domingo, 31 de maio de 2015

LIONEL MESSI, O ÓPIO DOS BONS BOLEIROS





Semaninha futebolística difícil de engolir. Desceu arranhando, quase entalando na garganta. Caiu pesada no estômago, como se fosse bloco de cimento. Azia e má digestão. Gastrite. Corpo pesado. Falta de ânimo. Depressão. Se eu quero falar sobre isso? Muito. Tragam o divã, por favor. Boleiras e boleiros, preciso desabafar. Prometo pagar a conta do analista. Precinho camarada, por favor. A grana anda curta. A economia do timoneiro Levy não ajuda, está de amargar. Nem adianta fazer planilhas, contingenciar verbas. A conta não fecha. Tome demissões, enxugamento de gastos, redução de salários. Depois do condomínio, da luz, do transporte, do mercado, da feira, do gás, da corda no pescoço, do desespero no final do mês, das madrugadas angustiadas de insônia, não sobra nem trocado furado para ver o time do coração no estádio. Se o bolso do torcedor está cada vez mais vazio, a criar teias de aranha, os ingressos estão cada vez mais caros, escorchantes, preços abusivos. Vá lá, somos malabaristas contábeis, e talvez até empréstimos e parcerias com investidores chineses faríamos, se os espetáculos estivessem valendo a pena. Teimosamente apaixonados, estaríamos lá, nas arquibancadas, às duras penas, acumulando dívidas. Mas o que estamos vendo em campo neste início de campeonato nacional é crime. De lesa humanidade. Não vale o menor esforço do torcedor. Alguém consegue me dizer, por obséquio, o que se anda jogando nas tais arenas do país? Porque futebol certamente não é mais. Já vi pelejas muito mais emocionantes e tecnicamente bem disputadas na areia da praia do José Menino, em Santos. Ou no antigo e saudoso Desafio ao Galo, sensacional certame que reunia esquadrões da várzea em São Paulo, nos anos 1970 e 80, manhãs de domingo. Sei não. Suspeito que o patrono do Brasileirão atual seja Morfeu. Os jogos dão um sono danado. São modorrentos. Chatos. Burocráticos. Eficientes apenas para acalentar cochilos no sofá, na frente da televisão ligada. Os olhos começam a pesar, impossível controlar, uma piscada, outra, mais demorada, a narração ficando longe. Uma pescada. Breve. Quando a gente abre o olho, achando que foram só uns minutinhos, o jogo já acabou. Sem dor na consciência. No último final de semana, vi cinco das dez partidas da rodada. O Santos atuou sem vontade, irritantemente descompromissado, como se atuasse num casado x solteiros qualquer. Perdeu da Chapecoense. O Joinville, que perdeu de três para o São Paulo, não tem condições sequer de pedir para participar do campeonato regional da minha vila. Com todo respeito à agremiação catarinense. Não dá. O Palmeiras é um catadão, amontoado, daqueles que a gente montava correndo numa manhã de domingo, quando um camarada avisava na última hora que tinha arrumado um jogo contra. Com dez minutos de Grêmio e Figueirense, lembrei que tinha que corrigir provas. O ex-boleiro e arremedo de comentarista Casagrande definiu com precisão única o que foi Fluminense e Corinthians ao dizer que teria sido muito mais interessante ter ido a uma peça de teatro do que ser obrigado, por dever de ofício, a comentar o jogo. Só Renato Cajá salva. E o FBI estadunidense prende. 'Só eu?', surpreendeu-se o ex-governador biônico e delator do jornalista Vladimir Herzog, quando arrancado do hotel de luxo na Suíça e levado para o xilindró, antes do início do congresso da famiglia FIFA. Outros seis dirigentes graúdos foram também. Falta ainda incluir nessa seleta lista padrão FIFA o ex e o atual mandatários da Confederação Brasileira de Falcatruas. Pelo menos.  Ainda vai ter manifestação contra a corrupção na avenida Paulista com indignados paneleiros usando a camisa da CBF? Para não ser preso, o empresário de marketing esportivo que começou a carreira na emissora global e que até hoje mantém relações umbilicais com a vênus platinada aceitou devolver uma bolada de quase 500 milhões de reais. Imaginem quanto não conseguiu acumular. Propinas. Chantagens. Cntratos fraudulentos. Valores estratosféricos escritos em guardanapos durante almoços nababescos acontecidos em restaurantes de luxo. Barganhas nos acertos de direitos de transmissões televisivas de campeonato. Não sei de nada. A administração anterior é que deve responder. Eu só fazia o que o presidente mandava. Apoio todas as investigações. A FIFA não pode controlar dirigentes corruptos. Se o Zé das Medalhas resolver abrir o bico... O futebol padrão FIFA de negociatas me jogou na lona. Quase fui à nocaute. Comecei a ter certeza de que somos todos, os que continuamos a acompanhar futebol, verdadeiros paspalhos. Boçais. Cretinos fundamentais. Imbecis sem salvação. Por que raios continuamos torcendo? Foi quando, golpe fatal, o grilo falante da cosnciência me lembrou que a fatídica semana ainda teve as pedaladas regimentais do Imperador Dudu I, que conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados proposta que já havia sido rejeitada pela Casa. Uma colherada de leite de magnésia, por favor. O estômago arde. Amuado, resignado e mudo, no compasso da desilusão (como canta o príncipe Paulinho da Viola), liguei a TV no último sábado a tempo de ver o hino espanhol ser vaiado por 50 mil catalães e 50 mil bascos. Barcelona e Atlético de Bilbao, final da Copa do Rei - que, àquela altura, na tribuna de honra, parecia apenas se perguntar 'o que estou fazendo aqui?'. Com dez minutos de bola rolando, o comentarista alertava: Messi está sendo marcado de forma implacável. O argentino deve ter ouvido. Ficou irritado. Com vinte minutos, recebeu uma bola perto da linha do meio-campo. Ameaçou carregá-la para a esquerda, intermediária livre. Mudou de ideia. O melhor do mundo (lamento, ronaldetes, ele é infinitamente mais jogador que Cristiano Ronaldo) vive de desafios. Decidiu levar a pelota para bem perto da linha lateral. Faixa estreitíssima para manobras. Vários bascos no encalço dele. Com a redonda amistosamente grudada nos pés, como sempre faz, lá foi ele, bem sozinho. Iniciou o festival de dribles e canetas, em fila. Um, dois, três, quatro, cinco. Um dos zagueirões ainda tentou dar um rapa no argentino, por trás. Não achou nem a sombra do camisa dez. Eu e Daniel começamos a gritar. Golaço! Golaço! Que coisa linda! Que gol foi esse? Gênio! Gênio! Antológico! Começaram a chegar mensagens no face, no zapzap. Todas comemorando a obra-prima. Em êxtase, a torcida azul a grená urrava e reverenciava o craque. Minha depressão tinha sido rapidamente substituída pela euforia. Messi é o ópio dos bons boleiros. A mais pura e sublime seiva da flor de papoula. Enebria. Entontece. Entorpece. Anestesia. Faz hibernar os demônios e pesadelos. Cria realidades paralelas, nos transporta para outras dimensões. Multiversos que lembram, caramba, como é bom e maravilhoso gostar desse troço chamado futebol. Que gol foi esse, Lionel? Valeu a semana. Dane-se a FIFA. Aos infernos com dirigentes corruptos, ajustes fiscais neoliberais, Brasileirão modorrento, cunhas truculentos. Quero ver de novo seu gol. Outra vez. Mais uma. Novamente. Para quem sabe, simples mortal, tentar entender a maravilha que você desenhou com os pés.          

quarta-feira, 27 de maio de 2015

TREZE ANOS




Adoro essa foto – o sorriso, o carinho, os cachinhos, o momento, a alegria, a luz, as cores, o abraço, os rostos juntinhos, óculos fashion e transbordando personalidade. Eu e ela na Copa do Mundo. Minha menina grande. É o primeiro aniversário que ela passa longe da gente. Está em Ouro Preto, trabalho de campo com a escola, passeando pelas ladeiras, casarões e igrejas da cidade histórica mineira. Aprendendo sobre os poetas inconfidentes e outras bagas loucas. Muito loucas. Vai voltar cheia de novidades para contar, aposto. Ela adora falar. Pelos cotovelos. Desde sempre. Vou adorar ouvir. Como sempre. Sim, ela já mandou avisar que precisamos aproveitar bastante os próximos sete anos, quando ainda estaremos na mesma casa. Aos 20, vai morar sozinha. Quer viajar e conhecer o mundo. Viver em Londres. Pretende fazer Relações Internacionais. Não se conforma com as injustiças do mundo. ‘Pai, vou trabalhar com projetos que cuidem de crianças carentes’. Pensa também, quem sabe, em Letras. ‘Vou ser professora’. Adora ler, dos clássicos às distopias adolescentes contemporâneas. Diário de Anne Frank, Os Miseráveis e Convergente. ‘Pai, você não está entendendo, eu preciso desse livro. Quando a gente pode ir à livraria? Esse livro é vida, veio’. Quantas livrarias visitamos nesses 13 anos. Quantas histórias contamos um para o outro. Sentados no chão, antes de dormir, na mesa do almoço, pelo telefone. Alegres e tristes. Todos os dias, ela me ensina a perceber a humanidade de uma maneira diferente, mais generosa e solidária. É minha porção diária de otimismo e esperança. Carrega com ela, desde muito pequenina, uma vontade incontida de transformar esse mundão. ‘Pai, por que tem tanta gente racista e homofóbica? Por que os palestinos não podem ter um Estado deles?’. Por quê? Por quê? Por quê? Adora perguntar. Curiosidade à flor da pele. Por quê? Não aceita qualquer resposta. Exige argumentos, tudo muito bem explicadinho. Minha Emília de Lobato. Quando a gente menos espera, está lá, olhar perdido a mirar o horizonte, sem piscar. Brisando. “É bom, fico pensando na vida’. Diverte-se com boas séries de TV, filmes no cinema com as amigas (e, mais recentemente, também com amigo indiano, santista e de esquerda...), fanfics no celular, One Direction, Legião Urbana, Cazuza, Cássia Eller e Beatles. What Makes You Beautiful. Mudaram as estações. Somos tão jovens. Help. Acompanha futebol como gente grande. É das cornetas mais estridentes que conheço. ‘Pai, esse lateral é horroroso, como pode jogar no Santos?’. É minha consultora especial para assuntos de produção, tratamento e revisão de textos. Olhos bem críticos sobre tudo o que escrevo. Saudades. Lui querida, entre um pão de queijo e um doce de leite, receba aí em Black Gold, como diz você, beijos estalados e apaixonados de alguém que tem um baita orgulho de ser seu pai. Chato, às vezes, é bem verdade, como todos os pais. Juízo. Cuide-se. Dê notícias. Nada de maluquices. Seja educada. Mas que deseja com toda a explosão do coração batendo bem forte que você seja muito feliz, sempre desse seu jeito independente e espevitado. Espírito livre e libertário. Parabéns. Te amo. Muitão.

domingo, 24 de maio de 2015

NÃO TEVE FESTA PORTUGUESA NO PACAEMBU

Noite de sábado em São Paulo é sinônimo de balada. Melhor dizendo, de reunir a boleirada para uma festa, com certeza. Cantiga de amor pelo ludopédio, mui fremosa senhoura. Toca o fado, roda e gira e bate o pé. Deixa chegar a charanga da Leões da Fabulosa. Tem Portuguesa e Brasil de Pelotas pela série C. A tradicional Lusa do Canindé contra o centenário xavante gaúcho, num dos jogos mais cheios de charme da terceira divisão do Brasileirão. Vesti minha camisa verde e vermelha patrícia e zarpei para o Paulo Machado de Carvalho, 'o meu, o seu, o nosso Pacaembu', como não se cansa de cantar a voz grave do locutor oficial do estádio mais aconchegante e querido da cidade. Mas tem jogo mesmo? Boleiros e boleiras, a praça está às escuras. O portão principal, fechado. Subimos sozinhos a ladeira que dá acesso ao setor laranja. Não há flanelinhas cobrando sei lá quantos reais para tomar conta do carro, a dizer 'patrão, pode deixar, fica sossegado que vai estar direitinho quando o senhor chegar'. Os vendedores ambulantes não dão o ar da graça. Nada de cerveja, nada de água, nada de refrigerante, nada de 'aqui é gelada e duas por cinco'. Cadê aquele cheiro irresistível de churrasquinho de gato? Sanduba de calabreza? Nem mesmo os pequenos comerciantes de calçadas que vendem camisas genéricas de times de futebol montaram suas banquinhas. A rua é só silêncio. Até que no meio do caminho encontramos um fila. Grandinha, até. Para comprar ingressos. Encontra um, encontra outro, abraça, cumprimenta, como vai você, histórias de Éneas, Djalma Santos, Toquinho, Jorginho, menino Dener, Rodrigo Fabri e da Barcelusa lembradas com orgulho nostálgico. E nada de a bicha andar. Um gajo avisa que é porque as entradas ainda não chegaram na bilheteria. Fiquei sem saber se era verdade ou piada de português. Um passinho para frente, por favor. Começou a vender. Só um guichê funcionando. É de lascar. O futebol brasileiro não é para amadores. Só sobrevive quem gosta muito do tal jogo. Nossos gestores - tenho ódio dessa palavra, confesso - tratam pessimamente o torcedor, esse pobre coitado. O gado segue em frente, paciente. Quem sabe um dia estoure uma revolução boleira dos cravos, quando alguém começar a cantar nas arquibancadas Grândola, Vila Morena. Pá, pelo menos a Lusa começou acelerada, decidida como a esquadra de Cabral. Gol com menos de três minutos. Meio desajeitado, é verdade, chute estranho, bola mascada. Mas está lá, com sotaque arrastado bem da terrinha, no fundo do gol. Lusa-ê-ô. Lusa-ê-ô. A torcida bem que tentou empurrar. O time em campo, no entanto, estava mais para ensaio sobre a cegueira do que para as armas e os barões assinalados de uma ocidental praia lusitana. Difícil. A começar pelo goleiro Felipe, também conhecido como Mão de Alface. O lateral direito, coitado, deve ter recebido ordem da coroa portuguesa para não cruzar jamais a linha do meio do campo. Tratado de Tordesilhas. Houve momento em que um torcedor mais exaltado, provavelmente nutricionista de formação, achou por bem questionar os hábitos alimentares do atleta. 'Comeu feijoada no almoço, seu palhaço?'. A zaga chutava para onde o nariz apontava, como se costuma dizer lá na minha vila, Tudo bem, é jogo de campeonato. Mas só bola para o mato? Lateral esquerdo? Nem sei se entrou em campo. Quase pedimos licença ao árbitro para interromper a peleja por alguns segundinhos, só para que fosse possível apresentar a pelota para os volantes e meias. Atenção, gajos, essa é a bola. Tratem com carinho. Os atacantes não teriam lugar numa pelada de amigos de sábado, casados contra solteiros. Talvez nem no banco de reservas. A Lusa, tão detonada e achincalhada nos últimos tempos por diretores paspalhos e de duvidosa índole e por mandarins da confederação que rege o mais popular esporte do país, merece muito mais. 'Meu Jesus do céu, que time medonho, dai-me forças para suportar essa partida', lamentou um patrício perto do alambrado. 'Está parecendo jogo de pebolim. Só bate e rebate'. O raparigo tinha plena razão. Era bicanga para todo lado. A pelota passava mais tempo viajando pelo ar do que correndo lisa no gramado. E o juizão, hein? Sua excelência o árbitro merece capítulo à parte. Se a competência de nossos homens de preto (agora de amarelo, de vermelho, de rosa, com patrocínio na camisa, fones nos ouvidos) já é bastante duvidosa na série A, tentem calcular o que é um apitador da terceirona. Rabos de arraia e cotoveladas fartamente distribuídos. E o sujeito do apito a ordenar 'segue o jogo'. Foi quando me dei conta que um jogador da Lusa que não tinha sido anunciado na escalação, nem mesmo entre os suplentes, era um dos destaques em campo. Elemento surpresa, vai ver. Estratégia do técnico. O nome dele: Baralio. Incrível, a torcida quase todinha o conhecia. Gritava o nome dele. Dava ordens. 'Vai, Baralio. Corre, Baralio. Sobe, Baralio. Encosta, Baralio. Toca, Baralio'. E o Baralio lá, tentando se virar nos trinta para tentar dar conta do recado. Sem ligar para o Baralio, num lance bonito, o guerreiro xavante deixou o lateral da Lusa - aquele que não despreza uma boa feijuca no sábado - quase com a bunda no chão, para soltar uma bomba  no ângulo do Mão de Alface. Não dava mesmo para pegar, nem que fosse Mão de Tijolo. Irritadíssima, a torcida da Lusa mandou ver no festival de palavrões. Anotei alguns que, confesso, desconhecia. Os apelos ao Baralio, coitado, tornaram-se ainda mais intensos. 'Que merda, Baralio. Seu morto do Baralio. Faz alguma coisa, Baralio. Joga na área, Baralio. Está acabando, Baralio. Rápido, Barálio'. Não deu. Terminou empatado mesmo. A Lusa tem só um ponto na tabela da classificação. Tinha sido derrotada pelo Londrina na primeira rodada. Enfrenta o Madureira na próxima rodada, no Rio de Janeiro. Não vai ser fácil cruzar o Atlântico para voltar para a série B. O torcedor ao meu lado ainda tentou acomodar, exercício profundo de auto-convencimento, a lembrar que 'tudo bem, o time é novo, está apenas começando, é só treinar que vai melhorar'. Achei melhor não contrariar, chamar o fulano à realidade, mandar um 'cara, me desculpe, mas o time é muito ruim, dos piores que já vi em campo. Não vai dar'. Continuei quieto. Afinal, esse é o time da Lusa que vai passar no Tejo daquele torcedor nesta série C. Só resta continuar navegando.  

sábado, 16 de maio de 2015

MANÉ E PELÉ

O primeiro foi meio desajeitado, aos trancos e barrancos, aquele gol típico do atacante trombador. Se não dá na técnica, vai na canela. Faro do artilheiro. Um estourão do goleiro, o meia escora de cabeça, na intermediária. E lá vai o Mané como uma flecha indomável, de bem com a vida, firme e seguro, camisa listrada, 10 nas costas. Tira um zagueiro com leve toque, outro no corpo, com ombrada mesmo. Bate-rebate com o goleirão atônito. Bola rasteira, no fundo da rede. Um a zero. Treze minutos do primeiro tempo. Braços abertos como se estivesse sobre a Guanabara na comemoração com a galera ensandecida. O segundo veio no minuto seguinte. Exatamente, boleiros e boleiras, um minutinho depois, aos catorze. Podem conferir o cronômetro. Lançamento em profundidade para um colega atacante, que trombra com o goleiro. Estão lá dois corpos estendidos no chão. Nada. Normal. Segue o jogo, determina o juizão. Mané não quer nem saber. Entra voando, em diagonal. Alguém cronometrou o tempo? Coisa de fazer inveja a Usain Bolt. Gol. Dele. Camisa 10. Mané. E ainda levou uma rasteira que o lateral esquerdo palmeirense Denys assinaria sem pestanejar (os mais antigos vão me entender. Para quem não conhece, sugiro ver o lance do segundo gol da Internacional de Limeira, final do Paulistão de 1986. O tornozelo do ponta Tato dói até hoje). Mané fez que não era com ele. Levantou e saiu para o abraço. Insaciável, o terceiro veio aos dezesseis de jogo. Pintura. Ao receber cruzamento do lateral, Mané jogou a cintura de lado, preparou o corpo e bateu de direita, de lado de pé. Estilo retumbante. Aquela chapa que estufa as redes. O encontro do couro com as cordas, barulho sutilmente estrilante que leva torcedores ao delírio e faz ecoar aquele "gooll" único pelo estádio. No ângulo. Três gols em três minutos. Mané. Não, não eram os russos. Nem ele tinha combinado com os adversários. Mas, diante do camisa 10, eram todos joões. O quarto gol, ainda no primeiro tempo, foi do coadjuvante Long. Bem, se ele é longo, Mané nasceu em Pau Grande. Durmam com um barulho desses. O adversário tentou estrebuchar ainda. Tento de honra. Foi só. Long decidiu mostrar que não estava para brincadeira. Anotou o quinto. Bela pedrada também, de longe, arqueiro adiantado, cobertura. Renascentista. Mané não faria melhor. Faria? Provável. Façam as apostas. Lance especial ainda estava por vir. Atenção. Faltando dez minutos para o fim da festa, Mané cruzou para Pelé resolver a parada. Demais! Acabou! Seis a um para o Southampton contra o Aston Villa. Penúltima rodada do Campeonato Inglês. Mané, o senegalês, correu para abraçar o companheiro de time - o italiano Pellé. Coincidências da bola. Lamento frustrá-los, boleiros e boleiras. O Mané era outro; Pelé, também. Sou saudosista confesso. Há quem diga mesmo que eu deveria ter nascido a tempo de ver futebol nos anos 1960. Arte. Sou dos 70, geração coca-cola, não, não vi Mané, o genial Garrincha, jogar com Pelé, o insuperável Edson Arantes do Nascimento. Por uns triscos de frações de segundos, no entanto, cheguei a achar que a minha telinha da TV estava hoje transmitindo, em branco e preto, algum jogo da velha Canarinho. Aquela que não sabia o que era perder de 7 x 1.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A NOVA LÍNGUA PORTUGUESA

- Pai, estamos aprendendo uma baga muito louca em Língua Portuguesa.
- Como, Lui?
- É, muito estranho.
- Sim, estranho, mas o que é uma baga?
- A matéria, pai. Nesse caso. Uma baga é como 'uma coisa'.
- Entendi. E a baga é muito louca... mas qual é o conteúdo, mais especificamente?
- Os poetas da Inconfidência. Bem diferente o jeito como eles escreviam.
Aprendi mais uma. Importante para não ficar moscando. Nem brisando.

domingo, 3 de maio de 2015

SINAIS (E O VIGÉSIMO PRIMEIRO TÍTULO PAULISTA)

Vamos, moleque, vamos lá buscar essa taça. Vá lá, logo cedo, quando fiz o convite para o Daniel, quase uma intimação, a fala tinha muito mais jeito de preleção motivacional, vestiários e aquecimento, o pai que não quer ver o filho esmorecer. Nenhuma convicção de título. Vitória por dois gols não é fácil. Pauleira. Os dois times são equilibrados. Pênalti é loteria. Sofrimento. "Levanta e anda, vai", como canta Emicida. Fundinho de esperança. Porque o futebol é feito de sinais. Uma decisão, de infinitos sinais. Exatamente. Sinais. No domingo passado, quando Dudu estourou aquele petardo do pênalti no travessão da Arena Palestra, antigo gol das piscinas, Santos com um a menos em campo, comemorei. Comedidamente. Aliviado. Um trisco confiante, meus amigos e amigas boleiros e boleiras santistas. Uma decisão é feita de sinais. No comecinho da mesma primeira peleja, aliás, Arouca, santista de quatro costados, volante praiano de muitas glórias e conquistas, Paulistas e Libertadores, tinha deixado o campo, machucado. Sobe a placa. Substituição. Sinais. Aos que me perguntaram durante a semana qual meu palpite para a derradeira, em Urbano Caldeira, respondi: "a vantagem é verde. Não sei se perderam o título por conta do resultado magro na casa deles. Mas certamente deixaram de resolver a parada por lá. No Alçapão...". A galera palmeirense sentiu o baque. Saiu silenciosa e preocupada do estádio, uma semana atrás. Bom sinal. Outro. Hoje, lá fomos nós. #PartiuVilaBelmiro. Eu e o Dani descemos a Serra com as camisas da sorte. Com tradição boleira não se brinca. Ainda mais em final. No volante, pilotando a caravana, o amigo Zé, irmão santista que foi meu ombro e fiel escudeiro nos anos duros das vacas magras, quando o Santos era motivo de chacota na escola. Éramos os dois únicos santistas da classe. Resistimos bravamente.Trinta e cinco anos de amizade. Trinta e cinco anos correndo estádios atrás do Peixe. Na saúde e na doença. Na alegria e na tristeza. Juntos, arrisco dizer que faturamos 80% das finais que vimos, sem direito a margem de erro do Ibope ou do Datafolha. Temos agora a fiel companhia do pé quente Daniel (segura, Zé, o Joca vem na próxima). De casa, tensa, sem tirar os olhinhos da TV, a Lui manda bons fluidos. #TamoJuntoFilha. O almoço foi no Almeida, um dos mais charmosos e tradicionais restaurantes de Santos. O moleque estava uma pilha de nervos. Mudo. Respondia só com acenos de cabeça. E com sinais. Como deve ser numa final. Calma, filho, vai dar tudo certo. O time joga completo. Com Robinho. Com ele em campo, não perdemos. Uma final é repleta de sinais. File à francesa e cerveja gelada. Corta para Urbano Caldeira, sem mais delongas. Entra com o pé direito, Dani. Alçapão fervendo. Caldeirão. As cadeiras em que sentamos na semi contra o São Paulo estão vazias, Dani. Vamos nelas. Veio subindo um tiozinho com raminhos de arruda, não, galhos de arruda, não, quase árvores inteiras de arruda nas orelhas. Uma coroa romana, sem louros. Com arruda. Ave, César. O imperador é santista. Baita sinal. Boleiros e boleiras, o gol de David Braz foi na nossa frente. Vamos buscar a taça! Boleiras e boleiros, o gol do Ricardo Oliveira foi na nossa frente. Camisa nove. Daniel faz aniversário no dia 12 de maio. Hoje é 3 de maio. Faço as contas, bem rápido. Faltam nove dias. Camisa nove. Eu tinha dito que seria dele o gol do título. Foi o décimo primeiro tento do nosso centroavante no campeonato. Artilheiro do Paulista. Onze. Neymar Jr. O número da camisa que estou usando. Sinais. Muito sinais. Múltiplos. Evidentes. A taça. O time não desceu para os vestiários no intervalo - como naquele dezembro de 1995, quando num Pacaembu com energia que jamais vi num campo de futebol goleamos o Fluminense e avançamos à final do Brasileirão. Um maluco do lado me cutuca. Saca uma foto do celular. 'Mano, hoje de manhã deixei um chinelo estilizado de presente para o David Braz. É sério, olha só. Sabe como chama minha empresa? A Sorte. O primeiro gol foi dele". São muitos os sinais. O gol do Palmeiras também foi bem na nossa linha. Desse sinal eu não gostei. Dani desabou no choro, ameaçou não ver os pênaltis. De novo não, pai. Perdemos a decisão passada nas penalidades. Melhor também não lembrar desses sinais. Sai prá lá, azar de mico. Me dá a mão, filho. Vem cá. Vamos ver como no Brasil e Chile da Copa. A Vila enlouquece aos berros de 'é, Vladimir'. Ele era o goleiro reserva do Santos na final do Paulista de 2014, aquela em fomos derrotados nos pênaltis pelo Ituano. O arqueiro alvinegro titular era o Aranha. Que agora está no Palmeiras. Opa, os bons sinais voltaram. Vamos levantar essa taça. As três primeiras cobranças do Santos foram feitas por zagueiros. Escolhas arriscadas. Os três fizeram. Ousadia e alegria. Vladimir! Travessão! O Verdão perdeu duas. Só mais umazinha e a taça vem. As fileiras próximas viram-se todinhas para o Daniel. Solidárias. Garoto, é agora. Porra, você merece, peixinho. Sofreu prá cacete. Vai ser para você. Agora você vai chorar de novo. Mas vai ser de alegria. Presta atenção. De relance, meio sem querer, bato o olho nas nossas cadeiras. Fileira L. De Lucas. Lucas Lima. Duas vezes L. Camisa 20. Duas vezes 10. Pelé. O Rei. Eterno. Que abundância de sinais, minha gente! Não dá para perder o título com esse transbordamento de sinais! E, gol, gol, gol, gol, a taça é nossa! Nem sei quantos torcedores correram para pular e abraçar o Dani. Virou mascotinho, o símbolo da conquista. Distribuiu cumprimentos. Abraçou e tirou selfies com muita gente. Rapaz, com sua permissão, essa foto com ele é para guardar lá em casa, esse é santista, me disse um dos tantos anônimos em êxtase. Ligamos para a Lui, para comemorar, tão logo o sinal do celular deu o ar da graça. Sinais que atrapalham. Mas é preciso ligar. Com tradição não se brinca. Campeões mais uma vez, filha. Faixa no peito (não pudemos trazer a taça, lamentavelmente), voltamos pela avenida da praia. Itararé, já em São Vicente. Ali eu cresci. Lá vai um menino magrinho, canelas finas, correndo com a bola à beira mar. Dribla um, dribla outro, pára, levanta a cabeça. Achei que era eu. Infância. Adolescência. Molecagens. Futebol na areia. Putz, quanta história para contar. Zé, nessa praia, a gente passou boa parte das nossas vidas. Chico, nessas areias a gente passou uma parte muito boa das nossas vidas. Saudades. Vermelho. Sinal fechado. Aproveitei para abrir o vidro do passageiro. Deixei o vento salgado e molhado bater bem de leve no rosto. Cheiro e gosto de de seis, dez, quinze, dezoito anos. Quarenta e três anos. Sinais. Verde. O sinal abriu. Estrada, voltando para São Paulo. Palpites para o Brasileirão? Sei lá. Vou prestar atenção. Nos sinais. Exatamente. Falo nada. Só observo. Enquanto isso, com licença, vou lá comemorar com a Lui e com o Dani a taça que prometi que a gente ia levantar.