Fim de semana no Nordeste antecipa aventuras de um admirável mundo novo
(*) Roger Ventura, de Natal, especial para o Blog do Chico
Na estrada entre Natal e Macaíba,[1] aonde iria me mostrar naquela tarde de sexta, 21 de janeiro, a quantas andava a construção da escola do Campus do Cérebro, espécie de utopia em fase de materialização, Miguel Nicolelis atende à ligação de um repórter do Sunday Times. Há pouco recebera uma mensagem de um admirador americano que lhe indagava como poderia ter acesso ao trecho de seu livro, Beyond Boundaries: the new neuroscience of connecting brain with machines – and how it will change our lives, que a Scientific American, revista com 6 milhões de leitores no mundo todo, acabara de publicar. O livro será lançado nos Estados Unidos em 15 de março próximo e, traduzido pelo próprio autor para o português, tem lançamento previsto no mercado nacional para o final de maio com o título Muito além de nosso Eu, enquanto o subtítulo traduz literalmente o original inglês.
Ele estranhara a informação do admirador, afinal a publicação fora acertada para a edição impressa da revista que seria lançada só no começo de fevereiro, mas outras mensagens chegavam insistentemente por e-mail não deixando dúvidas de que algo fora de fato publicado. Ah, ok! Mistério desvendado: saíra online o material que estaria nas páginas impressas no começo de fevereiro.
Estamos ali conectados com a velocidade do mundo da web, suas infinitas redes entrecruzadas, suas infindáveis teias plasticamente se fazendo e refazendo a cada instante, no meio do caminho para uma cidadezinha perdida no Nordeste (perdida? Isso foi antes de Miguel encontrá-la!). Esse é um mundo, ou melhor, uma reunião de mundos - o físico, da estrada recém-asfaltada daquele pedaço de Brasil distante que poucos brasileiros conhecem, e o virtual, da troca instantânea de mensagens por um vasto espaço cultural humano, sem fronteiras territoriais - na qual Miguel, que alcançará os 50 anos de vida em 7 de março próximo, sente-se completamente à vontade.
Redes são, afinal, o domínio por excelência desse genial neurocientista brasileiro que decifra incansavelmente mistérios do cérebro, vislumbra e vai construindo com sua equipe avançadíssimos sistemas e mecanismos para conectá-lo diretamente a máquinas sofisticadas que possam responder com precisão às determinações desse cérebro – quer dizer, o de primatas e, em especial, num futuro próximo, o do mais avançado deles, o Homo sapiens.
Por essas pesquisas ele tem hoje indiscutível presença internacional numa ciência feita para valer. E são as redes neuronais que, primeiro e acima de tudo, fazem parte dos domínios desse professor na Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos, criador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) e inventor desse Campus do Cérebro que vai se erguendo em Macaíba.
Digamos, para explicar inclusive um pouco mais a referência à decifração de mistérios do cérebro, que as redes neuronais constituem um campo sobre o qual a percepção aguda de Miguel permitiu, além das experiências práticas na fronteira mais avançada da pesquisa da interface cérebro-máquina, a proposição de novas vias teóricas para produzir saltos no debate quase secular entre localizacionistas e relativistas da neurofisiologia. Miguel adere sem vacilar à visão dos relativistas, que jamais tomarão um neurônio isolado como unidade do funcionamento do cérebro, e trabalha duro pelo desenvolvimento dessa abordagem (seu livro, entre outros méritos, vai oferecer uma visão cristalina desse embate científico de enormes consequências até para o tratamento que a medicina dispensa a nosso pobre/rico cérebro).
De todo modo, quando digo que redes são o campo próprio de Miguel, falo também de outros tipos, incluindo aquelas inventadas para aparar a bola, indiferentes à explosiva alegria e à decepção, raiva ou profunda tristeza, que sempre se distribuem democraticamente pelas arquibancadas do estádio ante o gol, admitam isso ou não os torcedores. Tudo bem, torcedores não estão mesmo ali para admitir nada, mas para torcer e enlouquecer um pouco, saudavelmente, por um par de horas. Refiro-me também a uma rede toda verde da Sociedade Esportiva Palmeiras (tem gosto futebolístico para tudo neste mundo, perdoemos Miguel!), pendurada na varanda de seu apartamento em Natal, aberta para uma visão deslumbrante do mar potiguar. Visão que clama, acreditem, por um reverencial silêncio de pura celebração da vida, pelo fato simples e inescrutável de existirmos ali, naquele instante – e com a consciência dessa existência. O curioso é que, ao ouvir uma vez o professor Nicolelis dizer “agora vou para a rede do Palmeiras” (terei lido isso no twitter?), eu o imaginei sentando-se à frente do computador para tecer comentários apaixonados sobre o desempenho de seu time naquele dia. Ele realmente posta, de vez em quando, comentários numa rede virtual da torcida alviverde, mas era daquela bendita rede de algodão escandalosamente verde que falava. “Ninguém é perfeito, suspirou a raposa”, naquele doce libelo sobre a amizade do escritor-piloto francês desaparecido numa travessia do deserto. O pobre do Exupéry, aliás, foi execrado, lançado aos leões pela intelligentsia nativa durante anos só porque um néscio, um mentecapto qualquer lá nos anos 60, resolveu obrigar as candidatas a miss, desafiadas pela pergunta “qual o seu livro de cabeceira?”, a responder sempre: O pequeno príncipe.
Enquanto segue no carro para Macaíba nessa tarde quente, Miguel expõe detalhadamente para o repórter perguntador do Sunday, num inglês para gringo nenhum botar defeito, mas friendly ao mesmo tempo para ouvidos tupiniquins, o conteúdo geral do livro já anunciado na Amazon e em fase final de preparação aqui na Companhia das Letras. Emerge em frases límpidas e bem construídas amostras preciosas de toda a revisão que fez de 100 anos da neurociência, com destaque para a oposição sempre polêmica entre localizacionistas, os que insistem em colocar estritamente em um pequeno grupo de neurônios no sítio A, B ou C a função cerebral xis, e relativistas, aqueles cientistas que foram percebendo e, passo a passo, desenvolvendo o conceito de rede neuronal - que o próprio Miguel terminou lançando a um novo e decisivo patamar.
O repórter quer saber agora sobre os experimentos no campo da interface cérebro-máquina. Aos poucos, roedores, macacos e pacientes humanos vítimas do mal de Parkinson, colaboradores todos de pesquisas fascinantes, parecem tomar forma dentro do carro e seguir para longe, aspirados por uma irrefreável curiosidade vinda do hemisfério norte. Personagens a essa altura bastante midiáticas emergem das palavras do neurocientista: ali está a estrela de 2003, Aurora, com sua revelada capacidade para mover um braço robótico só com a intenção do gesto, impelir esse braço a jogar o game posto na tela do computador com a força de seus neurônios, fazê-lo realizar por ela, em suma, a tarefa que lhe trará gratificação certa. E ali está Idoya que, em 2008, deixou o mundo boquiaberto e encantado ao conseguir fazer, desde uma esteira num laboratório da Universidade Duke, um robô mimetizar seus movimentos lá do outro lado do mundo, no Japão, e, por fim, quando os pesquisadores desligaram sem que ela esperasse sua esteira na Carolina do Norte, fazê-lo seguir andando só com a força de seu pensamento e de seu olhar.
Miguel explica ao jornalista inglês como a atividade elétrica dos neurônios pode ser convertida em códigos matemáticos para movimentar braços e pernas mecânicos, descreve os pequenos dispositivos introduzidos superficialmente no córtex cerebral, os ICM, que captam os sinais da atividade elétrica dos neurônios e os transformam em comandos em tempo real, tornando assim efetiva a conexão entre o cérebro e máquinas postas no ambiente. Fala da evolução técnica dos eletrodos (os dispositivos) bidimensionais para os tridimensionais, que lhe possibilitarão passar da marca de registro simultâneo da atividade elétrica de 600 para 60 mil neurônios. Aborda o conceito de interface bidirecional, que dará ao cérebro instantaneamente o feedback daquilo que a máquina está captando do ambiente (ele gosta do exemplo de que vamos poder experimentar no futuro, e com extraordinária intensidade, a sensação táctil de uma caminhada em Marte que nos virá de um robô posto a andar por lá). A exposição inteira é clara, calma, com as acelerações e pausas naturais de uma aula para turma conhecida - ou mesmo de uma conversa à vontade.
E entram nessa conversa o exoesqueleto, o sonho de colocar um paciente brasileiro tetraplégico para andar com o apoio dessa veste especial em 2014, detalhes científicos e técnicos de como e por que o pensamento, a vontade, o desejo do indivíduo, participam desse empreendimento do voltar a caminhar (Walking again é o nome desse projeto do exoesqueleto que tem suporte de um consórcio internacional).
A ligação cai quando já estamos entrando no Campus do Cérebro. Vejo de cara no terreno imenso (100 hectares) três grandes edifícios que estão sendo erguidos. Juntos, vão somar 14 mil metros quadrados de área construída. Ouço as explicações de Miguel: 1.400 crianças, da pré-escola ao último ano do ensino médio, receberão ali educação pública, gratuita e integral de alto nível. Com o passar dos anos, a matrícula começará quando as crianças estiverem ainda na barriga de suas mães, que terão atendimento pré-natal no centro de saúde materno-infantil, um elemento, assim como os berçários, sempre presente nos empreendimentos educativos realizados ou sonhados pelo neurocientista (a propósito, há outra experiência educacional de sua lavra já em curso em Serrinha, na Bahia, que fica para um próximo relato).
Serve certamente como campo de provas para este ousadíssimo empreendimento, cujos fundamentos arquitetônicos se mostram ante meus olhos, a experiência pioneira desse sistema de educação científica (neste caso, complementar ao ensino regular) já desenvolvida há quatro anos nas unidades da Escola Alfredo J. Monteverde de Natal e Macaíba, respectivamente para 400 e para 600 estudantes. Marginalmente percebo o que parece ser uma conspiração surda para agradar o formulador e comandante geral desse ambicioso projeto: todos os operários que trabalham na construção dos prédios ao cair daquela tarde vestem macacões verdes. É puro acaso, sei – e sorrio de leve.
Procurando bons ângulos para ver melhor o conjunto de prédios, circulamos com cuidado por sobre estreitas faixas de terra que delimitam áreas escavadas para as fundações de uma outra construção, enquanto Miguel vai deixando escapar em falas rápidas, olhos azuis brilhantes, partes de seu sonho: as crianças vão se revezar em turnos entre a escola pública regular e os laboratórios; cada um com seu I-Pad, eles irão desvendando e construindo novas formas de aprender e conhecer. Não sei se é real minha percepção, mas escuto sonoridades de intensa emoção em sua voz quando ele aborda esse passo a passo concreto no campo da educação para fazer da ciência um agente de transformação social. Esse é, aliás, seu mantra, o slogan que repete incessantemente desde que retornou (ainda parcialmente) ao Brasil em 2003, determinado a por de pé o IINN-ELS e uma dúzia de outras iniciativas similares, surdo e estudadamente indiferente às vozes dos céticos.
Um dia depois dessa visita ao Campus do Cérebro eu teria uma amostra privilegiada das novas formas de aprender a que Miguel se referira. Da ampla varanda de seu apartamento, I-Pad em punho, ele me falaria de um programa baratíssimo de astrofísica que tem instalado dentro do reader (“menos de um dólar”), me fornecendo detalhes, mostrando o que seria possível fazer. E então viajo até a lua de Natal que vejo bem ali à minha frente, vou me acercando aos poucos, suas crateras tornam-se mais e mais visíveis, os nomes dos sábios de todos os tempos que as batizam vão aparecendo, até que enxergo a pequena, única cratera que carrega o nome de um brasileiro, o grande herói de Miguel: Alberto Santos Dumont. Ali está ela bem em cima de um pequeno ponto do istmo que divide os mares Imbrium e Serenitatis. O cientista atravessado por intensas preocupações sociais me diz: “Isso é conhecimento que estava em mãos dos astrofísicos, agora ao alcance de qualquer criança brincando de ver o céu. Não dá para ficar amarrado às velhas fórmulas da escola pública, são imensas as novas possibilidades do aprender bem e com prazer para saber e poder transformar a realidade”. Eu quero ver Andrômeda. Depois exploro diferentes pontos do universo alcançável por telescópios numa viagem virtual extraordinária, maravilhosa. Mas isso é o dia seguinte.
Por ora observo os três blocos implantados paralelamente, que serão integrados por jardins e passarelas onde, em breve, crianças estarão circulando, brincando, aprendendo, crescendo - com suporte sólido para sonhar novos mundos. Miguel parece antever o que vai descrevendo do futuro próximo e, pelo brilho tão particular de seus olhos visionários, vejo quando de vida, intensa e apaixonada, está empenhada nessa criação de futuros – no plural, sim, porque se trata do futuro de milhares de crianças de Macaíba, talvez de milhões de outras espalhadas pelo Brasil se essa experiência influenciar muitas mais no sistema educacional brasileiro, e, claro, do futuro do país como nação, pelo que projetos assim podem mover do potencial criador de seu povo para a construção do conhecimento. Uma construção com gigantescas consequências, como o mundo inteiro sabe.
Vamos até a área do terreno delimitada e já preparada para receber as fundações do Instituto de Neurociência que fará parte desse campus. Vejo mais ao longe a área reservada para o Instituto de Estudos Avançados, que abrigará o supercomputador doado pelo governo suíço, desembarcado em Natal em dezembro passado, vindo diretamente da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL). A máquina um BlueGene/L, da IBM, com capacidade de 22 teraflops, pode processar e analisar informações em tempo real da atividade elétrica, magnética e metabólica do cérebro humano, além de fazer 46 trilhões de operações por segundo. Mas ele será transformado num BlueGene/Q, com capacidade para 1,2 pentaflop, o que o tornará uma das 10 máquinas mais velozes do planeta. Pesa duas toneladas e seu custo está em torno de R$ 20 milhões (antes do upgrade). Miguel conta que poucos países do mundo têm um equipamento igual e vislumbra o supercomputador sendo utilizado também por várias universidades e institutos federais de pesquisa, mesmo escolas da educação básica, em pesquisas e simulações na área de matemática, física e outras disciplinas, além de campos transdisciplinares, como o de estudos do clima. Os softwares que o acompanham permitem o treinamento na operação do supercomputador, e o neurocientista já imagina alguns operadores seguindo de Natal à Suíça para estudar o funcionamento de outros supercomputadores, depois de se tornarem craques neste. O BlueGene/L será, a partir do segundo semestre deste ano e certamente por algum tempo, o computador mais rápido da América Latina e um dos mais potentes do hemisfério sul.
Deixamos o Campus do Cérebro ao cair da tarde (escurece muito rapidamente na zona equatorial, Miguel me lembrou). No resto do fim de semana eu iria ouvir muito mais sobre os planos desse cientista brasileiro que alia a uma rara capacidade empreendedora e realizadora o tônus mental de sonhador incurável, que lhe faz tirar sempre uma nova ideia de dentro da que acabou de expor, numa espécie de moto contínuo verdadeiramente inesgotável. E isso se daria entre momentos de confraternização com seus companheiros de viagem, maravilhosos almoços e jantares numa terra onde os frutos do mar se oferecem numa abundância alucinada para deleite de comilões como eu, relatos hilários das aventuras de Miguel e colegas nos tempos da residência médica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP), risos e gargalhadas.
Deixei Natal no fim da manhã do domingo, 23 de janeiro, com a certeza de que a maior das muitas notáveis características de Miguel Nicolelis é uma coragem desmedida para formular e criar concretamente futuro no Brasil. Que sorte a nossa que ele seja brasileiro!
[1] *Macaíba, de acordo com a Wikipedia, fica às margens do Rio Jundiaí a 14 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte e integra a sua região metropolitana. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2010 sua população foi contada em 69 538 habitantes numa área territorial de 512 km².
Miguel Nicolelis é o "expoente máximo" da transformação radical do mundo tradicional para o mundo novo: o mundo da HUMANIDADE.na verdadeira acepção da palavra.Permito-me afirmar com admiraçao e sinceridade que o Professor Nicolélis é um ser humano dotado de uma profunda e incomparável sensibilidade. BEM HAJA PROFESSOR
ResponderExcluirlindo texto. o Roger pelo visto se contagiou com o entusiasmo do Nicolelis!
ResponderExcluirA crença de Nicolelis e o entusiasmo de Roger fazem acreditar que se o sonho existe, Ítaca é o destino . Parabéns
ResponderExcluir@sulains
caramba! quando o jornalismo de ciência deixa a gente emocionada, é por que, ufa, talvez o jornalismo tenha jeito. e, se o jornalismo tiver jeito, quem sabe o mundo também não possa achar o seu?
ResponderExcluirse tem alguém que está colocando em curso uma verdadeira Revolução no Brasil, esse alguém é o Nicolelis.
ResponderExcluirChico,
ResponderExcluiro texto é ótimo, no entanto o excesso de idas e vindas e de rodeios me fez "pular" parágrafos... Leitores como eu procuram textos lineares e sucintos.
Característica minha ler assim, característica tua escrever "assado".
e Miguel... Doutor Miguel, esperamos muito desse "cara".
Miguel Nicolelis não dá pra entender! Tanto bla bla e di novo nada! Pra quê tanto mistério tanta expetativa? Né? Nos diga coisas concretas!Faz tempo qui vem dizendo tamos fazendo muita coisa com sucesso! O tempo se vai e nada di novo! Desembuche Miguel ...mal di parkinson tem remédio ou não? Puxa à vida. né?
ResponderExcluirparabéns pelo especial, Chico. aliás, tenho gostado bastante de ler seu blog, apesar de estar comentando pela primeira vez.
ResponderExcluirah, e conheci seu blog justamente pelo fato de o Miguel Nicolelis ter divulgado um link para uma das suas postagens (se não me engano, a postagem sobre o ENEM).
abraços.