segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

NARRATIVAS DO IMPEACHMENT

A obsessão das oposições (no plural mesmo, porque são vários os partidos, grupos, veículos, atores e movimentos que se colocam nesse campo, uma nova direita que se organiza por aqui), desde que as urnas foram abertas em 26 de outubro de 2014, é uma só: derrubar a presidenta da República e defenestrar o PT do poder. Custe o que custar. Mesmo que seja preciso jogar o Brasil num abismo. É ideia fixa. O comportamento histérico, movido por combustíveis fósseis como ódio e ressentimento, traduz-se nas palavras de ordem "fora Dilma", "fora PT", repetidas como um mantra e à exaustão nas manifestações de rua e nas tentativas de debate sobre o tema. Sobre o assunto, aliás, recomendo a leitura de "Dilma Rousseff e o ódio político", do psicanalista Tales Ab'Saber, publicado pela editora Hedra. Num raciocínio binário, quem contesta a tese do impedimento é "petralha", "corruPTo" - mesmo que critique duramente os muitos erros políticos e econômicos do governo Dilma (afinal, defender mandato democrático conquistado nas urnas é bem diferente de concordar com ações e agendas da administração federal). Na tentativa de deflagar o impeachment, as oposições recorrem a narrativas embriagadas por verdadeiros malabarismos retóricos e de argumentos, na busca por uma 'bala de prata' com calibre para 'justificar' o afastamento de Dilma. Já falaram em fraudes nas urnas (oi?), questionaram as contas de campanha (aprovadas em dezembro passado por unanimidade, num processo que teve como relator o ministro Gilmar Mendes), forçaram a barra para encontrar na Lava Jato qualquer lista em que aparecesse o nome mágico "Dilma", até finalmente - e desesperadamente - recorrerem ao mequetrefe discurso das 'pedaladas fiscais' (comuns em outros governos, incluindo o de FHC, e assinadas também pelo vice Michel Temer, no exercício da Presidência). Como já perceberam que mesmo essa tese é juridicamente frágil, insustentável, os defensores do impeachment começam a sistematizar novíssima narrativa. Sinal de alerta. Notem como, nos últimos dias, representantes das oposições começaram a afirmar que o "impedimento da presidenta é apenas processo político". Abandonam desavergonhadamente a dimensão jurídica do processo, exatamente porque não são capazes de respaldá-la. É gravíssimo. Primeiro, porque a própria Constituição exige que fique caracterizada, de forma cabal, a prática de crime de responsabilidade para que o impedimento possa prosperar. Além disso, ao considerar apenas e tão somente o viés político (que obviamente existe, mas não pode jamais ser único) e jogar na lata de lixo as exigências jurídicas, o impeachment ganha definitivamente ares de um vingativo terceiro turno eleitoral, recorrendo a mecanismos que tampouco estão consagrados na nossa Constituição - e para romper justamente a ordem institucional. Mais: desse convescote revanchista, participam apenas parlamentares. O povo está excluído. Teríamos de volta uma eleição indireta, convocada às pressas, imposta e conduzida nos gabinetes e plenário do Congresso Nacional. O protagonista estaria confinado ao papel de coadjuvante. Passaria a vigorar a 'democracia sem povo', para deleite de nossas oposições conservadoras e da nova direita em formação. Sem eufemismos - o que está em marcha é um golpe contra a democracia brasileira. É preciso condená-lo e rechaçá-lo. A disputa é também de narrativas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

LIÇÕES DO #OCUPASP

Aula de História – Todas as mudanças, transformações e conquistas sociais foram historicamente alcançadas com mobilização popular, resistências e lutas políticas.
Aula de Física – Escola ocupada é escola que sonha.
Aula de Matemática – A soma dos quadrados das esperanças juvenis será sempre superior ao quadrado da truculência do ‪#‎nossogovernadorsecreto‬. Como queríamos demonstrar.
Aula de Química – Dois átomos de Dignidade mais três átomos de Combatividade. D3C2. Ligação valente. Elementos mais nobres da tabela periódica.
Aula de Literatura – Ensaio contra a cegueira.
Aula de Música – Amanhã há de ser outro dia, apesar de #nossogovernadorsecreto. Existe amor em SP.
Aula de Biologia – Escolas ocupadas são organismos vivos que pulsam no ritmo acelerado de sístoles e diástoles de sonhos e utopias.
Aula de Artes – A resistência vitoriosa embalada por apresentações de dança, saraus literários e peças de teatro.
Aula de Língua Portuguesa – Escreva um milhão de vezes, #nossogovernadorsecreto, em seu caderninho de caligrafia: “A Polícia Militar não pode bater em estudantes”, “A Polícia Militar não pode bater em estudantes”, “A Polícia Militar não pode bater em estudantes”...
Aula de Educação Física – E que golaço! Os estudantes merecem uma placa.
Aula de Geografia – As ruas, praças e avenidas pertencem ao povo.
Por tantas e tão ricas aulas, nossa gratidão eterna aos estudantes das escolas públicas estaduais de São Paulo. De coração, muito, muito obrigado, molecada.
Está apenas começando.

domingo, 29 de novembro de 2015

‪#‎nãofecheaminhaescola‬ ‪#‎ocupasãopaulo‬

Voltamos ao Colégio Fernão Dias, em Pinheiros, para deixar com os guerreiros e guerreiras que ocupam a escola desde o início de novembro o colchão que havíamos prometido. "Caraca, mano, agora vamos poder dormir melhor. Valeu, mano!". Pela manhã, havíamos passado por lá para entregar mantimentos (arroz, feijão, legumes, ovos) e livros, muitos livros. Nesse retorno, fomos gentilmente convidados a visitar a ocupação. "Entrem, entrem, vamos sair da chuva". Cumprimentos, abraços, acenos e apertos de mão. Meu pai e meus tios estudaram aqui nos anos 60, contei aos garotos que nos receberam, saguão principal do prédio. "Sério mesmo, mano? Aqui? Da hora". Passamos pela secretaria e pela diretoria. Tudo organizado, arrumado e preservado. Sentadas no chão, duas garotas preparavam cartazes com a agenda da semana. Disse aos estudantes que tinha me cadastrado para as aulas livres, mas ainda não tinham me chamado. "Não, mano, vamos chamar, vamos chamar. O senhor pode deixar os seus contatos com esse rapaz aqui, por favor?". Claro. Passei meu celular. "Sobre que assunto o senhor quer falar?". Posso falar de jornalismo, de literatura, de futebol... podemos juntar tudo isso e fazer uma grande roda de leitura e conversa, sugeri. Conversem e vejam o que preferem, o que é melhor para vocês. "Combinado. Da hora! Vamos te ligar ainda hoje". Para mim, pedi, melhor se puder ser durante a semana à tarde ou no final de semana, qualquer horário. "Pode deixar". Passamos pelo refeitório. "O pessoal está preparando o almoço". O cheirinho que vinha da cozinha estava para lá de convidativo. "Querem comer com a gente?". Agradecemos. Já tínhamos almoçado. Passamos pela pátio, as cadeiras cuidadosamente ajeitadas em roda para a apresentação de dança marcada para o meio da tarde. No final da noite, sessão de teatro. De manhã, tinham participado de um sarau. "Essas atividades têm sido muito boas, da hora, ajudam a movimentar a escola, a não ficar parado. E a gente vai aprendendo". Perto da entrada do ginásio, uma caixa com livros. "É aqui que a gente dorme. É coberto, protege do frio e da chuva. Agora está arrumadinho, já demos uma geral. À noite, esparramamos os colchonetes, cobertores, caixas, lençóis. O que tiver. Mas não é fácil dormir no chão duro, mano". O pessoal do Colégio Oswald veio aqui durante a semana, não?, confirma a Lui. "Sim. Ajudaram bastante também". Cacoete de repórter, não me contenho e pergunto como foram os dias com a polícia militar isolando a escola. "Foram tensos, mano. Foi na primeira semana. Fizeram um cordão e não deixavam ninguém entrar nem sair. Ficamos com medo, mas não abandonamos a escola. A gente tinha um colega que conseguia pular o muro num lugar que os pms não sabiam, não conheciam. Ele levava e trazia tudo o que a gente precisava. Agora foram embora. Está mais calmo. Mas a gente sabe que podem voltar, mano". Não há líderes. Não há hierarquias. Tudo é discutido coletivamente, em assembleias. As tarefas são divididas. Na saída, encontro um jovem abraçado ao colchão que doamos. "Poxa, valeu, valeu mesmo, muito obrigado, vai ajudar um montão. É bem molinho...". Me despeço e digo que, aqui fora, estamos acompanhando e aprendendo muito com eles, tentando construir redes de solidariedade. "Sério, mano? Puxa, obrigado, obrigado mesmo. A gente não vai desistir". Senta e chora, governador. No portão, desejamos força e paciência. Continuem resistindo. Atravesso o portão inebriado, leve. Há algo de politicamente muito bonito e singelamente transformador acontecendo em São Paulo. Com a alma tocada por uma esperança renovadora, agradecemos. Valeu, garotos e garotas. O futuro certamente não será mais como era antigamente, mano.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

MENINA BOLEIRA

Saio de casa pedindo 'torça direitinho, hoje é quarta. Tem jogo'. É um código nosso, mandinga que costuma dar certo. Lanço em seguida o mesmíssimo pedido. 'Você sabe, estarei em aula. Vá me mandando notícias'. Ela sorri com os olhos enigmáticos de jabuticaba e balança a cabeça afirmativamente, chacoalhando os cachinhos castanhos que me hipnotizam desde que a peguei no colo pela primeira vez. Ninguém mais no mundo tem esses cachinhos. Continua com os fones no ouvido, celular sintonizado em alguma série do Netflix. Once upon a time? Friends? Anos Incríveis? Não pergunto. Estou atrasado. 'Pai, sim, nem vem, eu já estudei', antecipa-se, esboçando caretinha de reprovação. Não perguntei também. Tudo bem, reconheço. Ia perguntar. 'Tchau. Vai com cuidado', faz questão de dizer, me abraçando apertado. Volta a se esticar no sofá. Não falha. Na hora combinada, lá está ela. Cumpre à risca o bordão 'missão dada é missão cumprida'. Quando busco apressado o celular na pasta, intervalo da aula, a narração da peleja via zapzap é precisa. Em cima de cada lance. José Silvério, Fiori Gigliotti, Osmar Santos  e Milton Leite não fariam melhor. 'Times em campo. Começou. Estamos mal, sem pegar na bola. Só bicão. Dez minutos. Melhorou um pouco. Ricardo Oliveira machucou. Nada grave. Time passou a atacar bem. Três chances perdidas. Uma delas na cara do gol. Pênalti! Gol! Fim do primeiro tempo. Um a zero para nós'. No melhor estilo Primavera Feminina, Simone de Beauvoir no ENEM, meu corpo, minhas regras e #foracunha, conversa de igual para igual com os boleiros da escola. 'Pai, fiz uma aposta com um garoto da perua. Ele ficou espantado. Disse que sei muito de futebol'. Nas férias de final de ano no hotel em Atibaia, gincanas na piscina, desafiou um rapaz que duvidava que existem dois Borussias na Alemanha. De bate pronto, sem deixar a bola pingar no chão, a boleira emendou: "Borussia Dortmund e Borrusia Mönchengladbach. Tudo bem, não sei pronunciar esse nome direito. Mas existe esse time'. Golaço. O garoto pediu tempo para consultar os universitários. Voltou a campo reconhecendo o acerto. E aplaudiu. Vá lá, às vezes ela é turrona, cabeça dura, demora a dar o braço a torcer, mesmo depois de perceber o equívoco. Outro dia um professor nos disse: 'é muito respondona essa menina. Das mais respondonas que conheço. No bom sentido, claro'. Era um elogio. Além do Santos, gosta de acompanhar os campeonatos espanhol, inglês e alemão. Torce um tiquinho para o Barcelona (efeito Neymar), um tanto para o Chelsea ('David Luiz é maravilhoso') e um montão para um dos Borussias - o Dortmund ('Lewandowski foi para o Bayern de Munique, principal rival, é um traíra'). Conseguem ouvir? É certamente uma das grandes corneteiras do futebol contemporâneo. Cornetadas de gente grande. Profissionais. Resmunga, reclama, detona, xinga, diz que está tudo errado. Bufa. Provoca o irmão. 'Que cara horrível. Como pode jogar no Santos?'. Adora ser o centro das atenções. Sei não. Suspeito que às vezes seja só para me irritar. Para a gente começar a discutir. E dar início a mais uma mesa-redonda entre pai e filha. Às vezes a gente briga, bate de frente. Sou ariano torto, metido a perfeccionista. Atormento. Duelo de titãs. 'Pai, chega, deixa de ser chato'. É a senha para colocar ponto final no debate. E começar a pensar na próxima rodada. Lembro-me com ternura da primeira vez em que estivemos juntos na Vila Belmiro. Santos e Santa Cruz, última rodada do Brasileirão de 2006. Ela tinha quatro anos. Viu o time do coração fazer 3 x 1. Pulou, comemorou, cantou. Quando faltavam cinco minutos para o fim do jogo, esgotada, apagou. Dormiu no meu colo. Profundamente. Não a acordei. Encostei o rostinho dela no meu ombro, transformado em travesseiro de pena de ganso. Como fazia desde que ela era bebê, urrando de cólicas e sem conseguir sossegar, comecei a cantar o hino do Santos no ouvido dela, bem baixinho, suavemente, das sociais da Vila até o carro. Uns dez minutos. Cantiga de ninar. Acomodei-a na cadeirinha. Prendi os cintos de segurança. Subi a Serra em silêncio, transbordando alegria. Sorriso do rosto. Peito estufado. Coração enternecido. Minha filha no estádio comigo, na cadeira cativa que tinha sido do meu avô. Afetos, ontem e hoje. Sempre. Como acorda cedinho - também desde pequenina - e corre para abrir a internet e pegar os jornais, é a Lui quem tradicionalmente me faz um resumo das notícias futebolísticas do dia. Adora os programas da ESPN Brasil. 'O Trajano é muito engraçado'. Não perdoa nem os escorregões ou deslizes dos comentaristas profissionais. Às vezes deixa escapar um sonoro 'nossa, quanta besteira esse cara está falando'. E o machismo nosso de cada dia teima em afirmar que futebol não é esporte para mulheres. Somos uns pobres idiotas.  

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

OBJETIVIDADE FUTEBOLÍSTICA

É um dos primeiros conceitos discutidos no curso de Jornalismo. Objetividade. Mantenha a neutralidade e a imparcialidade, busque sempre A verdade, sugerem os mais puristas, como se fosse possível a um sujeito que narra as histórias do tempo presente esvaziar-se de todas as suas percepções e registros de mundo para se isolar numa redoma de vidro, inodora, incolor e insípida, impenetrável e higienizada, para dali apenas relatar assepticamente o que vê. Mas nossos olhos não são também filtros? E como exigir que um ser humano embriagado por experiências e sensibilidades atue como uma máquina, um robozinho? 'São os idiotas da objetividade', contestaria mestre Nelson Rodrigues. Nas brechas desse discurso, aparecem professores às vezes tidos pelo mercado como rebeldes e mais sintonizados com a complexidade do mundo contemporâneo - que não cabe mais num relato gelado e puramente técnico - para sugerir ponderações, nuances, cinquenta tons de cinza entre o branco e o preto, equilíbrio, transparência e honestidade. A notícia como a melhor versão possível da realidade.
Inevitável. Sempre que preparo essa aula, questionando a neutralidade da verdade e sugerindo o equilíbrio da melhor versão, fico me imaginando repórter de campo de uma rádio, escalado para cobrir final de Copa do Mundo no Maracanã contra a Argentina. Vamos esquecer o oito de julho de 2014, por favor. Não houve Alemanha. Tomo posição atrás dos bancos de reservas. O eterno Mário Filho está lindo, colorido, abarrotado, urrando em festa de esperança. O jogo é duríssimo. Não tenho mais unhas. Numa bola perigosa do Brasil, que passou triscando o pé da trave direita hermana, o fone de ouvidos ganhou vida e saiu voando. O narrador estranhou os ruídos esquisitos. Meus lábios estão feridos. De tanto andar dois metros para lá, dois metros para cá, segurando o microfone, acabei desenhando uma trilha, linha retinha, na área da imprensa. Numa das minhas entradas para dar informação sobre substituição, os argentinos explodiram petardo no travessão do Brasil. Quase soltei um palavrão cabuloso, ao vivo. Segurei na garganta. A galera respondeu cantando ainda mais alto. Ainda bem, não era "com muito orgulho e com muito amor". O som do Maraca ensandecido seria capaz de abafar as conversas da minha família em festas de aniversários e de pulverizar os gritos de guerra dos godos, ostrogodos e visigodos, na iminência de invadirem o Império Romano.
Eu cantava junto. Baixinho. Tudo bem, reconheço, não muito. E no finalzinho da partida, quando já imaginava ver prorrogação e pênaltis ajoelhado, numa bola espirrada na área e mal rebatida pelo zagueiro hermano, Neymar entrou dividindo. De carrinho (até pensei em escrever sobre mais uma pintura do menino-gênio, sei lá, um chapéu, um voleio, dribles enfileirados... mas acho que um gol feio seria mais bonito, nesse caso). Só consegui ver a pelota cruzar a linha. Dei três cambalhotas para lá, outras três para cá, naquela trilha já traçada. Terminei com um peixinho, deslizando, braços abertos, indo parar bem perto da arquibancada, quase na grade de proteção, onde um mar de torcedores comemorava com o camisa 10 da Seleção. Deu tempo de ouvir o final do 'goooooooollllllll' narrado pelo locutor. Ainda deitado, dei os detalhes do lance, o que só eu tinha visto. Arfando. Quando o professor árbitro apitou o final da decisão, arranquei a camisa da rádio e deixei à vista a da Seleção. Corria sem rumo pelo gramado. Aparvalhado. 'É hexa, é hexa, é hexa...", berrava. Pulava com o microfone na mão, no embalo das comemorações dos jogadores, tentando entrevistá-los. O locutor pediu que me acalmasse. "Vai ter um piripaque". Minha resposta: "fulano, isso não é um tribobó da serra versus caixa prego qualquer. É final de Copa do Mundo!". Êxtase. Imaginar como seria meu comportamento se fosse um Santos campeão da Libertadores contra o Corinthians? Consigo. Voltem o filme. As mesmíssimas cenas e roteiro, só que ainda mais tensas e dramáticas, com as devidas adaptações: a camisa alvinegra praiana por baixo e o "é tetra" no final. Tirem as crianças da sala.
Quando volto à realidade mundana, dou risada e penso com meus botões - há mais mistérios entre a atuação de um repórter de campo torcedor do Santos e da Seleção em dia de final e a objetividade da sala de aula do que imagina a vã Filosofia do Jornalismo.

sábado, 7 de novembro de 2015

LULA E FHC - QUANDO UNS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS

Não tenho procuração para defender A ou B e penso que crimes de qualquer natureza ou 'tamanho' devam ser todos investigados, independentemente do cargo ou status do suspeito, respeitados todos os trâmites e procedimentos determinados pelo Estado de Direito. Mas vamos lá, um minutinho de atenção para um modesto e simples exercício de análise de discurso. Observem as duas matérias abaixo, publicadas hoje pelo 'Estadão'. Estão na mesma página. A notícia sobre o ex-presidente Lula recebe destaque, está no alto, embora as doações já fossem conhecidas. O título sugere que foi Lula, pessoa física, quem recebeu o dinheiro, e não o Instituto Lula, o que faz muita diferença. A empresa é nomeada - Odebrecht. E quem faz a afirmação tem nome também, é a Polícia Federal, estratégia discursiva que pretende garantir legitimidade à afirmação. Argumento de autoridade. Passemos agora à segunda notícia, que vem abaixo, com menos destaque, embora essa fosse, jornalisticamente, a novidade - pela primeira vez, foram identificados repasses para o Instituto FHC. Notem também que, enquanto lá 'Lula recebeu...', aqui a 'empreiteira doou...'. Faz toda a diferença. Ações atribuídas a sujeitos diferentes. Além disso, a empreiteira não tem nome, é genericamente chamada de 'empresa'. O destinatário da grana é o Instituto FHC, não o ex-presidente FHC. E quem chancela a denúncia é um 'laudo', e não mais a PF. Generalidades, de novo. Pergunto - esse tratamento narrativo absurdamente diferenciado e seletivo é casual? Mera coincidência?

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

DE ONDE VEM ESSA MALUCA PAIXÃO?

Vem desde antes de eu nascer. Dos chutes de primeira na barriga da minha mãe. Dos sonhos inocentes que já tinha com futebol enquanto era aconchegantemente protegido pela placenta e alimentado pelo cordão umbilical. Vem da primeira bola que ganhei, molequinho de tudo, ainda aprendendo a andar e a chutar. Do uniforme cinza de goleiro tão desejado, com luvas e joelheiras, que chegou naquele Natal dos meus cinco anos. Sim, fui arqueiro quando criança. Por pouquíssimo tempo. Não demorei muito para descobrir que minha bola era outra. Essa paixão tresloucada surge de modo incontido graças àquelas peladas que eu jogava sozinho no terraço estreito e comprido da chácara da minha querida São Bernardo do Campo de tantas lutas políticas, correndo atrás de uma pelota dente de leite, oval e murcha, imitando voz de locutor para narrar partidas épicas, inesquecíveis. E que golaaaçççooo!!!! Ela ficou pedindo me chuta, me chuta, ele encheu o pé! É culpa das bolas de meia, bolas de gude. Das bolinhas de tênis. De papel. Das tampinhas. Dos potinhos de iogurte. Das latinhas e garrafinhas de refrigerante. Tudo era bola. A gente chutava o que viesse pela frente. Num arroubo infantil de empolgação, bica sem medir a força, meu sapato (que não tinha cadarço) saiu voando. Só parou na vidraça da sala da diretoria na escola. Cacos espalhados. Meus pais foram chamados. Encanto que vem das caneladas e disputas heroicas com os primos Bicudinhos no quintal em ladeira e cheio de árvores ardilosas da casa de meus avós paternos em São Paulo. Daquele primeiro título paulista que comemorei, em 1978. Os primeiros Meninos da Vila. Da Copa de 78, na Argentina. Nelinho, Amaral, Batista, Zico, Roberto Dinamite, Dirceu. A batalha de Rosário contra a Argentina. A farsa da seleção peruana, que tomou de seis para colocar os hermanos na final. A ditadura sangrenta no país vizinho. Nos países vizinhos. Amor sublime e cego que explode graças à mágica Seleção de 1982, do mestre Telê Santana. Arte pura. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Jamais haverá meio-de-campo como aquele. Nunca mais. Do choro doído e inconformado imposto pelo italiano Paolo Rossi. Três gols. Brasil desclassificado. O que faço agora? Reforço a paixão ouvindo as histórias que meu avô materno narrava sobre Pelé e o único e absoluto Santos da década de 60. Orgulho que nem todos podem ter. Revela-se forte e implacável nas sístoles e diástoles aceleradas um sentimento que recorda o sangue escorrendo do joelho ralado no chão de ladrilhos vermelhos da escola. a canela roxa atingida pelo bico da chuteira do desleal adversário no torneio interclasses, a calça rasgada do uniforme (a bronca da mãe), o dedão do pé direito (sou destro!) quebrado e a distensão na coxa que escondi do técnico do time para poder disputar torneios contra outras escolas (mesmo manco), as pernas em brasa lanhadas nos campos de terra. É amor desmedido que lembra os clássicos jogos de botão no estrelão (meu Santos de acrílico era imbatível), o pênalti que bati na tabela de basquete numa final de campeonato (salão, não botão), as partidas que acompanhei com ouvido colado nos meus vários e queridos companheiros radinhos de pilha, os terceiros tempos invadindo as madrugadas, o dizer para a namorada 'espera só mais um pouquinho, está terminando o jogo' ou 'amanhã não dá, é dia de Santos', as aulas que matei em diferentes séries para ouvir ou ver amistosos da Seleção. Vem dos estádios, do cimentão das arquibancadas da Vila Belmiro, do Pacaembu, do Morumbi, do Canindé, do Parque Antártica, da rua Javari, da Comendador Souza. É tão forte a paixão tresloucada que foi capaz de sobreviver à seca de títulos da Seleção, ao Brasil do técnico Sebastião Lazaroni, aos dezoito anos de fila, das vacas magras e de times medonhos do Santos. Para explodir novamente, desavergonhadamente com os gols de Bebeto-Romário, Rivaldo-Ronaldo-Gaúcho, Giovanni, Robinho-Diego, Neymar. É paixão pelo drible. Pelo improviso. Pelo inesperado. Pela ginga. Pela malemolência. Pela malícia. Pela delícia de uma bola debaixo das canetas. Pelo chapéu. Pelo voleio. Pelo sem-pulo. Pela bicicleta. Pelo cruzamento milimetricamente feito, na cabeça do atacante. Pela meia-lua. Pelo drible da vaca. Pelo rolinho. Pela pedalada. Pelas improvisadas e impagáveis mesas-redondas com os amigos num bar, cerveja gelada e sem hora para acabar. Pela coleção de camisas. Pelas crônicas de Nelson Rodrigues. Pelas memórias de uma Copa no Brasil. É amor que me faz acompanhar os jogos da série A. Da B também. E da C, por que não? Partidas da D. Da série Z. Não existe? Inventemos já. Estaduais. Regionais. Várzea. Desafio ao Galo. Campeonato italiano. Espanhol, inglês, russo, argentino, mexicano, francês, português, holandês. Libertadores. Liga dos Campeões. Liga dos Perdedores. Liga dos Mais ou Menos. Qualquer liga. É paixão que obrigou a me virar nos 30 (ou nos 43) para acompanhar o maior número de jogos da rodada do último final de semana. Quando acaba, já começo a suar frio, síndrome de abstinência, e a pensar na do próximo final de semana. Cansa? Nunquinha. É eterna paixão imortal. Esclareci sua dúvida? Ave, futebol.    

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SETE PECADOS BOLEIROS CAPITAIS

Ira - Começa quando você abre os jornais do domingo e lê a escalação do seu time. Uma incontrolável onda de raiva se forma no fígado, rebate no estômago, queima o esôfago, dá gosto ruim na boca. Só zagueiros pangarés, volantes brucutus, meias cabeças de bagre, atacantes bem limitados. Como é que se pode disputar um campeonato com esse elenco? As vísceras se voltam contra a diretoria, burra e incompetente, que não sabe contratar e mente com o tal "bom e barato". Mas você é teimoso, apaixonado pelo time, pega o ônibus, o metrô, paga o estacionamento, fica na fila, banca o ingresso abusivo, os sorvetes e salgadinhos a dez contos nos estádios, senta num lugar ruim, quase ponto cego, vê um zero a zero insuportável, debaixo de um temporal com pé de vento e relâmpagos explodindo ao seu lado, Na volta, todo encharcado, ao buscar um bom banho quente e o descanso do lar, você descobre que seu bairro está sem luz. 'Sem previsão de volta', avisa a eficiente Eletropaulo.
Gula - Sabe aquele torcedor afoito que chega mais cedo só para comer aquele delicioso churrasquinho de gato feito na porta do estádio? O cheiro é irresistível, alega. Tem toda razão. E o sanduba de calabresa? De pernil? Porçãozinha de amendoim medida pela mão grande do vendedor já nas arquibancadas é obrigatória. Tem o sorvetinho de limão, de chocolate, de coco. Clássicos. E a pipoca deliciosamente fria e murcha. Agora pense naquela sua pelada de final de semana, solteiros x casados, com camisa x sem camisa, colete amarelo x colete azul. Você está sozinho, quase na linha do gol. Levanta a mão. Grita. Pede a bola. Seu companheiro de time, firuleiro de marca maior, inventa mais uma pedalada improdutiva, dá uma voltinha, tenta um rolinho, põe a mão na cintura, sempre de cabeça baixa, sem olhar o jogo. Você insiste. 'Solta essa bola'. O cara ignora. Rabisca mais um drible e sai com bola e tudo pela linha de fundo. Você não aguenta. "Fominha fdp". Pois é. Imagine o que sentiu o Rei Pelé, no histórico San Siro de Milão, em 1990, jogo que comemorava os 50 anos do Atleta do Século, quando o ilustre Rinaldo resolveu assumir a condição de estrela da festa. O atacante que atuava pelo Fluminense arrancou pela esquerda. Pelé corria ao lado dele, livre, livrinho da silva, sem marcação. De frente para o gol. Pedia a bola. Rinaldo deve ter pensado 'agora eu se consagro' (valeu, Milton Leite!). Ignorou apelos reais. Chutou. Para fora. Deveria ter sido sumariamente condenado por "gula exacerbada", incisivo terceiro, parágrafo segundo do artigo 16 do Código de Comportamento Futebolístico. Crime com agravantes, já que Pelé deixou de marcar o gol 1285.
Soberba - Esse é fácil. Basta lembrar daquele torcedor que nunca foi a um estádio e que, nos momentos de graça do time para quem ele acha que torce, veste aquela camisa vintage retrô com cheiro de naftalina que estava esquecida numa gaveta e fica te ligando, mandando mensagens e postando selfies nas redes sociais para perguntar 'você viu meu time? Você viu a vitória? E o nosso estádio? Que jogão, hein? Cara, o que vocês ganharam nos últimos tempos? ‪#‎seremossemprecampeões‬,‪#‎pracimadeles‬. Timinhos, jamais serão!'. Quando a fase é ruim, draga, seca, o time dele não ganha nem bolinha de gude, o malandro some, esquece futebol, guarda a camisa no fundo de um baú da avó. 'Futebol? Que bobagem. Coisa de gente pouco inteligente. Nada a ver. Onze imbecis correndo atrás de uma bola. Não gosto'. Prefere conversar sobre assuntos mais cultos. A crise na Síria, quem sabe. Terá todas as respostas para o conflito. Sabe tudo.
Luxúria - Melhor perguntar no posto Ipiranga. Ou para boleiros que costumam organizar festinhas bem apimentadas e movimentadas, às vezes até mesmo em vésperas de jogos decisivos. Um conhecido dirigente de grande clube italiano - chegou até a ser primeiro-ministro da Itália, imaginem vocês - tem verdadeira obsessão por essas comemorações. Aqui no Brasil, esses exageros não existem. Nossos atletas de cristo se reúnem apenas para ler a bíblia, orar em grupo e tomar suco de laranja. Com gelo e sem açúcar.
Vaidade - Alô, Cristiano Ronaldo, já terminou de arrumar o cabelo, antes de bater a falta? Está bonito na imagem do telão, fique sossegado. Salva de palmas também para as empresas fornecedoras de material esportivo, que a cada ano lançam uniformes novos, modelos e camisas com cores escalafobéticas, que por vezes não guardam qualquer relação com as histórias dos clubes. Têm as camisas comemorativas também. A gente vai comprando todas, fazendo a coleção, ano a ano. Por quê? Sei lá. Instintos mais primitivos. Pura vaidade.
Avareza - "Apego excessivo ao dinheiro". Blatter. Valcke. Platini. Grondona. Havilla. Leoz. Teixeira (de Miami). Eurico. Aidar. Mustafá. Teixeira (de Santos). Sanchéz. Del Nero. Marin. Webb. São tantos...
Preguiça - É sempre uma experiência deliciosa ver o craque do seu time, aquele que foi contratado a peso de ouro para comandar a equipe e liderá-la na conquista de títulos, pisar no gramado com um legítimo e estiloso chinelo havaianas, última moda em muitos centros de treinamento, e desfilar sua empáfia descompromissadamente pelo gramado, pensando no aumento salarial e nas luvas que ele pretende pedir na próxima renovação contratual, a negociação com o exterior, a multa rescisória. Parado na intermediária, o garotão põe as mãos na cintura. Faz pose de açucareiro. No primeiro pique - nada de extraordinário, um galope de uns cinco metros, bola lançada na frente -, ele corre com o freio de mão puxado. Trava repentinamente. Coloca a mão na parte posterior da coxa direita. Agacha. Faz cara de muito sofrimento. Olha para o banco de reservas. Com aquele gesto típico, girando os dedos indicadores, pede substituição. Sai mancando. Na entrevista coletiva, media training, vai dizer que a contusão foi grave, vai precisar provavelmente de três a quatro meses no departamento médico, para somente então retomar os trabalhos com bola. Não quer arriscar previsão de volta. 'Uma pena, estava começando a me entrosar, a encontrar meu melhor jogo', lamenta. Dá uma raiva.
Volte ao primeiro pecado.

sábado, 17 de outubro de 2015

BRIGA EM FAMÍLIA

Não há racionalidade num torcedor de futebol. O mesmo decreto inglês (ou chinês? Há controvérsias) que criou o ludopédio, definindo as regras do esporte, determinou também por tabela que espasmos de tensão, estados de espírito fortemente alterados e reações escalafobéticas e estapafúrdias acompanharão comportamentos boleiros, sempre que a redonda rolar (e até mesmo quando ela estiver descansando). Que o digam a mesa da minha sala, amistosamente esmurrada, e a porta de entrada do apartamento, graciosamente chutada em tardes ou noites de jogos do Santos. Os vizinhos já se acostumaram aos palavrões. Nem ligam mais. Acho até que se divertem. Suspeito que tenham anotado alguns impropérios novos em seus caderninhos. Acho que ouvi alguns deles em serenas reuniões de condomínio. Controles remoto da TV a cabo? Já quebrei - e troquei - um montão. Até óculos entortei e esmaguei, numa disputa em que perdemos a vaga na final aos 48 do segundo tempo. Fiquei estatelado no chão por mais de meia hora, imóvel, mudo, no escuro, ao final da partida. No estádio, não há perdão para um bandeira que marca impedimento inexistente. Para árbitro que anula gol legítimo. Para atacante que erra gol feito. Para chinelinho que faz corpo mole e não corre. Para técnico que faz substituição errada. Para torcedor novato e virgem de arquibancada que senta a seu lado e, no lance decisivo, resolve puxar papo e discutir a má campanha do time. O campo, Luiza e Daniel sabem, é território livre do palavrão. Assim ficou combinado. Os amigos que me conhecem de longa data preferem não cutucar a onça. Dizem que me transformo, que as expressões de meu rosto mudam. Fico transtornado, garantem. Outro Chico. Uma amiga muito querida já me disse, não uma só vez, que não entende como um sujeito racional, controlado e cerebral como eu pode se deixar abalar tanto por um mísero jogo de futebol. É que é... futebol. Sinto muito. Jamais vou conseguir convencê-la de que não tem jeito. No futebol, vísceras cantam e batucam mais alto que neurônios. O coração acompanha o ritmo. Além do mais, sou ariano. Torto. Dia desses li num desses precisos e rigorosos testes de facebook que mesmo o cérebro de um ariano é muitas vezes regido pelas batutas dos instintos mais primitivos. É mais forte que eu. Os conhecidos menos chegados, sem muitas intimidades e não acostumados às explosões, invariavelmente deixam escapar um perplexo "você fica assim com o Santos? Com a Seleção? Sobe em mesa de bar para torcer? Não acredito. Não consigo imaginar você nesse estado!". Não tenham medo. Podem continuar por perto. Sou bonzinho. Sou normal. Continuo comunista, mas não como criancinhas batidas no liquidificador. Já fui para Cuba, sem ninguém precisar me  andar. #ProntoFalei. Para o pobre torcedor, há ressacas mais longevas (perder de goleada ou clássicos é osso duro de engolir). Outras são quase instantâneas (derrota quando a classificação já está garantida). O fato inexorável, amigos boleiros, amigas boleiras, é que tudo passa. A crise econômica vai passar. O mandato da Dilma vai passar, em 2018. O Eduardo Cunha vai passar (sei não). O transe provocado pelo futebol sempre passa. A única coisa que não passa é a vontade de ser presidente a qualquer custo do Aécio. E do Serra. São os pontos fora da curva. Exceções que confirmam a regra. Aos que se preocupam solidariamente com meus ataques e minha saúde, minha gratidão. E uma convicção, para tranquilizá-los - mesmo no máximo do descontrole, no auge dos xingamentos, no ápice do diálogo com o fígado, nunca, nunquinha me meti ou me envolverei em brigas de futebol. Nesga de lucidez sempre resta. Recorro a ela. Tudo bem, há a rusga numa mesa de bar, a discussão por telefone, uma provocação nas redes sociais. Depois a gente resolve com abraço, carinho e cerveja. Rivalidade. Ficamos nisso. Jamais violência. Abomino a selvageria da força bruta, qualquer circunstância. Já corri de confrontos entre organizadas. Piquei a mula e me escondi atrás de banca de jornal quando a cavalaria da sempre bem preparada Polícia Militar paulista apareceu descendo o sarrafo em quem viesse pela frente deles. Ajudei a formar cordão de proteção para a entrada de torcedores adversários na Vila Belmiro. Separei porrada em arquibancada. No currículo boleiro de mais de 40 anos que tanto me orgulha, para não mentir, apenas um cartão amarelo, uma advertência leve por "ter chegado às vias de fato movido pela maldita bola". Foi em casa. Briga com meu irmão. Também santista. Motivo - um jogo do Santos. Contra o Guarani. No estádio Brinco de Ouro. Campeonato Paulista de 1997, dia 19 de fevereiro, noite abafada de uma quarta-feira. Eu já estava formado, quase casado. Ele estava terminando a faculdade, dois anos mais novo. Eram os tempos das vacas magras, o Santos não ganhava nem disputa de par ou ímpar. O time era pavoroso. Comecei vendo a partida sozinho, pela TV, conformado com mais um fracasso alvinegro. Até saímos na frente. Nem resmunguei quando o Guarani empatou. Marcamos o segundo. Seguramos o resultado até os 40 do segundo tempo, o time de Campinas com um a menos em campo. Pensei, é hoje, vitória fora de casa, coisa linda. Vou até abrir uma breja e comemorar. Ouvi o barulho da chave na fechadura. Calafrios. Meu irmão nem tinha chegado na sala, o corredor de entrada era longo. Gol do Guarani. Empate. Falei nada. Fuzilei com o olhar. Pelos códigos boleiros que nos unem umbilicalmente, ele sabia perfeitamente que eu estava dizendo, com raiva, 'porra, por que não esperou o jogo acabar para voltar? Estava dando tudo certo". Não deu tempo dele sentar no sofá. Gol do Guarani. Virada em três minutos, a cinco do final do jogo. Explodi. "Cacete, que puta pé frio! Pé gelado! Conseguiu fazer virar um jogo que estava ganho! Sai daqui! Vai embora porque a gente ainda vai perder!". Não vimos o final da peleja. Só depois fui confirmar que tinha acabado mesmo 3 a 2 para o Bugre. Não lembro a sequência exata. Acho que o que veio em seguida foi assim. Meu irmão, de terno e gravata (eu de pijama), avançou com fúria na minha direção. Tentou me acertar um soco. Uma voadora. Decidi entrar de vez naquela esparrela. Nos atracamos e começamos a rolar pela sala. Derrubamos banquinhos e cinzeiros, esbarramos em mesinhas de canto e de centro, demos cabeçadas no chão. Eram chutes, murros e pernadas para todos os lados. Esbaforida, sem saber o que fazer, minha mãe só conseguia pedir 'parem, por favor, parem. Vocês vão se machucar'. Encarecidamente. Maternalmente. Meu pai, que já dormia (era quase meia-noite), tentou controlar o enrosco com berros do quarto, Adiantou nada. Desafiamos. Éramos duas bestas feras desferindo sopapos. Minha irmã dormia o sono dos anjos. Nem se abalou. Chegamos rolando ao quarto, abrimos a porta com coices, o cabideiro coalhado de roupas foi ao chão. Quem tentou agir como pacificador foi meu irmão mais novo. Acordou assustado, todo descabelado, desceu aparvalhado do beliche e tentou tomar pé da situação, meio babeta: 'o que está acontecendo?'. Olhos ainda quase fechados, colocou uma mão no meu peito, a outra no ombro do irmão briguento. Tentou nos afastar. Saiu faísca. Virou o alvo. Levou porretada dos dois. 'Não se meta'. Voltou rapidinho e esbaforido para a cama. 'Imbecis. Vou dormir. Vocês que se resolvam'. Deitou, cobriu-se e apagou. A quebradeira só teve fim quando meu pai apareceu na porta. Só precisou pronunciar um 'chega. Agora'. Os exércitos recuaram, internamente jurando revanche e segundo tempo, talvez prorrogação e cobrança de pênaltis. Disputa num outro torneio. Os vizinhos nem ousaram reclamar da algazarra. Além de general das tropas do apartamento 61 da saudosa rua Lisboa, meu pai era sub-síndico. Respeitadíssimo. Acho que fiquei uma semana sem falar com meu irmão. Uns dois jogos do Santos, vimos em cantos distantes. No terceiro, já estávamos juntos, como sempre foi, rindo e xingando o time em uníssono. Sempre fomos parças alvinegros da Vila, na alegria e na tristeza. A história da briga - desvio único de conduta - faz parte do folclore da família. Quando nos encontramos para mesas-redondas com rodadas de cerveja, lembramos e rimos do episódio bizarro. Claro que nos arrependemos. Patético. Infantil. As versões, no entanto, permanecem diferentes. 'Você me ofendeu', ele alega. 'Você veio para cima de mim, Só me defendi', respondo. O pé frio naquela noite? Nem ele nega. Sai, zica! Pega aí a cerveja gelada. Um brinde.                    

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

LEGIÃO, 25 ANOS DEPOIS

Guardo poucas lembranças do almoço daquele Dia dos Pais, 12 de agosto de 1990. Acho que engoli a comida com duas ou três garfadas, dez mastigadas. No máximo. Não prestei atenção às normalmente divertidas conversas familiares. Estava nada preocupado em degustar ou apreciar o sabor ou tempero do macarrão ao sugo, do bife acebolado, da salada de tomate, batata frita. O cardápio não deve ter escapado muito disso, é o tradicional em nossas reuniões. Está bom de sal? E o molho? Quer esquentar mais um tiquinho? Quer mais? Sei lá. Tinha trabalho da faculdade. Ficou para depois. Paciência. Dou um gás durante a semana. Juro, não era só a ressaca da balada da noite anterior. Naquele domingo, apenas o show da Legião Urbana, no Parque Antártica, tinha importância. Estado máximo de excitação. Geração coca-cola. Os ingressos tinham sido comprados fazia mais de mês. Horas na fila, numa loja na rua Augusta, acho. Senta, levanta, anda. Espera. Senta, levanta, anda. Discute. Reclama. Ombradas, malandros tentando passar na frente, ele estava guardando para mim. Cai fora. Lá no fim. Compra pela internet? A gente nem imaginava que um dia seria possível. Também não tinha corredor exclusivo de ônibus, bilhete único, ciclofaixa, embora a então corajosa prefeita Luiza Erundina travasse uma batalha hercúlea para garantir a qualidade do transporte público na cidade. Subimos no primeiro Lapa 175-H que passou, linha que cortava a avenida Sumaré, do viaduto Paulo VI à praça Marrey Junior. Melhor dizendo, nos penduramos na porta de trás (ainda era por onde se entrava) no ônibus superlotado. Não nos mexíamos, Torcíamos para o motorista ser bonzinho e compreensivo e não arriscar qualquer manobra mais ousada. O escapamento soltava uma fumaça preta horrorosamente fedida. Respiramos tudinho. Na esquina do estádio, o trânsito travou. Bateu aquele dilema - e agora, como vamos pagar essa porcaria? Nem pensar em chegar até a catraca. Impossível. Princípio de confusão e gritaria. Pula, pula, salta, sai logo. Vai começar o show. Não vamos pagar? Não era momento para arroubos de honestidade. A massa ensandecida começou a empurrar. Entendi a mensagem - ou pula ou será pulado. Quando armei e calculei o salto acrobático, sei lá se foi de sacanagem ou porque precisava avançar mesmo, o motorista acelerou. Não tão de leve. Foi o suficiente. Tombaço. Caí estatelado no meio da rua. De joelhos. Agora reza e pede perdão pelo calote, moleque babaca, deve ter pensado o motorista. Para não passar mais vergonha, tentei levantar rapidinho, cara de paisagem, como se nada tivesse acontecido. Ficou pior ainda. Ainda sem equilíbrio, sem saber ao certo aonde estava, atordoado, caí de novo. Que vergonha. Tudo bem, tudo bem. Sem machucados. Só a calça rasgada. Estilo. Óbvio, na madrugada, depois do show, sem a adrenalina, doeu para cacete. Até hoje, nas rodas de amigos e em encontros familiares, a queda legionária é motivo de gargalhadas. Finalzinho de tarde, o velho Palestra já estava iluminado. Vinha gente de todos os lados - da Turiaçu, da Pompeia, da Diana, da Tucuna, do viaduto Antártica. Gente cantando, gente bebendo, gente gritando, gente correndo. Vários rolezinhos. Sempre que conto essa história, Luiza, minha filha mais velha, cheia de pudores éticos (que bom), manda um "pai, não acredito que você furou fila! Você, todo certinho, furou fila no show do Legião!". Não, filha. não furei. Sério mesmo. Porque não existia fila. Eram multidões que se empurravam nas apertadas portas de acesso. Godos, visigodos e ostrogodos deviam se comportar dessa maneira em espetáculos que frequentavam. Decidimos entrar de vez naquela dança e tomar de assalto o Império Romano. Assumimos nossa porção bárbara. Seguimos o embalo. Sobrevivemos. Nem sonhem com lugares marcados, numerados. Senta no primeiro centímetro quadrado vazio que encontrar. Andamos até o setor oposto ao palco. Ali, ali, rápido. Chegamos. Uns dez minutos antes do início do show. Coincidência – dali, vi muitos jogos do Santos. Ali, oito anos mais tarde, perderia - e reencontraria – a aliança de casamento. Corre à boca pequena que é por conta dessa façanha que a arena passou a se chamar Alianz Parque. Bem, é outra história. O gramado era um formigueiro humano. Cadeiras e arquibancadas superlotadas. Lá fora, a confusão continuava. Muita gente ainda tentando entrar. Ficaríamos depois sabendo que teve rolo com ingresso falso. Biógrafos estimam que foi o maior show da história da banda. Há quem fale em cem mil pessoas no estádio. Exagero. Umas sessenta mil. A Legião subiu ao palco pouco depois das oito da noite. Renato Russo vestia a tradicional bata branca. Carregava uma rosa também branca na boca, que colocou bem perto do microfone. Antes de dar boa noite, avisou: “nenhuma guerra pode ser santa”. O Iraque acabara de invadir o Kwait. Os Estados Unidos, preocupadíssimos em preservar acesso às reservas de petróleo do Oriente Médio, já se movimentavam para combater as tropas de Saddam Hussein, na primeira Guerra do Golfo. A invasão aconteceu em janeiro de 1991. Vivíamos os tempos difíceis do Plano Collor. Contas e poupanças tinham sido confiscadas e bloqueadas. O desemprego era galopante. Havia um pessimismo que tomava conta de todos. Muita gente queria ir embora daqui. Via meus pais perdendo o sono, fazendo contas. Cortando gastos. Meus irmãos mudando de escola. Eu procurava estágio. Virava adulto. Naquela noite de agosto, o líder da Legião estava inspiradíssimo. Elétrico e incrivelmente sóbrio – no que podia ser a sobriedade de Renato. Entrei em estado de transe. O show foi meu divã. Durante pouco mais de duas horas, me deixei transportar para outra dimensão. O mundo real ficou para trás. Esqueci o medo de uma guerra mundial, deixei de lado a angústia da falta de projeto nacional. No palco, a Legião enfileirava petardos. Renato cantava “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, “quem me dera, ao menos uma vez, provar que quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante e fala demais por não ter nada a dizer”, “temos todo tempo do mundo”, “quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar pra todo o mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”, “quero colo, vou fugir de casa, posso dormir aqui com você. Estou com medo, tive um pesadelo”, “por que é mais forte quem sabe mentir?”. Cantei. Pulei. Sonhei. Como se não houvesse amanhã. Legião, já no nome, era a antítese ácida daquele espírito individualista e negativo que insistia em nos contaminar. Um sopro, um respiro. Quando as luzes do Palestra foram acesas, eu estava esgotado. Feliz. Realizado. Até achava que dava para ser , quem sabe, um pouquinho mais otimista. Duraria pouco. Eu sei. Eram dias duríssimos.  Não foi tempo perdido. Já não somos tão jovens. Mas Legião continua embalando meus sonhos, pensamentos, lembranças, dúvidas, agonias. Minhas dores e meus amores. E os da Elisa, da Luiza e do Daniel. Paixão de família. Basta entrar no carro para ouvir o pedido “pai, coloca o CD do Legião”? É aquele duplo, ao vivo, com a gravação do show daquela noite mágica de 1990. Emoções nostálgicas. Conto e reconto essas histórias. Eles se divertem. Na semana passada, saindo da aula, piscou o zapzap. Mensagem da Luiza. “Pai, você não acredita... vai ter show da Legião! Vamos? Precisamos ir!”. Como eu posso recusar um convite desses? Chegou outra mensagem. “O Dani também quer ir”. Há quem diga que é nessas horas que um pai explode de satisfação. Corremos para comprar os ingressos. Sem filas. Vinte e cinco anos depois. Que país é esse? Ainda não sei. A ansiedade é a mesma. Maior, talvez. 

domingo, 20 de setembro de 2015

FUTEBOL QUE CASTIGA DRIBLES

'Roda, roda. Abre na lateral. Boa. Perfeito. Agora volta com o fixo, está livre. Sai para receber. Atenção, sem rifar. Sem perder a bola. Avançou um ala, o outro fica. Fica, porra! Eu mandei ficar!". Do banco de reservas, ao lado da mesa de arbitragem, o professor gesticulava e berrava, nervoso. Tinha a prancheta na mão esquerda, a direita com dedo em riste, apontando o que queria que fosse feito. Bombardeio de instruções para seus comandados. O que ele quer mesmo? Moleques de dez anos. Quem via das arquibancadas tinha a impressão de que os garotos estavam atordoados, sem saber se deveriam se concentrar no que acontecia em quadra ou se prestavam atenção nas palavras - às vezes pouco amistosas - que vinham do treinador. "Olha a marcação, já falei. Cuidado com a sobra. Olha as costas. Mas que cacete, que merda! Parece que não treinou. Quer sair? Quer sair?". Os boleiros se esforçavam. Mas as pernas pesavam. Tremiam. Nitidamente. Medo. Paúra. Pânico de errar. Qualquer passe mais forte ou torto, adversário a recuperar a bola, lá vinha expressão de desespero, mão levantada e espalmada, imediato pedido de desculpas dirigido ao banco. "Perdão, professor, foi mal aê. Foi mal. Tentei. Eu tentei". O time jogava numa retranca de dar sono. Os quatro na metade da defesa da quadra. Sem arriscar. No vestiário, o técnico tinha sido claro. Claríssimo. "Caralho, é para jogar na boa. Só na boa. Sem arriscar. Quero a posse de bola. Toca, recebe, volta. Girando, sempre girando. Vamos jogar no erro deles. O empate não é ruim. Entenderam?". O que se via dentro das quatro linhas era a obsessão mecânica por fazer valer os combinados feitos durante a preleção. Robozinhos em ação. "Corre, corre, vai!". O fixo corria. "Pára, cerca, cerca!". O ala cercava. "Para trás, acalma, recomeça!". O atacante recuava a bola. As estatísticas do auxiliar do treinador apontavam 72% de posse de bola. Magistral, perfeito, disse o treinador, ao observar as marcações num tablet. Nenhum chute a gol. Acontece. É apenas um detalhe. Perto do alambrado, um pai torcia em silêncio. Tinha visto jogar a Seleção do Telê. Aquilo era um espetáculo, oitava maravilha do mundo. Valdir, Leandro, Oscar, Luizinho e Junior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder. Tinha ódio do insosso futebol de resultados. Sabia que o filho gostava de driblar - e tinha habilidade invejável para a idade. Nas peladas do bairro, nas brincadeiras no prédio, era sempre o primeiro a ser escolhido. Enfileirava adversários, dava dribles da vaca, rabiscava para lá a para cá. Tinha chute forte e bem colocado. "Sai dessa trava, garoto. Esquece esse treinador quadrado. Você pode muito mais. Joga a sua bola. Chega de regra. Alegria", murmurava, bem baixinho, para não afrontar nem desrespeitar o técnico - que, num pedido de tempo, usou o canetão azul para berrar mais um tanto e riscar trocentas vezes uma tal jogada ensaiada e o esquema tático na prancheta. A molecada se olhava, ponto de interrogação coletivo, pedido assustado de ajuda. "É assim que eu quero. É assim!". Balançaram as cabeças, afirmativamente. Sem entender. Na volta da partida, apito do juiz, a bola caiu no pé do Menino. Estava na linha da área. Pensou em recuar para o goleiro, para livrar-se da pelota e não se comprometer. Sem querer, parou o olhar no alambrado, bem onde estava o pai, que piscou para ele. Sentiu um estalo. Virou o corpo e saiu pelo meio, deixando o atacante adversário para trás, abobado, sem reação. "Na lateral, na lateral", berrava freneticamente o técnico. "Solta essa porra dessa bola". Menino fez que não ouviu, agora é comigo. Seguiu avançando. Passou o pé por cima da bola, gingou, pedalou, deu mais um giro, livrando-se do segundo marcador, engatando uma quinta marcha, em diagonal. "Filha da puta, não faz isso, vai perder a bola. Toca! Solta essa porra dessa bola! Vai dar contra-ataque, sua besta". Menino respondeu com rolinho estupendo, deslizando a redonda pelo meio das canetas do primeiro zagueiro. "Eu mandei tocar! Agora!". Cabeça erguida, tronco reto, bola presa na canhota, olhou o gol. Cortou o goleiro, que tinha saído atabalhoado, e rolou de leve, da entrada da área, já saindo para comemorar. O pai agora não fazia mais questão de esconder a torcida. "Vai, vai, vai...", quase entrando na quadra para empurrar a bola, que corria manhosamente na direção do gol. Um golaço. Arte pura. Improviso. Rebeldia. O segundo zagueiro, no entanto, resolveu manchar a pintura e, num carrinho espetacular, salvou em cima da linha. Pecado. Até o árbitro cerrou os punhos e irritou-se, discretamente. Em pé, eufóricos, os torcedores nas arquibancadas soltaram um "uuuuuhhh!" que durou alguns segundos. Aplaudiram o Menino, que deu um murro no chão, lamentou com um "que droga" e voltou correndo para a defesa, para assumir seu lugar de origem. Colérico, pulando como uma perereca, o professor berrava e babava. Cuspia para todos os lados, atingindo todos os reservas. "Vai sair. Babaca. Irresponsável. Olha o que você fez. Quer me ferrar? Sai. Eu avisei. Sai. Agora". A placa de substituição subiu, indicando que Menino estava fora do jogo. Balançou a cabeça. Mas não disse "a". Obedeceu. Pediu água, refrescou a nuca. Do banco, viu seu time obediente taticamente e bem treinado perder no último minuto da partida, numa bola espirrada que os zagueiros não conseguiram cortar. Com 81% de posse de bola. O técnico foi para o vestiário fuzilando o Menino com o olhar. Tudo que conseguiu dizer foi "no meu time, você não joga mais". Menino baqueou. Deixou escorrer uma lágrima. Segurou. Jogar bola era sua paixão. Pegou sua mochila e foi procurar o pai na arquibancada. Cabisbaixo, triste. O pai fez um carinho nos cabelos do filho e disse "ei, assim não. Levanta essa cabeça". Menino esboçou um sorriso, leve, de canto. Buscou de novo os olhos do pai. Piscada. Caiu na gargalhada, sem dó. "Fui bem, né, pai? Ia ser um golaço! Puta merda!". Ganhou outra piscada, um abraço longo e apertado. "Foi uma baita jogada. Neymar não faria melhor", exagerou o pai, no ouvido do Menino. "Vai tomar banho e se trocar. Te espero". Menino saiu correndo. Parou. Acenou. "Valeu". O pai piscou.  

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Crônica inspirada no texto de Ugo Giorgetti - "Ouviram do Ipiranga" - O Estado de São Paulo, 20 de setembro.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

FUTEBOL FRASE-FEITA

Não deixa chegar. Se chegar, ninguém segura. Empolgou. A torcida é o décimo segundo jogador. Vamos buscar a vitória, mas o empate não é um mau resultado. Jogar fora de casa é sempre mais difícil. Gol na casa do adversário vale dois. Melhor é sempre sair na frente. É muito ruim correr atrás do prejuízo. Jogamos com o regulamento debaixo do braço. Eita, apito amigo. Juizão operando hoje. Está de brincadeira. Esqueceu o apito em casa, professor? Só contra a gente, só contra a gente. Uma vezinha contra os caras, vai. Não fala comigo. Está chegando a hora, está chegando a hora. Esquenta, esquenta. Vamos ligar! Motivação é tudo. Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o vosso nome. Vamos ligando, vamos ligando. Não se brinca em decisão. Tira, tira, tira. Pega, pega, pega. Olha o rabo! Cuidado com o ladrão! Mata, mata, mata! Quebra essa bola, maluco! Vai, pega esse passinho... Deixaram gostar do jogo. Está namorando com a zona do rebolo. Zona da confusão. Zagueiro marca. Volante rouba a bola e passa, Meia arma. Atacante faz gol. Se fosse bom, não seria zagueiro. Goleiro? Era sempre o último a ser escolhido nas peladas da rua. Foi uma guerra. Foi uma batalha. É só um jogo. É uma caixinha de surpresas. Ninguém pode prever o que vai acontecer. É pura paixão. O grupo está fechado. Seguimos as orientações do professor. O técnico continua prestigiado. Ninguém derruba treinador. Foi-se o tempo. Não tem mais bobo no futebol. Tudo pode acontecer. Que bomba! Que bica! Que tiro! Que petardo! Que furada! Que frango! Que peru! Goleiro mão de alface! Deixa de bater roupa! Que merda! É uma besta. É bestial. É a festa das arquibancadas. Não é possível, tem um sapo enterrado nessa área. Só uma palavrinha, por favor. Como você viu o jogo? Cada um pega o seu. A bola, a bola, a bola... não o jogador. Um passa, outro recebe. Pé trocado, perigo aumenta. Colocou no ângulo com a mão. Que pintura! Olha o sem-pulo! Fecha as pernas. Olha a caneta. O rolinho. Olé! O drible da vaca. O elástico. A flecha. Fez fila. Entortou a espinha. Deixou falando sozinho, com a bunda no chão. As duas linhas de quatro. A infiltração. Precisa subir a marcação. Aperta! Não marca o goleiro. Não, não, nada de dois em um. Jogaram por música. Jogaram como nunca, perderam como sempre. Treino é treino, jogo é jogo. Já combinaram com os russos? Foi épico. Inesquecível. Momento mágico. Fim de espetáculo. Que me desculpem os cricas, mas a beleza dos clichês boleiros é fundamental.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

PAULISTA FECHADA? PAULISTA ABERTA!

Andamos pela avenida Paulista ontem da Consolação até quase a Brigadeiro, sem medo nem pressa, apreciando as cantorias, as apresentações teatrais, as bibliotecas circulantes, os batuques e blocos de carnaval, as pedaladas dos ciclistas, as crianças que soltavam as mãos dos pais para correr livremente, tudo isso a reafirmar a importância simbólica de se construir outras relações entre a cidade e sua população, mais humanas e democráticas.
Leio nos jornalões de hoje, no entanto, as gritas e resistências à iniciativa, detonada por moradores e comerciantes da região, representados principalmente pela Associação Paulista Viva, por se tratar de "instrumento de marketing da prefeitura paulistana e por trazer prejuízos a jornaleiros, taxistas, hoteis e estacionamentos".
Críticas e contraditórios são importantíssimos e fundamentais, até para que se possa ajustar eventuais distorções. A respeito das perdas do comércio, porém, meus olhinhos me contaram uma história bem diferente. Vi bares, restaurantes e lojas cheios, muitos abarrotados, com filas que invadiam a avenida e as ruas paralelas, exatamente porque os pedestres podiam andar pelo espaço público para lá e para cá, com calma e sem restrições, a romper a distância acelerada que se impõe quando estão nos carros que por ali trafegam todos os outros dias. Sem qualquer dificuldade, rapidamente, chegamos à avenida de táxi. O trânsito nem de longe lembrava os engarrafamentos de sextas-feiras, seis da tarde. Voltamos de metrô, sem filas ou transtornos para entrar - e sentar - no trem.
Curiosamente, não me lembro de ter lido, nos jornalões de segunda-feira da semana passada, vociferações e condenações ao "fechamento inaceitável, autoritário e marqueteiro da avenida Paulista", que esteve bloqueada para os automóveis no domingo, 16 de agosto, das onze da manhã às sete da noite, por ser o palco nacional preferencial do "fora Dilma, fora Lula, fora PT" e de faixas e discursos que elogiavam a tortura e pediam a volta da ditadura militar. Mas a Paulista estava fechada também, de ponta a ponta... Naquele domingo, podia. Era legal.
Um salve para nossa indignação seletiva de todos e de cada dia.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

SER PAI DA LUIZA E DO DANIEL

Bom dia. Deita aqui comigo. Só um pouquinho. Me cobre? Estou tremendo. Preciso mesmo ir para a escola? Claro. E como foi o jogo? Ganhamos. Quanto? Três a zero. Vamos no próximo? Combinado. Tenho prova hoje. De quê? Matemática. Estou nervosa. Vai na boa. Você estudou. Tudo certo. Fui bem. Almoça com a gente hoje? Tem um livro novo que eu quero. Eu preciso. É vida. Quando podemos ir à livraria? Você já fez o cheque da perua? Podem parar de brigar! Chega! Não dá. Cada um cuidando da sua vida. Posso ver Bate Bola? Posso ver A culpa é das estrelas? Faz tempo que a gente não vai ao cinema. Faz tempo que a gente não sai só a gente. Como foi a aula hoje? Aprendi sobre neurônios e sinapses. Vimos um documentário sobre obesidade infantil. E a Dilma? E o Amarildo? E a Palestina? Por que existe gente racista? E a homofobia? Que grande droga. Você me prometeu ler o livro da Malala. Está com febre. Que tosse é essa? Vai no meu jogo? Posso ir na casa da Marina? Estou com saudade. Também. Vamos viajar no final do ano? Montevidéu! Santiago! Sem gritaria. Calma. O que é orgia? É... Não é meu namorado! Que droga, já falei mil vezes! Fica em casa hoje. Não vai dar aula. Por favor. Prometo dar um beijo em você quando chegar, bem de noitão. Fez a lição? Atenção e capricho. Que carinha tristonha é essa? Vai, fala. Te conheço. Posso ajudar? Está tudo bem. Tomou banho? Escovou os dentes? Pijama quentinho? Está bem frio. Deixa de ser chato! Não atormenta! Que saco. Nossa, fraca essa piada, hein? É para rir? Coisa de velho! Vou adivinhar o que você ficou fazendo... lendo e preparando aulas! Vamos ouvindo Legião? Vem brincar com a gente. Agora, vai. Vem logo. Larga esse celular. Atenção. Cuide-se. Juízo. Dá um abraço. Te amo. Estou com sono. Durma bem. Boa noite.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

ALIANÇA VOADORA

Já não lembro se era campeonato paulista ou brasileiro, final de 1997 ou primeiro semestre de 98. Sei que era noite de quarta-feira. De sopetão, na última hora, depois de chegar do trabalho, combinei com meu irmão, vesti meu manto branco sagrado e fomos ver Santos e Palmeiras no antigo Parque Antártica (amigos palestrinos, a nova arena é lindíssima, moderna e padrão mais que FIFA, tem elevador e escada rolante, mas charmosos mesmo eram os jardins suspensos do antigo Palestra Itália).
Ingresso a gente comprava na bilheteria, chegando cedo, desviando dos cambistas, enfrentando fila, discutindo com os espertalhões que fingiam não saber que a fila existia e também enrolando aqueles malacos que colavam nas gradinhas separadoras das filas para dizer 'ô, completa aí, só falta um conto, vai...'. Não tenho, cara, fica para a próxima. Era meu discurso padrão. Uns ficavam bem bravos; outros nem esperavam para ouvir a resposta e já estavam falando com outro parceiro.
Se não me engano, aquele foi o primeiro jogo no estádio depois de casado. Ainda não estava acostumado com a aliança na mão esquerda, meu dedo anular que de tão fino lembra aquele ossinho que o João, irmão da Maria, usava para enganar a bruxa má, doidinha para vê-los gordinhos e servi-los cozidos, irritada porque esse dia chegava nunca. MInha magreza, aliás, defeito de fabricação, deixava minha mãe desesperada, quando eu era criança. Ela só sossegou quando, depois de peregrinar por vários pediatras, alguns cheios de diplomas pendurados nas paredes e a inventar as doenças mais esdrúxulas, ouviu de um deles, doutor de confiança da família: 'minha senhora, fique tranquila, não há o que fazer, é a constituição dele. Não vai engordar nem com bomba de encher bicicleta". Há quem recorra ao dito popular para garantir que sou magro de ruindade. Adoro mesmo me esbaldar com pizzas, pasteis, batatas fritas, sanduíches e coca-cola. Magro era, magro continuo sendo. E foi naquela noite futebolística no estádio do Verdão que descobri de maneira quase trágica que dedo fino e aliança não combinam.
Como de praxe, sentamos perto da Torcida Jovem, bem na curvinha, atrás do chamado gol da ferradura. Bunda no cimento gelado. Cadeirinha e lugar marcado eram luxos que só existiam, ouvia dizer, nos estádios europeus. Besta, tenso, sem tirar os olhos do campo, hipnotizado, tinha a mania de assistir aos jogos brincando com a aliança. Sem dificuldade, aproveitando a largueza, atrito nenhum, arrastava a argolinha matrimonial de ouro pelo anular, subindo e descendo, subindo e descendo, até a pontinha do dedo, em movimentos repetitivos e incessantes. Era natural, mecânico. Instintivo. Jamais passou pela minha cabeça que o pior poderia acontecer.
Numa dessas idas e vindas, aliança vai, aliança vem, bola de lá, bola de cá, cruza na área... gol do Santos! Levantei para comemorar junto com a torcida. Fiquei no grito de GO. O "L" não saiu. Ficou engasgado. Emudeci. Senti as pernas bambas. Não ouvi mais nada.. Fechei a mão direita inteira no anular esquerdo, para confirmar. A aliança não estava lá. Naqueles malabarismos dedais, euforia e festa ao ver a bola estufando as redes bem na minha frente, a danada saiu voando.
Enquanto eu tentava passar em revista e montar bem direitinho o que diria para Elisa - sim, sou um cretino, nem um ano de casado e perdi a aliança, sério, pode acreditar, me desculpe, bobagem, você tem razão, foi no estádio, verdade, na hora do gol, pode perguntar para o meu irmão (e irmão lá é álibi nessas horas?) -, empurrava todos os que estavam perto de mim e dizia 'ninguém mexe, ninguém mexe, ajudem aí, rápido, perdi minha aliança'.
Um clarão se abriu imediatamente em minha volta. Zona de segurança. Solidariedade santástica. Ceninha patética - éramos uns dez de joelhos, rastreando e apalpando cada centímetro quadrado da arquibancada. Sou míope, a iluminação do Palestra era de lascar. Foi no tato mesmo. E na sorte. Agachado, dando batidinhas com as mãos em concha no cimento, como se jogasse bafo, achei a danada. Estava bem na minha frente, um degrau para baixo. Brilhante. Intacta. Formosa. O vôo da aliança tinha sido curto; a aterrissagem, tranquila. Sem traumas. Voltou rapidinho para o dedo. Gritei muito. Os camaradas se levantaram e gritaram junto. Parecia o segundo gol do Santos. Quem estava mais longe fez cara de ponto de interrogação e entendeu nada. Na minha lembrança, tudo isso demorou, vá lá, uns dois minutos.
Sei não. Desconfio que a mandinga de ver os jogos do Santos e da Seleção com o celular agarrado na mão esquerda nasceu naquela noite. Não tem jeito de fazer a aliança dançar. Dá sorte. E agora vocês já sabem de onde vem o nome - Allianz Parque - da nova arena verde. O Parque da Aliança. Justa homenagem.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O METRÔ TUCANO

Parada 1- A Linha Amarela do Metrô estava prometida para 2010. Todinha, de cabo a rabo, da Luz à Vila Sônia.
Parada 2 - Em 2015, cinco anos depois do prazo original, apenas sete das onze estações estão funcionando.
Parada 3 - Das quatro restantes, duas (Higienópolis e Oscar Freire) estavam prometidas para o ano que vem; Morumbi, para 2017; e Vila Sônia, 2018. Custo total desse segundo lote = 559 milhões de reais.
Parada 4 - Em junho passado, o governo estadual acertou o pagamento de um aditivo de vinte milhões de reais, para que Higienópolis e Oscar Freire fossem finalmente concluídas.
Parada 5 - Alegando que a empresa contratada desrepeitou o que estava combinado (cinco anos para cair a ficha?), o governo decidiu agora, em julho, romper o contrato.
Parada 6 - Como a quebra do contrato se dará de maneira unilateral, sem acordo, sairão dos cofres públicos, como multa a ser paga à empresa, mais 23 milhões de reais.
Parada 7 - Será necessário, então, abrir em seguida novo processo de licitação, para a contratação de outra empresa que será responsável pelas obras. Até que os trabalhos sejam retomados... em dois mil e um montão a população poderá finalmente usar as novas estações. Meus netos ficarão felizes.
Parada 8 - Inaugurado em 1974, o sistema de metrô de São Paulo tem atualmente 78 quilômetros de extensão - média de 1.95 novo quilômetro por ano. Crescimento extraordinário!
Parada 9 - O metrô de Xangai tem 434 quilômetros de extensão; Londres, 408 quilômetros; Nova Iorque, 369; Paris, 214; Cidade do México, 202; Santiago, 94.
Parada 10 - O PSDB administra o estado de São Paulo desde primeiro de janeiro de 1995 - e pelo menos até 31 de dezembro de 2018.
Parada Final - Continuemos todos quietinhos e conformados. Tudo bem. É assim, Demora mesmo. Geraldo está trabalhando. Está perdoado. Não falta metrô em São Paulo. Não vai faltar metrô em São Paulo. Se pudesse, seria eleito para terceiro mandato consecutivo. Afinal, não é ele quem está atrapalhando a velocidade nossa de cada dias nas marginais.
Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

FUTEBOL SEM BASE

Os times nossos de futebol estão fazendo malabarismos com tochas nos semáforos, cantando vestidos como Elvis ou Michael na Paulista, passando a gravata cortada na noite do casamento, estourando de longe cheques especiais, segurando firme as moedinhas e qualquer trocado que conseguem, cordas bem apertadinhas nos pescoços, a sofrer com penúrias financeiras que são o resultado de administrações patéticas, amadoras e irresponsáveis. Draga de dar inveja ao Brasil dos anos 1990, quando éramos o aluno aplicado do FMI, aquele que fazia todas as lições de casa ditadas pelo mestre.
Precisam fazer caixa. Todos. Bola da vez - o São Paulo. Emparedado (o presidente do clube reconheceu em entrevista ao Estadão que a dívida chega a 270 milhões de reais), o tricolor abriu liquidação e desmontou o time que começou jogando o Brasileirão. Hoje, oportunidade única, imperdível, foi a vez do meia Boschilia, 19 anos, dizer 'fui'. Quase quarenta milhões de reais. O clube fica com metade. Boa grana, ninguém nega. Dá para respirar, pagar um fornecedor aqui, uns direitos de imagens acolá, evitar processos trabalhistas. Até começar a estourar o cartão de crédito de novo.
Vá lá, entendo. Mas fico aqui, sempre crica de plantão, anacrônico, idoso, romântico de Cuba, torcendo nariz para esse futebol negócio e esse semi-deus chamado mercado, a pensar que os jovens jogadores, a base, são o último alento e suspiro que nos restam, se almejamos mesmo algum dia resgatar aquilo que o nosso ludopédio já representou, se queremos voltar de fato a poder disputar hegemonia boleira planetária, com magia e eficiência, arte e competência. E a molecada está indo embora daqui cada vez mais cedo.
Quantas partidas inteiras Boschilia jogou pelo São Paulo? Não é craque (aliás, quem é o craque do Brasileirão mesmo?). Teve, no entanto, atuações bastante razoáveis pela Seleção sub-20 que disputou o Mundial da categoria, recentemente. Talvez virasse bom jogador. Não deu tempo. Zarpou. Mercado. Lucro.
Não é estranho que o mesmo São Paulo tenha segurado Luis Fabiano, pretendido pelo Cruz Azul do México? Óbvio, não seria a bolada que o Mônaco agora paga pela jovem promessa tricolor, nem poderia, mas seria um dindim a tirar poeira dos cofres do clube. No final do ano, LF sairá de graça. Nadica de nada de retorno. Nem títulos. Zero absoluto. Alguém explica?
Para que não fique parecendo picuinha clubística - quando vendeu Neymar, a preço de banana, operação esquisitíssima (para ser benevolente) investigada aqui e na Espanha, o Santos garantiu ao Barcelona a preferência de compra de três garotos da base, recebendo por fora mais alguns milhões de euros. Confesso que desconhecia esse tipo de negócio. O Corinthians já foi nove vezes campeão da Taça São Paulo sub-20. Quantos moleques que triunfaram nessas jornadas fizeram sucesso também no time principal? Marquinhos, zagueiro, é destaque do PSG. Para exorcizar fantasmas da série B, o Palmeiras montou dois times novos para 2015, vinte e tantas contratações. Moleques da casa? Gabriel Jesus e João Pedro, salvo lapso de memória. Pouco. Bem pouco,
Às avessas, corremos para repatriar medalhões em condições técnicas e físicas bem questionáveis, alguns já em fim de carreira, salários estratosfericamente milionários. Consequência? As dívidas viram conto de terror de Edgar Allan Poe. Para saldá-las, despachamos a molecada para outros mercados.
Será que é tão difícil perceber que esse modelo e essa filosofia não podem dar certo?
Vai ver estou delirando.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

FUTEBOL DIVERTIDA MENTE

A animação da Disney/Pixar que faz estrondoso sucesso no cinema, incentivando inteligências e arrebatando sensibilidades de crianças e de adultos, foi exibida em sessão doméstica especial ontem, com as devidas adaptações e em sua versão ludopédica. Porque foi assim que nasci - com uma ilha do futebol que ocupa espaço gigantesco na minha cabeça. Acabou se espalhando por terras improdutivas e ocupou inclusive lugar de várias outras ilhas. Reforma agrária neuronal democrática. Nessas terras férteis de sinapses, um montão das bolinhas das memórias de longo prazo - e, vejam só a coincidência, estamos falando de bolas - estão relacionadas a campeonatos, gols, artilheiros, tabelinhas e partidas inesquecíveis. Quando o jogo finalmente começa na telinha da TV (queria estar na arquibancada, a chuva não deixou), Copa do Brasil, mata-mata, noite fria de quarta-feira, a bagunça começa na zona mista da minha cachola, todos lá, gesticulando de montão, falando sem parar e brigando para ver quem aparece mais e manda nessa sinfonia. A alegria, bela e formosa, confetes e serpentinas, chama logo a atenção e tenta me convencer que 'hoje é barbada, saíremos da Vila classificados'. A tristeza, sábia e prudente, insiste em me obrigar a acessar as caixinhas guardadas de lembranças melancólicas de horrorosas derrotas conhecidas naquele mesmo palco futebolístico. É empurrada de lado pela raiva, chega para lá, ombrada e cotovelada, cutuco na canela, bicuda no tornozelo, aos berros e sem pedir licença, vociferando contra a diretoria que não paga salários e dizendo que é inadmissível que o Santos, com tanta história, tantas glórias, esteja na zona do rebaixamento do Brasileirão. 'Impeachment do Modesto já!', grita, para lá de vermelha, quase explodindo. O medo amigo de todas as horas faz disparar meu coração. E se a gente não ganhar? E se acontecer o pior? Lá vem então a nojinho, plumas e paetês, vestidinho modernoso, requebrando na passarela, desdenhando da competição. Bem, meus amores, quem quer ganhar a Copa do Brasil? Já temos esse troféu. Se perder, disputa a Sul-Americana. Sem dramas. Muito melhor. Torneio internacional, de prestígio. Chacoalho a cabeça. Que confusão. Será que meu amigo imaginário de infância tem algo a dizer, para aliviar a tensão? Ele era bem legal. Claro, jogava bola comigo. Eu era o goleiro, ele batia pênaltis. Depois a gente invertia. Eu ganhava sempre. Era tudo tão mais fácil e divertido. No jogo de verdade, o Santos marcou logo aos três minutos. Gabriel, camisa 100. Sorrisos e comemorações. A alegria não se conteve - eu te disse, eu te disse, eu te disse. Quase mandei desligar a buzina. O time até que jogava bem, surpreendentemente. Marcação pressão, velocidade no ataque, trocas de posições, defesa bem postada. Não demorou muito saiu até o segundo gol. De novo Gabriel, passe de Ricardo Oliveira. A alegria foi às nuvens, única e soberana, apertando todos os botões de euforia do painel de controle da minha mente. Darling, quem é esse timeco que está jogando contra a gente? Bem fraquinho, hein?, exagerou nojinho. Cantou vitória muito antes da hora. Gol do Sport. De falta. Com desvio na barreira. A raiva surtou e correu para empurrar com força as alavancas. Chutou o pau da barraca, espumando e espalhando fumaça por toda a sala cerebral principal. Quem mandou essa besta que estava na barreira virar de costas? O técnico fez o time recuar! Anta, estava tudo sob controle. Agora vamos para os pênaltis. Outra vez. Porcaria de time. Diretoria incompetente. Saio xingando pela sala. Sobra chute para o banquinho, o controle remoto quase voa na parede. Os vizinhos já estão acostumados com a barulheira. É assim toda quarta, domingo também; às vezes, quintas e sábados. Culpa do calendário maluco e mal planejado da Confederação Brasileira de Falcatruas/Fiascos. Relaxa, meu querido, somos um dos únicos times que não sabe o que é segunda divisão, sussurra a nojinho. Medo. Não vamos chegar nem às oitavas? Vai ser uma vergonha, tiração de sarro federal. Tristeza. E pensar que só faz quatro anos estávamos levantando o tri da Libertadores. O que fizeram com meu Santos... Como o cérebro de boleiro destrambelhado em dias de jogo de futebol só pode mesmo ser explicado por psiquiatras de excelência - tripolaridade, tetrapolaridade, múltiplas polaridades simultâneas, sei lá - tudo volta a ficar lindo e maravilhoso no início da segunda etapa. Três a um. Geuvânio. Classificação à vista. A alegria samba, batuca e canta 'nascer, viver e no Santos morrer é um orgulho que nem todos podem ter'. O diabo é que aí começa a martelar na minha cabeça um personagem que não fazia parte do filme original. A angústia. Esse cronômetro não anda. Juizão, foi falta. Segura a bola no ataque, no ataque. Tira, tira, tira! Quer me matar do coração? Nossa, essa passou raspando a trave. Caraca, o time estava bem, por que substituir e colocar esse morto-vivo em campo? Vixi, olha o tombo que esse jumento levou! Calma, pai, foi escanteio nosso. Cinco minutos de acréscimo?! Ficou louco, meu senhor? Vá à merda. Filhote de Eduardo Cunha! Apitou! Fim! Acabou, ganhamos, estamos classificados. Agora é só festa. Minha cabeça, porém, continua rodando a mil. Algazarra. Zorra. Alegria, nojinho, medo, raiva e tristeza adoraram o jogo. Resolveram engatar mesa-redonda na madrugada, terceiro e quarto tempos, debate-bola, linha de passe, arena, tudo junto e ao mesmo tempo. Estão elétricos. Indomáveis. Quem disse que consigo dormir?

segunda-feira, 20 de julho de 2015

NA CASA DO VÔ E DA VÓ

Pode dormir tarde, bem tarde, mas muito tarde mesmo, madrugada, se aguentar, no limite máximo das energias (inesgotáveis) das crianças, só mesmo quando elas capotam na cama, com ou sem pijama, às vezes sem escovar os dentes, definitivamente vencidas pelo sono e pelo senhor cansaço nosso de cada dia. "Boa noite, durma bem, sonhe com os anjos, meu netinho, minha netinha". Cobertor e beijos. Pode brincar no computador, depois no vídeo-game, em seguida no celular e finalmente no tablet por horas a fio, sem tempos combinados pré-estabelecidos, jogos, mensagens, vídeos, uatzap e fanfics em cascatas, um atrás do outro, sequência infinita, alegria virtual cibernética da criançada. "Tudo bem, só mais um pouquinho, hein". O fim desse tantinho chega nunca. Nunquinha de marré de si. "Nossa, passou todo esse tempo, nem percebi. Só mais um pouquinho, hein". A nave segue. Pode até desinstalar programas usados pelo vô e pela vó, aquele aplicativo do banco a quem se recorre na hora de pagar contas, por exemplo, a lista de sites favoritos, vale até perder o documento em word que precisa ser enviado com urgência, numa boa, sem estresse ou chateação. "Tudo bem, querido , querida, foi sem querer, tenho cópia do texto, depois a gente busca e instala a porcaria do banco de novo, é super fácil". Pode esparramar papeis e mais papeis e lápis de cor e canetas coloridas e giz de cera e réguas pelo chão da sala, pelo quarto, na cozinha, no corredor, no banheiro, para desenhar, rabiscar, valendo até mesmo pedir para o vô ou para a vó sentar e ficar imóvel, posando para o (a) artista, "calma, não se mexe, vai ficar bonito, vou te desenhar, você vai gostar". O vô e a vó obedecem, comportados e lisonjeados, paradinhos como estátuas, achando tudo lindo, "meu neto é um artista, minha neta é um talento, puxa, muito bem, super bacana, ficou ótimo". Pode transformar a casa em verdadeira brinquedoteca quase profissional, bonecas, carrinhos, botões, quebra-cabeças, jogos de trilhas, dados, tudo ao mesmo tempo e misturado, sem deixar espaço nem para sentar no sofá, sem muita força, compromisso ou preocupação para guardar toda essa tranca depois. "Deixa, vá lá lavar as mãos e tomar um lanche, a gente guarda bem rapidinho". Pode até jogar bola dentro do apartamento, dribles da vaca e carrinhos em pés de cadeiras e portas atuando como gols, "só cuidado para não escorregar e se machucar. Ah, sim, atenção com a cristaleira e as taças de vinho". Pode desmanchar o cabelo do vô, fazer penteado maluco na vó, destrambelhar tudo, tudinho, cada fio e todos os fios, para então morrer de rir de como ficaram os dois, que continuam achando tudo um número, enorme diversão. Pode pular trocentas ondas no mar (mesmo com a água geladíssima), fazer buracão na areia, largar o buracão na areia para voltar ao mar, só mais um mergulhinho, pedindo para a vó ou o vô tomar conta do buraco e não deixar ninguém mexer nele, "volto já". Pode comer brigadeiro, leite condensado de colher, batata frita, pastel, sorvete de todos os sabores, chocolate ao leite, chocolate branco, chocolate crocante, nutella (o pote inteiro de uma vez), pipoca, paçoça, doce de leite, cachorro-quente, lembrando, claro, que "em algum momento vamos comer também uma fruta, uma verdura, sua mãe recomendou, seu pai reforçou, a gente pensa nisso depois". Pode mudar o canal na televisão bem na hora da novela, do telejornal, sem pedir licença, para ver aquele desenho imperdível, o jogo de futebol decisivo ou aquela série que hoje tem um capítulo sensacional. "Essa novela é muito chata, está paradona, nada acontece, nem estamos acompanhando, a gente vê o jornal mais tarde. Sentem aí no sofá. Cabemos todos. Vamos ver juntos". Pode ouvir música alta, sem fone de ouvido. "Meio barulhenta essa, né? Mas pode deixar, não conhecia". Na casa do vô e da vó tem carinho, colo, abraço, beijo, afagos, histórias, muitas histórias, livros de aventura e de terror, Mônica e Cebolinha, Mario de Andrade e Malala, Bela Adormecida e Elsa de Arendelle, Vingadores e Batman, Rei Leão e Mogli, conversas divertidas e papos sérios sobre a vida, conselhos e avisos, memórias sobre São Bernardo e Salvador, experiências- referências, exemplos, lições, dicas, aconchego, porto seguro e sossego para as almas, "vô, conta de novo aquela da sua escola quando você era criança e tinha uma professora brava? E os cavalos da ditadura?", "vô, quando você veio da Itália? E o Mussolini?", "vô, e o livro que você traduziu? Vamos ao parque no domingo?", "vó, sério que você escapava das aulas para ver os jogos pan-americanos? Morava numa chácara?", "vó, por que você quis ser jornalista? E os militares da censura?", histórias que não acabam mais, curiosidade, raízes e identidades múltiplas. Na casa do vô e da vó de vez em quando tem bronca também, porque afinal de contas até mesmo os limites infladíssimos de vó e de vô às vezes são ultrapassados. Irmão briga com irmã. Primo discute com prima. É preciso intervir, apartar. Mas é raro, muito raro, exceção da exceção, de vez em nunca. Aquela bronca firme, legítima, necessária - e ouvida com atenção e respeito. Obedecida. Sem levantar a voz. Pito manso, quase sussurrado e pedindo desculpas. "Não foi legal. Exagerou. Preste mais atenção. Não faça mais isso. Combinado? Agora vai brincar". Dorothy, as crianças aqui te adoram, mandam beijos e acham mesmo que nosso lar é especial. Magicamente, no entanto, ao lado de bruxas, leões, espantalhos e homens de lata, encantadas com o arco-íris, elas pedem para dizer a você que não há lugar como a casa do vô e da vó.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

BOLEIRO COM DATA DE NASCIMENTO AVANÇADA

Era só driblar o goleiro. 

Nos tempos de menino, corria sozinho pelo quintal da chácara do meu avô em São Bernardo, fazendo as vezes de goleiro, de atacante, me atirando no chão para espalmar lindamente um pênalti, arriscando uma falta indefensável no ângulo, em partidas emocionantes que só acabavam quando vinha lá de casa um "por hoje já chega", ainda brincava com o perigo e enrolava mais alguns minutinhos, valiosos acréscimos determinados pelo árbitro, que também era eu, até que a voz materna tornava-se mais grave e assertiva, tudo bem, logo vinha o almoço de domingo em São Paulo, quintalzão em ladeira do outro vô, pelada com os primos bicudinhos só tinha hora para começar, a briga era para ver quem atacava para baixo, todos talhados na arte boleira única de driblar a pintangueira carregadinha e as árvores de araçá que atuavam como zagueiros (e que cometiam o disparate de minar aqueles ladrilhinhos vermelhos com frutas esbagaçadas que caíam de maduras e nos faziam escorregar), saíamos de lá fedendo a ganso, era o que diziam pais e tios, mãos imundas e rostos pretos, almas saciadas de gols, gingas, dribles e tabelas marotas, semana nem bem começava e lá vinham as diárias peladas na escola, não só as oficiais, nas quadras, interclasses, partidas memóráveis contra outras escolas, mas sobretudo os torneios paralelos e aquelas pelejas que aconteciam em corredores estreitíssimos, com tampinhas de garrafa e copinhos de danone fazendo as vezes de bola, a inconveniente da maldita campainha berrando e determinando o reinício das aulas, a gente sempre achava que dava mais um pouquinho, vai, rápido, não pára, só mais um lateral, primeira bola fora, o professor não vai chegar na hora, depois subíamos as escadas voando, de três em três degraus, esbaforidos, cabelos malocados, calças resagadas, camisas imundas, sorrisos nos rostos, quem ganhava enchia o saco de quem perdia, descansar para quê?, a gente jogava também nas casas dos amigos, na sala do apartamento, sem dó, a mesa fazendo as vezes de gol, bolinhas de tênis estourando nas estantes, na televisão, nas noites de sextas-feiras e nos finais de semana, o bicho pegava nos campeonatos do clube, toma ônibus Jardim Colombo lotado para chegar lá, trânsito dos infernos que não anda, Cardeal Arcoverde travada, avenida Rebouças parada, mochila com unifome nas costas esbarrando e levando esbarrões e xingos, frio de lascar num campo de terra batida, meus pais torcendo e mandando ver nos conhaques, era o único jeito de espantar a friaca, eu jogava de meia direita, avançando para ajudar o ataque e recuando para compor a marcação, correndo o tempo inteiro, noventa minutos, cansaço?, quem disse?, fôlego para jogar umas duas ou três, seguidas, sem contar as férias em São Vicente, quando a bola rolava com os amigos e inavdia a madrugada, golzinhos feitos com pedras e chinelos, pisando firme na areia fofa ou naquela mais batida, à beira-mar, pés fazendo bolhas e ardendo a cada chute descalço, mas quem disse que a gente se importava?, segue o jogo, a parada era forte também em Serra Negra, valia a quadra municipal, o campo improvisado num gramadão atrás do prédio ou as quatro linhas desenhadas no meio da rua, todas tortas, um lado do campo maior que o outro, e quem se importava, jogávamos ferozmente, horas a fio, partidas duríssimas, rivalidades à flor da pele, as panelinhas, os escretes, eu e meus irmãos, como se fosse final de Copa do Mundo, e era quase isso, mesmo depois de baladas, sem conseguir esconder a ressaca, estômago embrulhado virando e roncando, a gente arrancava o segurança da cama às oito da matina do domingão para abrir a quadra alugada, o nível técnico, esperado, natural, era sofrível, reflexos atrasados, trombadas, lances bizarros, sem problemas, o legal era correr, correr, correr, jogar freneticamente, verdade, fôlego nunca me faltou, vontade, muito menos, e alguma habilidade também sempre tive.

Ontem, quarenta e três primaveras nas costas, joelhos com tendinites crônicas, hérnias de disco e coluna avariada, quadrinha sintética com os amigos, em dois lances os zagueiros já tinham ficado para trás, a cabeça raciocinou rápido e deu a ordem, vai, finge que vai para a direita e sai para a esquerda, corta rápido, rabisca, dá mais dois toques na bola e chuta, você sempre fez isso, é sua marca, você não esqueceu, é fácil, agora, e corre para o abraço.

O corpo refugou. Fingiu não ouvir o comando mental. Teve medo danado de fazer o movimento de rotação, de soltar aquela gingada característica e fatal e sofrer com as dores. As costas travadas. O inchaço nos joelhos. Uma semana infernal de compressas de gelo e bolsas de água quente.

Era só driblar o goleiro.   

segunda-feira, 6 de julho de 2015

MISTÉRIOS E CRIMES

PÍLULAS DA FLIP


Leonardo Padura, escritor cubano, autor do romance histórico “O homem que amava os cachorros” e de vários livros policiais, como “Morte em Havana” e “A neblina do passado”.


“Mario Conde é um personagem que me acompanha há 25 anos, desde o meu primeiro romance, “Passado perfeito”, publicado em 1990. Ele nasce sem a consciência de que seria duradouro e seguiria em outras histórias. É um detetive que sabe absolutamente nada sobre técnicas de investigação criminal. É muito inteligente e funciona levado pela intuição e pela sensibilidade. É um homem cheio de contradições, elemento que provavelmente foi responsável por estabelecer a conexão dele com os leitores. Ele não usa arma, tenta ser normal, fuma muito, bebe também. E no final faz bem o trabalho dele. A partir do quinto romance, Conde se converte em vendedor e comprador de livros usados. Pensei muito nesse novo ofício dele. Dessa forma, continua muito próximo das ruas e também da literatura. Em ‘Herege’, que estou lançando, ele faz participação especial e é testemunha que ajuda a elucidar um crime. Ele ainda está vivo, começa a narrativa numa cama, acordando e olhando para um calendário que marca a data de aniversário dele, 60 anos. Está atormentado, refletindo sobre a chegada da quarta idade, achando que não conseguiu chegar aonde queria. Os leitores dos meus romances policiais devem já ter se dado conta que minha literatura tem basicamente um caráter social. O mais importante é a história de vida, a crônica de uma sociedade contemporânea confusa, perturbada e complexa, para assim chegar ao mistério. É o que Mario Conde vai fazendo. Essa consciência crítica, que vem de inspirações literárias como (Manuel Vásquez) Montalbán e Rubem Fonseca, é o mais importante, o atributo que oferece ao gênero policial a capacidade de ser boa literatura. Um grande problema que tenho quando escrevo é a falta de imaginação. É verdade. Sofro muito com isso. O enredo policial é um pretexto que uso como forma narrativa para montar uma história. Em geral, quando começo, a partir de uma situação que pode ser mais ou menos crítica, um conflito, nem eu nem o Mario Conde sabemos quem é o assassino. A partir daí, começo o processo criativo. Escrevo e reescrevo, levo em média dois anos para terminar um livro, porque quero que tudo funcione com a máxima integridade estética e literária. Gosto de começar sem saber o mistério – é como se eu estivesse lendo o romance que estou escrevendo”.