mais polêmica do séc. XX. Hitler, um homem que surgiu justamente em um período conturbado, de crise econômica mundial, e começou sua pregação em um pequeno círculo de desajustados frequentadores de cervejarias. A crise o alavancou e o dito cujo promoveu as maiores atrocidades já vistas pela humanidade.

    Que a crise atual não seja o ovo de uma serpente ainda mais venenosa que o nazismo.

    Um olhar sobre a história é sempre salutar para sabermos para onde os nossos próprios atos podem nos levar.

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  2. Desde o começo do ano passado tenho devorado seguidas obras sobre a II Guerra Mundial, sobre a origem do conflito, e, especificamente, sobre o Terceiro Reich e Adolf Hitler. Nas aulas de história no colégio, o professor nunca chegava a essa parte, e no cursinho pre-vestibular, o tema foi tratado de maneira absolutamente superficial. Sempre fiquei intrigado: como um psicopata como Hitler conseguiu chegar ao poder em um Estado como a Alemanha? Como uma nação tão civilizada e tão rica culturalmente permitiu que o Terceiro Reich se consolidasse e governasse por longos 12 anos. Boa parte dessas respostas poderão ser encontradas na obra de Kershaw, que também estou lendo, com quase a mesma volúpia descrita pelo Chico. O livro é realmente tudo isso que foi colocado no texto. E, importante, embora Kershaw centralize, evidentemente, o seu trabalho na pessoa do fuhrer, dá o devido destaque a outros importantes protagonistas do Terceiro Reich, que, embora com atuação quase sempre própria, acabavam por, parafraseando o autor, "trabalhar para o fuhrer": o fanático Goebbels, responsável pela massificação da doutrina nazista; Himmler e Heydrich, protagonistas e cúmplices da "Solução Final", Bormann, Goering, Ribbentrop, o sofrível Ministro do Exterior que durante bom tempo influenciou e muito as decisões tomadas pelo fuhrer. Enfim, trata-se uma obra de 1000 páginas absolutamente imperdíveis e instigantes. Aos interessados, fica a dica: a obra "O Terceiro Reich - Carisma e Comunidade", de Martin Kitchen (Editora Madras) acrescenta outros detalhes bastante interessantes sobre o tema.

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