Escrevo com um olho na tela do computador e outro bastante atento às transmissões da Al Jazeera. Há rumores de que o ditador tirano Hosni Mubarak e sua família teriam deixado a capital do país e buscado abrigo no balneário Sharm el-Sheikh, paraíso natural litorâneo no Egito que recebe turistas do mundo inteiro. A confirmar. O tempo urge e o povo egípcio parece disposto a acelerar a dinâmica da História. Pode ser que, antes que eu consiga terminar o texto, Mubarak tenha mesmo feito o que deveria ter feito ontem: renunciar, abrindo espaço para que o povo possa finalmente começar a definir os novos rumos políticos e econômicos do país, em direção a tão almejada democracia, à conquista de liberdades e à reconstrução econômica. Mesmo correndo contra o tempo, acho que é importante refletir, ainda que brevemente, sobre o "dia do fico" de Mubarak.
Três fatos chamam a atenção e indicam que, depois do pronunciamento do ditador insistindo em permanecer na presidência e frustrando o sentimento das ruas, a revolução no Egito parece ter alcançado outro estágio e patamar. A Praça Tahrir reagiu ao anúncio do tirano com um urro de raiva. "O rugido foi tão poderoso que pôde ser ouvido um par de quilômetros em torno da Praça central do Cairo. Os jovens, responsáveis por deflagar a revolta, prometeram uma escalada nos protestos", relata o jornalista Marcelo Ninio, enviado especial da Folha de São Paulo ao Egito (disponível para assinantes).
A ira da população deve transformar os protestos, até aqui pacíficos, em explosões de violência. Nesta sexta-feira, o palácio presidencial e a sede da TV estatal amanheceram cercados pela multidão. O anti-clímax da noite de ontem deixou os egípcios profundamente frustrados - e revoltados. "Só cabe, pois, esperar a radicalização, perdidas ontem as últimas esperanças de que o ditador decidisse, ele próprio, remover o grande obstáculo para o início da transição, que se chama precisamente Hosni Mubarak. Seria a versão egípcia da tomada da Bastilha. Se bem-sucedida, transformaria em profética a frase de ontem de Obama sobre a História em desenvolvimento no Egito", escreve Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo. (também apenas para assinantes).
A temperatura elevou-se ainda com a convocação de greves, que atingem desde médicos e trabalhadores da saúde até motoristas de ônibus, ameaçando literalmente parar o país, com significativos prejuízos econômicos. Um horizonte com perdas financeiras causadas pelas paralisações (estamos falando de alguns bilhões de dólares) assusta e é capaz de mobilizar as elites dominantes (incluindo o Exército que, acredita-se, controla cerca de 30% dos negócios do país), ainda mais quando se considera a possibilidade de os trabalhadores do Canal de Suez cruzarem os braços. Pelo estreito passam cerca de 8% do comércio marítimo internacional (leia-se petróleo). Estados Unidos e União Europeia não querem nem ouvir falar nessa hipótese.
A impressão que se tem ainda é que o núcleo duro do poder, que até aqui sustentou Mubarak, finalmente rachou e se digladia em disputas intestinas, que sem sempre chegam com clareza à superfície e à opinião pública, mas que acabam por deixar rastros evidentes. "Até aqui, as forças armadas vinham assumindo uma posição dúbia, mas agora começam a manifestar apoio mais firme à população", avaliou Mohamed Habib, pró-reitor de extensão e assuntos comunitários da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe, no programa "Entre Aspas" transmitido na quinta-feira à noite pela Globonews.
Habib colocou inclusive em dúvida o fato de o pronuncimento de Mubarak anunciando sua permanência ter sido mesmo feito ao vivo. "O cenário, a roupa e a gravata eram os mesmos da semana passada. Em determinado momento, ele falava de propostas de mudanças na Constituição, que foram feitas na semana passada, não ontem", alertou. No mesmo programa, Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), destacou o afastamento gradativo entre governo do Egito e os Estados Unidos, em mais um claro sinal de divisões. "O vice-presidente Omar Suleiman veio a público para criticar as forças externas que tentam interferir nos destinos do Egito. Ora, é uma evidente referência aos Estados Unidos, e um apelo desesperado ao nacionalismo árabe".
Importante reforçar que esse estranhamento entre governo Mubarak e EUA se dá apenas aos 48 do segundo tempo e tão somente porque o Império já percebeu e reconheceu o fim da linha, entendeu que não há mais como sustentar o ditador e aproveita para tentar abandonar o barco que faz água, enquanto julga que ainda é tempo, para depois tentar construir o discurso "somos fiadores dos novos tempos, ajudamos a derrubar o tirano". Oportunismo político e estratégico. Hipocrisia. As referências de um Obama medroso e aliado de Mubarak já estão registradas nas narrativas históricas.
A aposta principal dos Estados Unidos agora parece ser uma transição controlada pelos militares egípcios, até chegar a um regime parecido com o da Turquia, onde as forças armadas funcionam como "espécie de elemento regulador da política local. Em um acerto em que a Irmandade Muçulmana tomasse parte, ainda que como força de oposição legalizada, o exército poderia segurar eventuais radicalismos", avalia o jornalista Igor Gielow, na Folha de São Paulo.
Mohamed Habib diz que a revolução conseguirá se consolidar apenas em dois tempos: na primeira fase, deverá ser formada uma coalizão de transição, com representantes das diversas forças políticas do país, que teria como responsabilidade elaborar uma nova Constituição democrática para o Egito, a ser referendada pelo povo. Em seguida, seriam então convocadas eleições para o Parlamento e para a presidência. Nasser vislumbra essa reconquista de liberdades, mas ressalta que há outra reconstrução talvez mais complicada: a da economia. "Nesse caso, sou mais cético", admitiu. Para ele, esse é um momento importante para se pensar como foi possível a Mubarak permanecer no poder durante tanto tempo. "A chamada comunidade internacional deve prestar contas disso".
No momento em que concluo o texto, crescem os rumores de que Mubarak teria mesmo deixado o governo. Mas a confirmação oficial ainda não veio. A multidão permanece nas ruas, fazendo História. As cenas na Praça Tahrir são de arrepiar. O blog vai continuar acompanhando essa História.
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