segunda-feira, 16 de novembro de 2015

MENINA BOLEIRA

Saio de casa pedindo 'torça direitinho, hoje é quarta. Tem jogo'. É um código nosso, mandinga que costuma dar certo. Lanço em seguida o mesmíssimo pedido. 'Você sabe, estarei em aula. Vá me mandando notícias'. Ela sorri com os olhos enigmáticos de jabuticaba e balança a cabeça afirmativamente, chacoalhando os cachinhos castanhos que me hipnotizam desde que a peguei no colo pela primeira vez. Ninguém mais no mundo tem esses cachinhos. Continua com os fones no ouvido, celular sintonizado em alguma série do Netflix. Once upon a time? Friends? Anos Incríveis? Não pergunto. Estou atrasado. 'Pai, sim, nem vem, eu já estudei', antecipa-se, esboçando caretinha de reprovação. Não perguntei também. Tudo bem, reconheço. Ia perguntar. 'Tchau. Vai com cuidado', faz questão de dizer, me abraçando apertado. Volta a se esticar no sofá. Não falha. Na hora combinada, lá está ela. Cumpre à risca o bordão 'missão dada é missão cumprida'. Quando busco apressado o celular na pasta, intervalo da aula, a narração da peleja via zapzap é precisa. Em cima de cada lance. José Silvério, Fiori Gigliotti, Osmar Santos  e Milton Leite não fariam melhor. 'Times em campo. Começou. Estamos mal, sem pegar na bola. Só bicão. Dez minutos. Melhorou um pouco. Ricardo Oliveira machucou. Nada grave. Time passou a atacar bem. Três chances perdidas. Uma delas na cara do gol. Pênalti! Gol! Fim do primeiro tempo. Um a zero para nós'. No melhor estilo Primavera Feminina, Simone de Beauvoir no ENEM, meu corpo, minhas regras e #foracunha, conversa de igual para igual com os boleiros da escola. 'Pai, fiz uma aposta com um garoto da perua. Ele ficou espantado. Disse que sei muito de futebol'. Nas férias de final de ano no hotel em Atibaia, gincanas na piscina, desafiou um rapaz que duvidava que existem dois Borussias na Alemanha. De bate pronto, sem deixar a bola pingar no chão, a boleira emendou: "Borussia Dortmund e Borrusia Mönchengladbach. Tudo bem, não sei pronunciar esse nome direito. Mas existe esse time'. Golaço. O garoto pediu tempo para consultar os universitários. Voltou a campo reconhecendo o acerto. E aplaudiu. Vá lá, às vezes ela é turrona, cabeça dura, demora a dar o braço a torcer, mesmo depois de perceber o equívoco. Outro dia um professor nos disse: 'é muito respondona essa menina. Das mais respondonas que conheço. No bom sentido, claro'. Era um elogio. Além do Santos, gosta de acompanhar os campeonatos espanhol, inglês e alemão. Torce um tiquinho para o Barcelona (efeito Neymar), um tanto para o Chelsea ('David Luiz é maravilhoso') e um montão para um dos Borussias - o Dortmund ('Lewandowski foi para o Bayern de Munique, principal rival, é um traíra'). Conseguem ouvir? É certamente uma das grandes corneteiras do futebol contemporâneo. Cornetadas de gente grande. Profissionais. Resmunga, reclama, detona, xinga, diz que está tudo errado. Bufa. Provoca o irmão. 'Que cara horrível. Como pode jogar no Santos?'. Adora ser o centro das atenções. Sei não. Suspeito que às vezes seja só para me irritar. Para a gente começar a discutir. E dar início a mais uma mesa-redonda entre pai e filha. Às vezes a gente briga, bate de frente. Sou ariano torto, metido a perfeccionista. Atormento. Duelo de titãs. 'Pai, chega, deixa de ser chato'. É a senha para colocar ponto final no debate. E começar a pensar na próxima rodada. Lembro-me com ternura da primeira vez em que estivemos juntos na Vila Belmiro. Santos e Santa Cruz, última rodada do Brasileirão de 2006. Ela tinha quatro anos. Viu o time do coração fazer 3 x 1. Pulou, comemorou, cantou. Quando faltavam cinco minutos para o fim do jogo, esgotada, apagou. Dormiu no meu colo. Profundamente. Não a acordei. Encostei o rostinho dela no meu ombro, transformado em travesseiro de pena de ganso. Como fazia desde que ela era bebê, urrando de cólicas e sem conseguir sossegar, comecei a cantar o hino do Santos no ouvido dela, bem baixinho, suavemente, das sociais da Vila até o carro. Uns dez minutos. Cantiga de ninar. Acomodei-a na cadeirinha. Prendi os cintos de segurança. Subi a Serra em silêncio, transbordando alegria. Sorriso do rosto. Peito estufado. Coração enternecido. Minha filha no estádio comigo, na cadeira cativa que tinha sido do meu avô. Afetos, ontem e hoje. Sempre. Como acorda cedinho - também desde pequenina - e corre para abrir a internet e pegar os jornais, é a Lui quem tradicionalmente me faz um resumo das notícias futebolísticas do dia. Adora os programas da ESPN Brasil. 'O Trajano é muito engraçado'. Não perdoa nem os escorregões ou deslizes dos comentaristas profissionais. Às vezes deixa escapar um sonoro 'nossa, quanta besteira esse cara está falando'. E o machismo nosso de cada dia teima em afirmar que futebol não é esporte para mulheres. Somos uns pobres idiotas.  

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