sexta-feira, 29 de abril de 2011

O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO PRIMEIRO DE MAIO

Neste domingo, Primeiro de Maio, não serão poucos os que irão praguejar e dizer "droga, caiu num final de semana, perdemos o feriado"; outros se lembrarão, com justiça, da morte do piloto Ayrton Senna no circuito de Ímola, na Itália, em 1994. Já as centrais sindicais brasileiras comemorarão a data com shows pirotécnicos e multidões artificialmente arrebanhadas e reunidas nas praças, interessadas nos artistas e cantores presentes e nos sorteios realizados. Será que nos discursos que serão feitos entre uma apresentação e outra alguém se lembrará de destacar os verdadeiros significados políticos da data?

Em Primeiro de Maio de 1886, em Chicago, uma das principais cidades industriais dos Estados Unidos, centro importante do setor automotivo, os trabalhadores tomaram conta das ruas da metrópole para exigir a civilização das relações de trabalho: redução da jornada, aumento de salários, descanso semanal, direito às férias. O movimento evoluiu para uma greve geral. A resposta das autoridades públicas: polícia nas ruas, truculência, repressão, terror e tiros - e oito operários assassinados, além de outros tantos presos e posteriormente enforcados. Três anos depois, em 1889, o congresso da Segunda Internacional Socialista, realizado em Paris, estabeleceu oficialmente o Primeiro de Maio como Dia Internacional dos Trabalhadores, numa homenagem aos que tinham tombado em Chicago. 

Durante muito tempo, várias décadas mesmo, a data representou momento simbólico e prático relevante de reflexão política e de organização das lutas dos trabalhadores. Graças aos ventos do neoliberalismo, à crise de identidade e de projetos das esquerdas e à rendição de boa parte dos partidos comunistas e socialistas ao "deus mercado", o Primeiro de Maio foi sendo gradativamente esvaziado de sua dimensão ideológica e histórica - e inflado em sua perspectiva festiva e alienante.

Como exercício de resistência e de contra-hegemonia, impõe-se como mais que urgente a tarefa de resgatar o Primeiro de Maio como instrumento de lutas. Afinal, apesar dos avanços importantes conhecidos pela sociedade brasileira nos últimos anos, 1,2 milhão de crianças com idade entre 5 e 13 anos trabalham no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, foram feitas quase 35 mil denúncias sobre trabalhadores vivendo em situação de escravidão no país, entre 1996 e 2005. Levantamento divulgado pelo Ministério do Trabalho (2006) revelou que os salários dos brancos são quase 60% maiores que os recebidos pelos negros. Apenas em 2010, foram assassinados 34 trabalhadores rurais no Brasil (dados também da Comissão Pastoral da Terra).

Mais: não é errado afirmar que, noves fora os benefícios que carregam, as novas tecnologias têm sido invariavelmente usadas pelo capital como mais um instrumento de controle e opressão sobre o trabalho. A reificação das máquinas (computadores à frente) é uma marca do nosso tempo. Ambientes domésticos se transformam em extensões permanentes dos locais de trabalho, o trabalhador sempre à espera de um e-mail importante, de uma ligação que não pode ser adiada, de um relatório que precisa ser entregue "para ontem", de um chamado iminente do chefe para uma reunião urgente e inadiável. Atenções e afetos com filhos e namorado(a)s, esposas, maridos, amigo(a)s são relegados a segundo plano. O tempo dedicado ao sono se reduz a algumas poucas horas, não raro tensas, na expectativa do que se irá fazer no dia seguinte. Será que vai dar tempo? O trabalho invade o final de semana, que praticamente já quase não existe. A "máquina" corpo humano não desliga - e sofre com estresse, depressão, desânimo, doenças por esforço repetitivo, angústias e uma permanente sensação de cansaço... 

"Essas mudanças afetaram muito o mundo produtivo e a forma de ser do trabalho, abalando violentamente a classe trabalhadora, o sindicato, os partidos de esquerda. Entre tantas conseqüências desse “vulcão” está a precarização estrutural do trabalho. Venho trabalhando com a idéia de que essa precarização do trabalho que estamos vivendo não é circunstancial, mas sim estrutural, assim como o desemprego, que também não é circunstancial, é estrutural. E por que é um desemprego estrutural? Porque o capitalismo tem uma lógica destrutiva, ele cresce destruindo, destrói o ambiente, destrói a natureza, destrói a força humana de trabalho e destrói pela guerra, o sistema precisa destruir para poder se alavancar. Esse traço afetou bastante a classe trabalhadora", analisa Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em entrevista disponível no site da editora Boitempo. 

Para ele, não adianta apenas berrar e vociferar palavras de ordem - é preciso compreender a profundidade do funcionamento do sistema nesses "novos" tempos e organizar lutas radicais, que questionem as raízes das desigualdades. 

Como modesta contribuição a essa tarefa, sugiro uma (re)leitura crítica do clássico "Manifesto Comunista", escrito por Karl Marx e Friedrich Engels e publicado em 1848 - há mais de 170 anos, portanto. Escrevem os dois pensadores: "onde quer que tenha assumido o poder, a burguesia pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. (...) Substituiu a exploração, encoberta por ilusões religiosas e políticas, pela exploração aberta, única, direta e brutal. (...) A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, todas as relações sociais. (...) A necessidade de um mercado constantemente em expansão impele a burguesia a invadir todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. (....) Força todas as nações, sob pena de extinção, a adotarem o modelo burguês de produção; força-as a adotarem o que ela chama de civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem".

Reflexões ultrapassadas, superadas pelo tempo? Ao contrário - são atualíssimas. E, vistas com olhar crítico e sob perspectiva histórica, sem que signifiquem modelos ou cartilhas, podem representar um bom ponto de partida para debates públicos e para o necessário resgate dos valores políticos do Primeiro de Maio. 

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A IMPORTÂNCIA POLÍTICA E HISTÓRICA DA NOVELA "AMOR E REVOLUÇÃO"

A estreia foi marcada por expectativas intensas e por um burburinho considerável, que reverberou na velha mídia e também chegou às redes sociais. Preferi aguardar a exibição de alguns capítulos (uma parte deles, vi "ao vivo"; outros, recuperei na internet), para não escorregar em avaliações precipitadas. Depois de quase um mês no ar, me parece mesmo que, como narrativa ficcional, a novela "Amor e Revolução", exibida pelo SBT, deixa muito a desejar. 

Os diálogos são ingênuos, fracos, soam infantis e superficiais, e parecem ter sido escritos por alunos do ensino fundamental. Será que os militantes de esquerda falavam e agiam mesmo da maneira caricata como a novela nos faz crer? É possível alegar que é ficção, que há liberdade de (re) criação, e que o objetivo seja exatamente esse - apresentar-se como uma trama didática, para alcançar um público que ainda não conhece ou pouco sabe a respeito dos anos de chumbo vividos pelo Brasil e precisa, por meio da estética do entretenimento, ter essa história resgatada e traduzida, para que a memória daqueles tempos possa se tornar acessível e inteligível. É legítimo abraçar esse caminho. É uma opção. 

Ainda assim, minha percepção é que a narrativa se anuncia invariavelmente artificial, pouco convincente, distante. Em boa medida, essa avaliação é reforçada pelas atuações dos atores que, longe de serem arrebatadoras e instigantes, apresentam-se também pobres, pasteurizadas e insuficientes para incentivar empatias e pertencimentos, deixando por tabela de construir mecanismos de projeção e identificação.

Análises negativas à parte - e admito com toda a honestidade que são muito mais impressões de um telespectador, temperadas pelos pitacos do jornalista -, penso que a novela tem se destacado por cumprir um papel histórico e político da máxima relevância, quando, ao final de cada capítulo, traz depoimentos de militantes de esquerda e de ex-presos políticos que resistiram à ditadura. Muitos deles são sobreviventes das torturas praticadas nos porões do regime. Ressalte-se que representantes dos militares e da repressão também já tiveram espaço garantido para seus testemunhos, em escala bem mais reduzida. Nesse sentido, a novela parece mais uma vez ter estabelecido seu recorte e feito sua opção: revelar a história dos vencidos e da resistência.

Setores da Forças Armadas gostaram muito pouco ou quase nada dessa escolha narrativa. Os militares rapidamente perceberam o potencial político da novela. Alguns chegaram inclusive a solicitar ao Ministério Público que retirasse "Amor e Revolução" do ar.  Têm saudades declaradas dos tempos da censura.  

Não conseguem tolerar falas como a do ex-ministro José Dirceu, que lembra dos companheiros presos no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1968, em Ibiúna, recordando ainda que os jovens assassinados pela ditadura deram à vida pela liberdade. Não aceitam, alguns militares, que Carlos Eugênio Paz denuncie a participação dos empresários no financiamento da repressão. Tremem de raiva quando Rose Nogueira vem a público para denunciar as sevícias, inclusive sexuais, de que foi vítima, afirmando que "as marcas da tortura não passam jamais". Ficam arrepiados ao encarar Maria Amélia Teles dizendo, em alto e bom som, "que não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos". Revoltam-se quando Crimeia Almeida reforça que "não nos envergonhamos da nossa História". E se contorcem e estrebucham quando Ivan Seixas conta que sequestros realizados pelos militantes de esquerda não exigiam dinheiro como resgate - serviam para libertar companheiros presos pela ditadura. No fundo, o que os militares não conseguem é encarar de frente a verdade histórica. (os vídeos abaixo trazem todos os testemunhos aqui citados e exibidos pela novela, na íntegra). 

Os depoimentos podem portanto ajudar a publicizar e popularizar as agruras e os descalabros cometidos pela ditadura, reforçando por consequência a consciência coletiva a respeito da necessidade de abertura urgente dos arquivos secretos do período; podem ainda ampliar a pressão popular pela fundamental tarefa de instalação da Comissão da Verdade, com intuito de superar finalmente um silêncio que se faz criminoso. É inadiável recontar, para além das versões oficiais e dos militares, a história recente do Brasil - belíssima nos ideais, sonhos, valores, princípios e lutas que é capaz de inspirar. 

No livro "A Era dos Extremos", o historiador inglês Eric Hobsbawm escreve que "a destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem".

Vista a partir de sua dimensão política e com os tocantes e preciosos depoimentos que exibe, riquíssimos de significados (reunidos, certamente renderiam um belíssimo documentário), a novela "Amor e Revolução" pode dar um empurrãozinho mais do que importante e salutar e ajudar nessa tarefa cidadã de dizer o que precisa ser dito - e de "lembrar o que outros esquecem", como também escreve Hobsbawm. 



segunda-feira, 18 de abril de 2011

LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE? NÃO. É A FRANÇA DA INTOLERÂNCIA.

Os ventos que sopram da França são pouco animadores. Viajam pelo mundo carregados de preconceitos e de comportamentos intolerantes, invariavelmente institucionalizados e transformados em leis e políticas públicas pelo governo do presidente Nicolas Sarkozy.

No último dia 11 de abril, entrou em vigor no país a lei que proíbe que as mulheres muçulmanas usem em público véus que cubram os rostos delas. O governo francês alega que, com a medida, pretende proteger a condição feminina (parte do princípio que o uso se dá por imposição dos homens, maridos ou pais); afirma ainda que seria uma forma de garantir o princípio do Estado laico. A punição para aquelas que descumprirem a nova legislação envolve multa de 150 euros e aulas de cidadania. 

Se o propósito de Sarkozy e sua trupe fosse de fato estabelecer a igualdade de gêneros, deveriam preocupar-se com outras questões (violência contra a mulher e salários desiguais, apenas para citar duas vertentes). Mais: será mesmo que apenas os homens muçulmanos são machistas e tentam controlar as vidas de suas companheiras, impondo a elas hábitos e costumes? Entre os católicos franceses, por exemplo, estão absolutamente bem resolvidas as assimetrias entre homem-mulher? A discussão parece desfocada.

Caso a outra motivação fosse mesmo fazer valer a laicidade, e adotando a linha de raciocínio "sarkozyniana", não deveria o governo proibir também a exposição de outros símbolos religiosos, como crucifixos e a estrela de David, em quaisquer lugares públicos? Por que o alvo é apenas o véu islâmico? Estado laico é aquele que não abraça religião alguma e pressupõe o livre arbítrio, a diversidade de crenças e espiritualidades, sem privilégio para nenhuma delas - incluindo o direito de ser ateu - e a convivência democrática entre todas as práticas. Não significa, em hipótese alguma, cerceamento e perseguição a uma religião específica. Se for assim, o Estado toma partido e faz opção - e obviamente deixa de ser laico. E o que se configura claramente com essa lei é a demonização dos diferentes, nesse caso representados por um grupo bem definido e focado, os muçulmanos, não raro e não por acaso vistos ainda como perigosos, por serem também "potenciais terroristas". É uma imagem que o Estado francês, ao agir com tal truculência e sectarismo, ajuda a reforçar no imaginário popular.

Fico imaginando o que as autoridades públicas francesas desejam "ensinar" nas tais aulas de "cidadania" previstas pela legislação às mulheres que ignoram a determinação e insistem em usar os véus... Será que esse espaço não será usado para verdadeiras lavagens cerebrais e exercícios velados (ou não) de pressões e do terror, mostrando às mulheres que ou elas passam a seguir as regras do jogo ou estarão sujeitas a punições e à execração pública, correndo risco, no limite, de ter de deixar o país? Não seria  muito mais uma (nem tão) sutil forma de coagi-las e de aculturá-las, pregando as supostas virtudes e superioridades dos valores e princípios de vida ocidentais e desqualificando o atrasado Islã? 

No domingo, 17 de abril, outra demonstração de intolerância: o governo francês fechou as fronteiras e impediu a passagem - e o desembarque - de um trem saído da Itália que transportava imigrantes africanos (a maioria tunisianos), que têm desesperadamente buscado refúgio na Europa por conta das crises enfrentadas pelos países de origem árabe do norte da África. Em agosto do ano passado, centenas (segundo versões oficiais) de ciganos que viviam na França foram expulsos do país e deportados principalmente para a Bulgária e a Romênia. Pouco antes, no dia 20 de julho, em discurso feito na Secretaria de Segurança Pública da cidade de Grenoble (sudoeste do país), o presidente francês já havia reforçado o viés xenófobo de seu governo ao estabelecer associação direta entre imigrantes e delinquentes e ameaçar "retirar a nacionalidade francesa de estrangeiros que cometessem crimes contra autoridades públicas ou funcionários de segurança do país". As iniciativas foram duramente condenadas pelo Comitê para Eliminação da Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas (ONU).

O roteiro perseguido por Sarkozy é velho conhecido - e extremamente perigoso: diante de um cenário de crise econômica e de perda de popularidade, e vislumbrando as eleições presidenciais marcadas para 2012, apela para um nacionalismo mambembe e excludente, que faz do estrangeiro o invasor responsável por todas as mazelas e dificuldades vividas pelo país.

Em artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico no já distante ano de 2002, o cientista político Antonio Inácio Andrioli analisava com muita propriedade a xenofobia que voltava a  assustar a Europa. As reflexões apresentadas naquele momento revelam-se infelizmente ainda atuais e podem ser lidas à luz singular do que acontece na França. Escreve o pesquisador que "idéias que se tinha como fora de moda, absurdas e retrógradas, podem novamente vir a ser atuais e modernas. Isso significa que as idéias não morrem pelo simples decurso do tempo e que, em conformidade com o espírito de uma época, podem retornar". Segundo ele, "é mais fácil responsabilizar os estrangeiros pelo desemprego, pela criminalidade e pela insegurança, do que entender as complexas razões dos problemas. As soluções apresentadas são, então, também bem simples e conduzem à xenofobia, quando os estrangeiros são tratados como concorrência indesejada". 

Os estragos patrocinados por Sarkozy podem ser ainda maiores: de acordo com pesquisas eleitorais divulgadas recentemente, a candidata da Frente Nacional (o partido da extrema-direita), Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen, alcançaria cerca de 25% dos votos no primeiro turno, caso a disputa acontecesse hoje, e chegaria à frente de todos os demais postulantes ao cargo (incluindo Sarkozy). Beneficiada pela xenofobia que se alastra, Marine mantém fidelidade aos pressupostos defendidos pelo pai, mas apresenta-se com um verniz moderno e com fala mais suave e sedutora. Em entrevista à Folha de São Paulo (disponível para assinantes), o historiador francês Michel Winock reforça que "a natureza da Frente Nacional não mudou nada, mas Marine Le Pen conseguiu alterar e rejuvenescer sua imagem". Trata-se portanto de uma figura política ainda mais perigosa que o pai.   

É tarefa obrigatória acompanhar muito de perto o que acontece na França. Os ventos que nascem lá não demoram a influenciar outros países europeus - e terminam por atravessar o oceano Atlântico e desembarcar também por aqui. Foi assim com a Inconfidência Mineira, lembrada nesta semana por conta da passagem de mais um 21 de abril, e fortemente influenciada pelos ideais iluministas que impulsionariam também a Revolução Francesa de 1789. 

sábado, 16 de abril de 2011

A NOVELA PH GANSO EM SETE LIÇÕES

Virou uma novela, com requintes de um disse-que-disse bem ao gosto de uma certa parcela da crônica esportiva brasileira (grifo proposital, para escapar de generalizações injustas), o possível rompimento (ou não, como diria Caetano Veloso) do contrato que o craque Paulo Henrique Ganso tem com o Santos Futebol Clube. O desavisado que não acompanha futebol ficaria perdidinho da silva se de repente decidisse se informar sobre o caso e buscasse então notícias publicadas a respeito do jogador santista no último mês: Ganso já vestiu as camisas do Milan, da Internazionale de Milão e do Corinthians. Mas continua mesmo atuando pelo alvinegro praiano. Desse enredo confuso e estranho, consigo extrair sete lições, a saber:

Primeira lição - O clube de origem merece respeito
Jogador de futebol não é escravo. Tem o direito de escolher por qual clube deseja atuar, avaliando as condições de trabalho que lhe são oferecidas, como qualquer outro profissional. Trata-se de livre arbítrio. Cumprindo a legislação em vigor, as determinações fixadas em contrato e respeitados os compromissos estabelecidos por tal documento (assinado pelo atleta, não custa lembrar), pode trocar de time quando bem entender. O que se espera, no entanto, eticamente falando, é que o jogador tenha maturidade para encaminhar essa negociação de ruptura de maneira equilibrada e transparente, com lisura. E, se de fato estiver se encontrando com dirigentes de outras agremiações na calada da noite, sem que o Santos saiba de tais encontros e sem que participe diretamente das negociações (como aliás exige o estatuto da FIFA), para depois negar diante das câmeras e dos microfones que essas conversas nas catacumbas tenham sido encaminhadas, Paulo Henrique Ganso pode sim ter seu comportamento, para além dos gramados, fortemente questionado e duramente criticado. Jogadores, invariavelmente e com razão, cobram dos clubes que representam que sejam tratados com respeito e dignidade. Devem oferecer a contrapartida, mesmo nos momentos mais tensos e enrolados. O que vale para um precisa valer também para o outro lado. É via de mão dupla.

Segunda lição - Em campo, o craque tem sido exemplo
Se é possível criticar Ganso por aquilo que supostamente estaria negociando com outras equipes, a conduta do craque em campo, dentro das quatro linhas, tem sido até aqui irreparável, digna de aplausos. O jogo contra o Cerro Portenho do Paraguai, pela Copa Libertadores, foi a demonstração máxima desse profissionalismo. Ganso assumiu a responsabilidade de liderar a equipe que estava desfalcada, deu passes preciosos, cansou de colocar companheiros na cara do gol e foi um dos responsáveis pela vitória importantíssima. Foi com toda a justiça que o técnico Muricy Ramalho elogiou a participação do craque na partida. Justo reconhecer que já vinha sendo assim desde o jogo contra o Botafogo de Ribeirão Preto, quando retornou aos gramados. Não procedem, na minha leitura, os gritos que às vezes têm ecoado das arquibancadas e repercutido nas redes sociais acusando Ganso de mercenário. Em campo, repito, não tem sido assim. O atleta vem honrando o sagrado manto santista. O que ainda falta é um pouco de ritmo de jogo, natural para quem ficou sete meses sem atuar. Nesse aspecto, vale como referência para outros companheiros.

Terceira lição - Que diferença faz um técnico!   
Diante das idas e vindas do folhetim, Muricy Ramalho mostra que técnico ainda é peça estratégica e mais do que relevante em uma equipe de futebol. O treinador conseguiu isolar Ganso das pressões e reforçou ao jogador que, noves fora e transações à parte, é preciso treinar e jogar bola, enquanto o barco estiver ancorado em porto santista. Foi isso o que Ganso preocupou-se em fazer em Assunção, quando muitos corneteiros diziam que ele pouco se importaria com a disputa, pois uma eventual derrota do Santos aceleraria a ida do craque para o Corinthians, com quem já estaria apalavrado. Melhor: Muricy montou um esquema de jogo que favoreceu a genialidade de Ganso - ou seja, longe de queimar o jogador, tratou de aproveitar o que ele tem de melhor. O "se" não faz história, mas o enredo poderia hoje ser outro se Muricy tivesse chegado ao Santos antes. Tomara que ele consiga usar sua  experiência e liderança para chamar Ganso à realidade e convencê-lo do que ainda tem a conquistar (em todos os sentidos, inclusive financeiramente) se decidir permanecer no Santos. Ainda dá tempo.

Quarta lição - rivalidades clubísticas não podem assumir ares de trairagem
Caso as especulações se confirmem (prefiro tratar dessa maneira) e se Ganso for mesmo jogar no Corinthians, terá sido deplorável e lamentável a atitude da direção da equipe de Parque São Jorge, ao aliciar o jogador, à revelia da diretoria do Santos (prática que, reforço, é condenada pela FIFA). Pior: em público, o mandatário corinthiano só faz negar a eventual negociação e, de acordo com o presidente santista, Luis Álvaro Ribeiro, teria inclusive se preocupado em entrar em contato com a cúpula da equipe praiana para negar boatos e garantir que em hipótese alguma agiria de forma desleal e anti-ética. Chegou a chamar o Santos de "co-irmão". Se (sempre no condicional) Ganso desembarcar no Parque São Jorge apenas para concretizar o "clube de aluguel" e aguardar a janela de transferências do final do ano, será possível inferir que palavras corinthianas empenhadas valem quase nada e que as várias faces da conveniência e da dissimulação ditam as regras de conduta e comportamento por lá. Pode parecer antigo, ingênuo, romântico, "futebol é negócio", mas ainda sou de um tempo em que promessas - verbais inclusive - eram cumpridas. Tapetes puxados devem ser repelidos. Acirram ânimos dos torcedores, sempre passionais; deixam orgulhos tocados e feridas que demoram a cicatrizar, encaminhando projetos de vingança e de futuras disputas. Desnecessário. 

Quinta lição - forças não tão ocultas assim querem prejudicar o Santos
Foi Antero Greco, respeitado (com muita justiça) comentarista da ESPN Brasil e colunista do jornal O Estado de São Paulo, quem escreveu no twitter, em 12 de abril: "Não tenho rabo preso com ninguém e, graças a Deus, posso falar o que quero. Nessa história do Ganso, tem sacanagem contra o Santos. Fato." Não é segredo para ninguém que a DIS, braço futebolístico do grupo Sonda, detentora de 45% do passe do Ganso e responsável ainda por gerenciar a carreira do atleta, ficou ressentida com as mudanças promovidas no clube pelo presidente Luis Álvaro, principalmente em relação à divisão sobre porcentagens dos direitos de jogadores e à participação nas categorias de base do Santos. Há inclusive sérias disputas judiciais entre as partes. E ao que parece a DIS está usando Ganso para dar o troco no clube, tentando criar todas as condições para tornar insustentável a permanência do craque na Vila Belmiro. Dirá então que o clube não soube valorizar o atleta, que o camisa 10 está sendo hostilizado pela torcida e que deseja respirar outros ares. Vai fazer do jogador o santo e do clube, o vilão. Está de olho no negócio, nos milhões (de euros ou de reais) em questão. O experiente Elano declarou recentemente: "Ganso está sendo mal assessorado". Já é mais do que tempo de a legislação esportiva repensar tudo isso e se adaptar aos novos tempos. A Lei Pelé foi fantástica ao acabar com o passe e com a servidão. Mas fez um mal danado ao futebol ao dar brecha para o surgimento da figura do empresário - os novos senhores feudais do esporte, que controlam exércitos de jogadores.   

Sexta lição - Há uma guerra política interna. E a atual direção do Santos também erra.
2011 é ano eleitoral no Santos. A oposição, que deseja ardentemente retomar o comando do clube, não mede esforços para alcançar tal objetivo. O ex-presidente da agremiação tem aproveitado toda essa situação para tentar faturar politicamente e enfraquecer a atual administração. Já deu diversas declarações públicas afirmando que o patrimônio do Santos não está sendo bem cuidado. E, embora seja louvável o esforço feito para resgatar, modernizar e moralizar o clube (não há termos de comparação com projetos anteriores), precisa ser dito também que o presidente Luis Alvaro e sua diretoria escorregaram e não foram felizes ao congelar as negociações para renovação de contrato com Ganso, depois da contusão do craque. Deram munição para a DIS. Pisaram novamente na bola ao tentar fazer com que o jogador assinasse novo compromisso na concentração, às vésperas da partida contra o Colo Colo do Chile. Ficou parecendo pressão - e voltou a elevar a temperatura de uma disputa que vinha arrefecendo. Deram outra vez discurso para a DIS. Por fim, é preciso democraticamente debater e questionar a decisão da diretoria de também dividir direitos de jogadores com grupos de amigos. Permanecem pouco transparentes, ao menos para mim, as parcerias envolvendo o Santos e a Terceira Estrela Investimentos (TEISA), ligada à Guia, um grupo de empresários próximos do mandatário santista e que participa da aquisição de atletas (Neymar é o caso mais gritante. Não entendi as contas divulgadas pela diretoria). Para ser diferente, é preciso fazer diferente. Ser transparente. E explicar. Sem tergiversar. Não estariam sendo fomentadas novas relações duvidosas e futuras disputas envolvendo investidores e clube, outros "casos Ganso?". 

Sétima lição - Jornalismo não pode abrir mão de apuração
Infelizmente, o que se nota é que parcela representativa do jornalismo esportivo brasileiro parece se deliciar com a prática da boataria, em detrimento da velha e boa apuração. Polêmicas vazias envolvendo rivalidades entre clubes ajudam a vender jornais - mas prestam desserviço aos leitores. Talvez Ganso esteja mesmo negociando sua ida para o Corinthians. É uma hipótese, que precisa ser devidamente sustentada. Não nego - mas não boto a mão no fogo. Até porque até aqui ele só fez negar essa possibilidade. E olha que os urubus estão tentando com todas as forças arrancar essa declaração do jogador. Claro, dirão os iluminados, ele não seria tolo ou ingênuo de confirmar. Faz sentido, certamente. Não sou bobo. O que não se pode aceitar é que esse "não dizer" seja imediatamente substituído por especulações, boatarias, disse-que-disse, declarações secretas, declarações bombásticas, pirotecnias, desmentidos e balões de ensaio. Mesmo para oferecer o off (informação em que a fonte não é identificada) é preciso apurar, checar, confrontar, buscar segurança. Bob Woodward e Carl Bernstein, ícones do jornalismo investigativo e responsáveis pelo caso Watergate, teriam muito a ensinar a alguns de nossos afoitos repórteres (insisto: não é justo generalizar. Há gente séria fazendo jornalismo esportivo). Ganso pode ir para o Milan? Sim. Para a Inter? Sim. Para o Corinthians? Sim. Pode resolver ficar no Santos? Sim. No limite, tudo vale. Espalha-se a confusão e abre-se o leque de alternativas - para que, a partir do "tudo pode ser", o veículo possa ao final faturar, qualquer que seja o resultado da disputa. Se um dos clubes italianos sair vencedor, o discurso será "avisamos e levantamos essa lebre"; se o destino for o Parque São Jorge, comemorarão: "o furo foi nosso". Por fim, se nada mudar e o Santos renovar com o jogador, escreverão que "foi uma reviravolta inesperada de última hora". E seguirão em frente. Até o próximo folhetim.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

DESCONSTRUINDO CINCO MITOS SOBRE O FUTURO DO JORNALISMO

(*) Texto originalmente publicado pelo "Observatório da Imprensa" (www.observatoriodaimprensa.com.br), em 14/4/2011. Reprodução autorizada. 
Em artigo no Washington Post [7/4/11], o jornalista Tom Rosenstiel, diretor do Projeto para Excelência em Jornalismo, do Pew Research Center, analisou cinco mitos sobre o futuro do jornalismo. "Há poucas coisas que os jornalistas gostam de debater mais do que eles próprios e as perspectivas para sua indústria", diz. "Por quanto tempo os jornais impressos vão sobreviver? Os sites agregadores de notícias são o futuro? Ou seria a cobrança por acesso online o caminho a se seguir?" são algumas das principais perguntas quando se fala em futuro do jornalismo.

Vamos aos mitos:

* Os veículos tradicionais estão perdendo seu público
Acreditava-se que a ascensão da internet e das publicações online significaria a perda dos leitores e telespectadores dos veículos de mídia tradicionais. Sim, a migração aconteceu. Em 2010, segundo uma pesquisa do Pew Research Center, a internet ultrapassou pela primeira vez os jornais como meio onde os americanos buscam suas notícias regularmente – 46% dos entrevistados disseram que buscam notícias online pelo menos três vezes por semana, e 40% disseram ler jornais com a mesma frequência.
Mas...
Os consumidores de notícias online buscam suas informações, na grande maioria, em sites de fontes tradicionais. Dos 25 sites de notícias mais populares nos EUA, 23 são páginas de veículos tradicionais como jornais e emissoras de TV – New York Times e CNN, por exemplo – ou agregadores de notícias de veículos tradicionais, como Google News ou Yahoo. Dos cerca de 200 sites de notícias com maior tráfego, 81% fazem parte da mídia tradicional ou dos agregadores de suas notícias.

* O jornalismo online ficará bem com o aumento da receita publicitária
Em 2010, a publicidade na internet nos EUA ultrapassou pela primeira vez a publicidade impressa, chegando a US$ 26 bilhões. Mas apenas uma pequena fração deste dinheiro foi para as organizações de notícias. A grande parte foi para ferramentas de busca – em especial, o Google.
Segundo Rosenstiel, a indústria de jornais ilustra bem o problema: enquanto metade do público migrou para os jornais online, a indústria impressa teve, no ano passado, receita publicitária de US$ 22.8 bilhões, e a receita gerada pelos jornais online foi de US$ 3 bilhões. "Em décadas passadas, o jornalismo teve sucesso porque as notícias eram a principal forma da indústria alcançar seus consumidores. No novo cenário midiático, há muitas outras maneiras de atingir seu público, e as notícias representam apenas uma pequena parcela", diz.

* O conteúdo sempre irá reinar
No século 20, a lógica era simples: produza o jornalismo (ou o conteúdo) que o público quer, e você terá sucesso. No século 21, esta situação mudou. Ao que parece, terá sucesso quem tiver o maior conhecimento sobre o comportamento da audiência, e não quem produzir o conteúdo mais popular. Entender quais sites as pessoas visitam, qual conteúdo veem, quais produtos compram e até mesmo suas coordenadas geográficas permitirá que anunciantes foquem melhor nos consumidores individuais. E este conhecimento ficará mais com empresas de tecnologia do que com produtoras de conteúdo.

* A tiragem dos jornais em todo o mundo está em declínio
A tiragem impressa mundial subiu mais de 5% nos últimos cinco anos e o número de jornais está crescendo. Enquanto sofre nas nações ricas, a mídia impressa floresce no mundo em desenvolvimento – em parte por conta do crescimento da alfabetismo, da expansão da população, do desenvolvimento econômico e da baixa penetração da banda larga. Na Índia, por exemplo, a população está crescendo e se tornando mais letrada, mas uma grande parcela ainda não está online.

* A solução é focar nas notícias locais
Há alguns anos, surgiu a ideia de que veículos menores tinham que se concentrar nas notícias locais, já que, com a internet, as pessoas podem acessar informações de qualquer lugar do mundo. Desta forma, não fazia mais sentido tentar competir com grandes empresas de comunicação. O problema com o conteúdo "hiperlocal" é seu apelo limitado, diz Rosenstiel. Sem mercado de massa, com poucos anunciantes e muito pouco lucro.
"Deve se cobrar pelo conteúdo online? É possível construir um modelo em que jornalistas profissionais contam com a ajuda de amadores, com salários mais baixos, para produzir reportagens abrangentes? Ou seria a solução algo como o Patch, da AOL, em que centenas de sites hiperlocais pertencem a uma única companhia que conecta os leitores aos grandes anunciantes?".
Até agora, ressalta ele, ninguém conseguiu descobrir como produzir notícias locais online com lucro.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

BRASIL, CHINA E ONU - O QUE O ESTADÃO AFIRMA, A FOLHA NEGA

Título da matéria da Folha de São Paulo, quarta-feira, 13 de abril, caderno Mundo, página A18:
"China frustra Brasil e nega apoio na ONU".
Trechos da matéria:
"O Brasil novamente não obteve o respaldo chinês a vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Em um comunicado conjunto durante a visita da presidente Dilma Rousseff ao país, Pequim limitou-se a apoiar 'a aspiração brasileira de vir a desempenhar papel mais proeminente nas Nações Unidas'.
Trata-se de posição semelhante à adotada há cerca de um ano, quando o dirigente máximo da China, Hu Jintao, visitou o Brasil. No comunicado assinado com o então presidente Lula, falou-se em 'compreensão e apoio' a papel maior do Brasil na ONU".


Manchete da primeira página do jornal O Estado de São Paulo, quarta-feira, 13 de abril:
"China apoia aspiração do Brasil a mais poder na ONU".
Título da matéria do jornal O Estado de São Paulo, quarta-feira, 13 de abril, caderno Nacional, página A8:
"Ao Brasil, China diz ser prioridade ter 'nação em desenvolvimento na ONU'".
Trechos da matéria:
"Na visita da presidente Dilma Rousseff à China, o país asiático deu um passo adiante ao tratar da defesa do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. No comunicado conjunto assinado pelos dois países, a China se posicionou ao lado do Brasil ao assinalar que a representação das nações em desenvolvimento, naquele fórum, é agora uma "prioridade". 
"A China atribui alta importância ao papel e à influência que o Brasil, como maior país em desenvolvimento do hemisfério ocidental, tem desempenhado nos assuntos regionais e internacionais, e compreende e apoia a aspiração brasileira de vir a desempenhar papel mais proeminente nas Nações Unidas", diz um trecho do comunicado". 

Em texto de análise publicado bem ao lado desta matéria, ainda no Estadão, Lisandra Paraguassu escreve que "a China foi o mais longe que poderia ir e além do que o governo brasileiro esperava no apoio às aspirações do País a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU".


Minha pergunta: e agora, em quem acreditar? O comunicado oficial emitido pelos dois países obviamente é o mesmo. Mas, para a Folha, o documento "frustra aspirações brasileiras"; no Estadão, é visto como um "passo adiante e mais do que o governo brasileiro esperava". Não estamos falando de "interpretações distintas". Não há terceira via: ou a Folha esconde e minimiza, ou o Estadão exagera. Um dos dois veículos está brigando com os fatos. Façam as apostas. 

Quem sai perdendo? Os leitores, como sempre.

terça-feira, 12 de abril de 2011

SOBRE FASHION KIDS, SOCIALITEZINHAS E INFÂNCIAS PERDIDAS


Era uma manhã ensolarada de domingo. O pequeno se divertia com seu campeonato de futebol de botão, a pequena desenhava animadamente. Eu aproveitava para ler com um pouco mais de calma os jornais do final de semana. Editoriais, cadernos de Política, Economia, Internacional, Esportes... Até que, como um dos destaques do "Metrópole" do "Estadão", me deparei com a matéria "Fashion Kids reúne 'socialitezinhas". Hesitei. Sigo na leitura? Fui em frente, ressabiado, temeroso. Compartilho com você trechos da matéria - são algumas falas de mães de garotas com entre 5 e 9 anos. As meninas desfilaram em um tal de Fashion Weekend Kids (que, assumo minha ignorância, desconhecia solenemente).


"A Carol, com 8 anos, já foi 4 vezes à Disney" (a roupa que a menina veste, segundo a mãe, custou 500 reais). 

"A minha filha quer óculos Chanel, Prada. A gente gosta de coisas boas, eles aprendem". 

"Sabe o que eu acho? Se a gente comprasse na C&A, na Riachuelo, elas não estariam tão antenadas. Eu não imagino minha filha colocando uma roupa da Renner nem para dormir".  

"Elas não querem mais bufê infantil. Querem ir para Paris".

"Fomos (para a Disney) com duas malas, voltamos com cinco".

"No ano passado, teve até uma polêmica (na escola). Quase todas as crianças tinham ido à Disney. Como fazer com as que não foram?". 

A essa altura, você deve estar se remexendo na cadeira, incomodada (o), com um leve aperto no peito e respirando de forma mais acelerada. Sou solidário. Foi exatamente assim que me senti ao terminar de ler a matéria. E imediatamente me lembrei da reportagem "Festinha de meio milhão", publicada pela Folha de São Paulo em março de 2008 (não disponível on-line). É disso mesmo que o texto tratava: festas infantis que chegavam a custar 500 mil reais. Em uma delas, dois 'monstros' decidem, em determinado momento, tirar as fantasias... Surpresa! Lá estavam Reynaldo Gianecchini e Marcelo Antony; outro casal fez da própria mansão no Morumbi um safári, com tigre, elefante, dromedário e macacos de verdade. O filho queria muito. Os pais atenderam o pedido. Numa terceira, a  menina, fã da Cinderela, passeou de carruagem puxada por um cavalo branco pela agitada noite de Moema. Para entrar na festa, passou por um castelo com cinco mil bexigas - que custaram quase três mil reais. "Queria que ela chegasse em grande estilo", disse a mãe à reportagem. 

Não raro, nas mais diferentes situações e rodas de conversa, quando mostro minha indignação e minha preocupação ao citar essas "comemorações efusivas", ouço como resposta: "o dinheiro é deles, fazem com a grana o que quiserem". Respiro fundo. E dou a réplica: vá lá, mesmo admitindo que tenham essa prerrogativa, será que deveriam, como pais, cuidadores e educadores, exemplos, referências e espelhos de comportamentos para os filhos, agir dessa maneira? O que estou a sugerir é uma reflexão mais cuidadosa, profunda e responsável, filosófica até, sobre o ser pai, o ser mãe.  

E antes que alguém grite "pare de querer posar de pai sabichão e perfeito", digo em alto e bom som que essa possibilidade nem passa pela minha cabeça. Descubro cotidianamente minhas fragilidades, erros e defeitos e procuro assumi-los e lidar com eles da melhor maneira possível. Ser pai é estar disposto a aprender, todos os dias. Mas posso afirmar, com tranquilidade: jamais passou pela minha cabeça, mas nem como remotíssima hipótese, incentivar que minha filha participasse do tal Fashion Kids. Ou estimular meu filho a convidar os coleguinhas para uma festa de meio milhão de reais. Sim, há acertos e erros, mas certamente são outros os pressupostos, valores e princípios que pautam a formação dos dois. 

A tensão é inevitável. Porque na contrapartida do que procuramos colocar em prática em casa, e apesar de obviamente conhecer inúmeros outros pais e mães que também rechaçam esse consumismo estapafúrdio e que pautam a educação de seus filhos por visões humanistas de mundo (respeitadas as diversidades), o que lamento profundamente é que muito provavelmente, como sociedade, no conjunto da obra, somos minoria, e estamos majoritariamente abrindo espaço para gerações que valorizam tremendamente o TER, mas que pouco preocupam-se com o SER. São crianças e jovens que, com o respaldo e conivência dos pais, engalfinham-se pelo celular de última geração, pelo carro do ano, pelas roupas de marca, pelas baladas da moda - e fecham os olhos para generosidades, solidariedades, combate aos preconceitos, respeito ao próximo, leituras, transformação social. Há egoísmos e individualismos incontidos.  

Em matéria disponível no site do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (SINPRO-RS), Alfredo Jerusalinsky, presidente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, afirma que "neste ambiente contraditório de constituição de identidade, a criança vê-se num vazio onde deve responder a um ideal adulto, ao mesmo tempo em que vive num cotidiano marcado por uma cultura extremamente individualista, onde a relação com o outro se mede em termos puramente lógico e produtivo quanto à eficácia material.” 

Na "Folha de Londrina", abril de 2007, a pedagoga Ana Lúcia Vilella, então presidente do Instituto Alana, que trabalha com consumo infantil, lembrou que "sob o argumento do filho, de não querer ser diferente dos colegas de escola, os pais cedem aos apelos insistentes. Assim, acabam reforçando a ideia de que todo dia é dia de ganhar presente. A criança brinca um pouco e depois deixa de lado o brinquedo novo, já pensando em outro. Com isso não vai formar vínculos afetivos na vida. Lidar com a frustração faz parte do desenvolvimento". Os resultados, segundo a especialista: apatia, passividade, individualismo, distanciamento das relações familiares. 

Em 2005, pesquisa realizada pela MTV, em parceria com o Instituto Datafolha, entrevistou 2,3 mil jovens brasileiros, com entre 15 e 30 anos, das classes A, B e C, em São Paulo (capital e cidades do interior), Salvador, Brasília, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro (apenas capital). Alguns resultados importantes, que dão pistas simbólicas sobre as gerações que estamos formando: "defrontados com uma lista de 16 adjetivos que poderiam caracterizar a sua geração, mais de um terço dos entrevistados (37%) optou pela palavra "vaidade". O "consumismo" veio em segundo lugar. Os jovens brasileiros, segundo o levantamento, preocupam-se com a forma (75% praticam esportes e 31% tentam consumir alimentos dietéticos ou com baixa quantidade de calorias), aprovam as cirurgias plásticas com finalidades estéticas (55%) e se esforçam para estar atualizados com a moda (41% já trocaram de aparelho celular de duas a três vezes). Outro dado impressionante: 60% concordam que "pessoas bonitas têm mais oportunidades na vida".

Não estou aqui a estabelecer cartilhas e modelos de educação - sequer tenho competência para tanto. Nem de longe tenho a pretensão de esgotar o assunto. Também não condeno e/ou demonizo as crianças, nem assumo avaliação de natureza determinista e lombrosiana, a apontar o dedo e determinar "eis os deslumbrados e os desajustados do futuro". A vida em sociedade é complexa, dinâmica, permeada por conflitos e contrapontos. E também por mudanças e reviravoltas. 

Mas penso ser urgente sugerir algumas indagações que, reconheço, me atormentam - e assustam: como se estabelecem nesse universo as brincadeiras, a sociabilidade e o lúdico? Quando essas crianças são crianças? Para elas, tudo é fácil, tudo é prazer, tudo se resolve num estalar de dedos? Saberão essas crianças 'adultizadas' que desfilam e vão a Paris conviver no futuro com a frustração, com o "não" e com os limites da vida em sociedade? Saberão aceitar com serenidade e civilizadamente que nem sempre poderão alcançar tudo o que desejam? Terão condições de equilibrar direitos e deveres? E quando faltar o dinheiro para a Disneylândia e para a festa de 500 mil reais? E quando a redoma de vidro em que vivem se quebrar, o que acontecerá? Ao contrário, e se a redoma não se romper e o dinheiro não faltar? Continuarão a usar milhões para conter frustrações e para contemplar desejos infinitos e ilimitados, como se a vida fosse eterno mar de rosas e um permanente conto de fadas, um constante e simples exercício do tudo pode? Se aos 5 anos exigem Paris, safáris, carruagens de verdade, o que exigirão aos 10, aos 15, aos 30 anos? Conseguirão compreender que, para além da vida privada de fantasias, há um conviver democraticamente com as diferenças, uma esfera pública a enfrentar, e que nem sempre nos é amigável (desemprego, violência, exclusões, medo, estresses...)? 

Sigo pensando...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

REALENGO, MAIS UMA TRAGÉDIA NARRADA PELO ESPETÁCULO

Passei o dia de ontem com o coração apertadíssimo e a cabeça agoniada fervilhando, sem parar de funcionar, as ideias se formando e se perdendo de maneira desordenada, sem rumo, sem vontade. Esta sexta-feira não tem sido diferente. Angústia, impotência, perplexidade, indignação, revolta, identificação, preocupação, medo, solidariedade, desejo de pelo menos poder oferecer um ombro amigo - são muitos os sentimentos. E a percepção cada vez mais cristalina que diz que vivemos em um sociedade doente.  


Acompanhei os primeiros relatos sobre a tragédia da escola de Realengo, no Rio de Janeiro, por meio dos portais na internet. Recorri em seguida ao rádio. Em casa, liguei a TV. Assustado e chocado, desliguei o príncipe eletrônico em menos de uma hora, sem forças ou disposição para suportar mais um espetáculo midiático. 

Câmeras nervosas tremendo e focando os rastros de sangue, closes e planos fechados nos rostos de pais e mães em desespero, gritos, trilhas sonoras que ajudavam a produzir adrenalina em doses elevadas, perguntas descabidas e desrespeitosas como "o que a senhora sente depois de confirmada a morte da sua filha?" ou "como vai ser a sua vida agora?", apresentadores, âncoras e repórteres investindo em suposições e invencionices - "o assassino era um fanático religioso, ligado a grupos islâmicos, era homossexual, foi vítima de bullying, finalmente o Brasil entrou na rota do terrorismo internacional", as entradas ao vivo apenas destinadas a reforçar "o show continua, aguarde". Foi demais, pelo menos para mim. Não suportei. Por si só, a chacina já é chocante; não carece de exageros desumanos de cobertura.

Rafael Tsavkko escreveu com muita propriedade em seu blog que "as manchetes dos principais veículos de imprensa destoavam. Não se sabia o número de vítimas e houve ainda grande especulação até mesmo sobre a motivação do assassino, enquanto as redes de TV e jornais buscavam os melhores ângulos para mostrar de forma mais crua a tragédia. Sangue, choro e desespero foram mostrados incansavelmente pela grande mídia, cada uma tentando ir mais além, numa competição que beira a desumanidade".

Um minuto de silêncio, dedicado à reflexão.

Vamos lá: não estou certamente defendendo que o episódio, lamentável e terrível, devesse ter sido ignorado pelos veículos de comunicação. Ao contrário - trata-se de fato de interesse público, que precisa ser amplamente noticiado e debatido - publicamente, em todos os canais e fóruns possíveis. Mas não podemos apenas sentir a tragédia, reagindo de maneira instintiva, alimentando uma onda de histeria coletiva. É preciso sobretudo buscar compreendê-la, com profundidade, chamando à sociedade ao exercício apurado da reflexão. 

O jornalista norte-americano Fraser Bond, em seu clássico "Introdução ao Jornalismo", de 1959, estabelece que um dos deveres do jornalismo é ser decente, ou seja, sem falsos moralismos, é imprescindível manter distância do bizarro, do grotesco e do sensacional. Bond defende ainda que a profissão deve ser exercida com responsabilidade - o que significa pensar com muito cuidado sobre cada palavra que escrevemos e a respeito de cada cena que exibimos, avaliando impactos, desdobramentos e consequências, deixando martelar insistentemente nas nossas consciências as seguintes perguntas: "estou de fato prestando um serviço público, de forma ética? Estou contribuindo para garantir o direito à informação?". 

A presença constante destes questionamentos torna-se ainda mais relevante quando consideramos que, como sugere Luiz Gonzaga Motta, professor da Universidade de Brasília, o jornalismo alcançou a condição privilegiada de principal narrativa da contemporaneidade. É fundamentalmente por meios das narrativas jornalísticas que sistematizamos nossa visão de mundo. 

Em reportagem publicada pela revista Pesquisa Fapesp em novembro de 2004, Motta reforça que o jornalismo "pode ser visto como uma espécie de herdeiro do teatro grego, que, na Antigüidade, era o responsável por explicitar e levar para os palcos tragédias e comédias da humanidade. Já na era da globalização, as conquistas e os conflitos são narrados pelo jornalismo - e é por meio dele que promovemos a nossa catarse moderna".

Na mesma reportagem, Raquel Paiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz um alerta: "a volatilidade, marca do jornalismo atual, favorece o erro e o discurso do senso comum, que acaba por reforçar estereótipos, preconceitos e exclusões". Para Motta, "o grande risco seria a formação de sujeitos alienados e atomizados, incapazes de estabelecer relações e de compreender a complexidade das situações, e sem o repertório necessário para participar das discussões públicas. A linguagem de videoclipe anestesia e paralisa". Eis o saldo final do espetáculo. 

A essa altura, alguém poderá indagar: então, diante da tragédia, os jornalistas deveriam se comportar de forma fria e calculista? Jamais. Somos seres humanos. Sentimos. Choramos. Sofremos. Como escreve Eugênio Bucci em "Sobre ética e imprensa", "sem indignação, o espanto, a surpresa, não há reportagem. Banir a emoção da informação é banir a humanidade do jornalismo". Mas atenção: uma coisa é a emoção do jornalista; outra, bem diferente, é a guerra pela audiência. A sensibilidade que nos move (e que deve ser compartilhada com o público) não pode em hipótese alguma ser confundida com o espetáculo como uma ordem de mundo. 

O debate de fundo que está colocado, inadiável, é: afinal, para que serve o jornalismo? 

Tom Rosenstiel e Bill Kovach, em "Os elementos do jornalismo", escrevem que "a finalidade do jornalismo é fornecer informação às pessoas para que estas sejam livres e capazes de se autogovernar. As pessoas precisam de informação por causa de um instinto básico do ser humano, que chamamos de Instinto de Percepção. Elas precisam saber o que acontece do outro lado do país e do mundo, precisam estar a par de fatos que vão além de sua própria experiência. O conhecimento do desconhecido lhes dá segurança, permite-lhes planejar e administrar suas próprias vidas. Trocar figurinhas com essa informação se converte na base para a criação da comunidade, propiciando as ligações entre as pessoas".

Para que este processo se efetive, para que os laços sociais se estabeleçam e para que a humanidade faça valer sua dimensão civilizada e civilizatória, é preciso afastar o jornalismo do espetáculo. Sei que tenho neste Blog insistido quase à exaustão na urgência deste movimento, como se fosse um mantra. Mas o fato é que o rei está nu. E insiste em permanecer assim. O que nos obriga, do lado de cá, a continuar gritando. 

sexta-feira, 1 de abril de 2011

JAIR BOLSONARO É PORTA-VOZ DE MUITOS BRASILEIROS

O silêncio pode em algumas situações significar perigosa conivência. Por essa razão, não penso ser desejável e adequado simplesmente ignorar o episódio apenas com intuito de não jogar mais holofotes sobre alguém que pretende se alimentar dessas luzes da audiência. Ao contrário: há algumas reflexões importantíssimas que merecem ser feitas, a partir das lamentáveis e criminosas declarações feitas pelo capitão-deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) ao programa CQC, exibido pela TV Bandeirantes na segunda-feira, dia 28 de março.

Ao responder a questionamento da cantora Preta Gil sobre a possibilidade de um filho dele namorar uma negra e vociferar, em horário nobre, que "não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como, lamentavelmente, é o teu", Bolsonaro explicitou - e não pela primeira vez - duas ordens de preconceitos, simultaneamente: homofobia e racismo. Ardiloso, não demorou a avisar que "não havia entendido a pergunta" e tentou desculpar-se com o movimento negro, intensificando no entanto as investidas intolerantes contra homossexuais. 

A estratégia é pensada: racismo, no Brasil, é crime inafiançável e tipificado pela Lei 7716, de 5 de janeiro de 1989. A pena pode chegar a cinco anos de prisão. A homofobia, ao contrário, ainda não é juridicamente considerada um crime. Daí a necessidade premente de aumentar a pressão sobre o Senado Federal em favor da aprovação do Projeto de Lei 122/2006, que criminaliza as práticas homofóbicas e as iguala ao crime de racismo. 

No início do ano, por iniciativa da senadora Marta Suplicy (PT/SP), a proposta foi desarquivada e deverá ser analisada pela comissão de Direitos Humanos da casa, antes de chegar ao plenário. Aprová-la representaria, na avaliação do Movimento Não à Homofobia,  "colocar o Brasil na vanguarda da América Latina, assim como o Caribe, como um país que preza pela plenitude dos direitos de todos seus cidadãos, rumo a uma sociedade que respeite a diversidade e promova a paz". 

Liberdade de expressão???
Diante das reações imediatas e intensas dos movimentos sociais e dos setores progressistas da sociedade, e mais uma vez ardiloso, Bolsonaro apelou para o desgastado argumento do "estou sendo censurado, quero ter garantido meu direito à liberdade de expressão". Falso. O capitão-deputado mistura, no dito popular, alhos com bugalhos e procura confundir para tentar convencer. No limite, trocando em miúdos, o que ele faz é reivindicar o direito de ter preconceitos e de manifestá-los pública e impunemente. Estapafúrdio, um contra-senso. Uma atrocidade e aberração.

Porque certamente a Constituição Federal estabelece, em seu capítulo primeiro, artigo quinto, inciso nono que "é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença". No entanto, como bem lembra o advogado Rogério Faria Tavares em artigo publicado pelo Observatório da Imprensa, "o cidadão que, no ato de expressar-se, violar a integridade de qualquer outro membro do referido elenco de direitos, não está resguardado por qualquer garantia constitucional: incorre em flagrante desrespeito à Carta de 88 e deve sofrer as consequências correspondentes". O especialista completa: "quando o ato de expressar-se se dá fora do contexto jurídico apropriado, sua qualificação é outra: "abuso," "infração" ou "crime".

Direitos estão associados a deveres e a responsabilidades. A liberdade de expressão, pilar fundamental e insubstituível da democracia, uma das razões de ser do regime democrático, não é absoluta e deve estar conectada harmonicamente a outros preceitos constitucionais também importantíssimos para o funcionamento do Estado de Direito. A prerrogativa de dizer não pode atentar contra a dignidade de outro ser humano. Para construir uma analogia e guardadas as diferenças e devidas proporções: admitir que, em nome da liberdade de expressão, Bolsonaro pode vir a público para manifestar intolerâncias contra negros e homossexuais seria como aceitar que Hitler estava correto ao professar em seus discursos agressões contra os judeus, ciganos, imigrantes, mulheres, portadores de deficiência física, negros e homossexuais... Pois é...

Estimular o debate????
Não procede também a "justificativa" anunciada pelo CQC para convidar o capitão-deputado para a entrevista: o programa alegou que, por ser uma figura polêmica e sem papas na língua, Bolsonaro ajudaria a enfrentar tabus e a incentivar o debate. O "confundir para explicar" se manifesta novamente. Não há dúvidas que, em democracias, pluralidade e contraditório precisam ser fomentados, mas dentro dos marcos constitucionais e civilizatórios, da legítima e desejável divergência racionalizada, sem que representem apologia da intolerância, do preconceito e, no limite, do crime. É isso: debater significa apresentar ideias e argumentos - não incitar ou cometer crimes. 

Lembra o jornalista Eduardo Guimarães, no Blog da Cidadania, que "toda vez em que você critica pessoas publicamente por suas características intrínsecas, tais como cor da pele, origem geográfica, crença religiosa ou comportamento sexual, entre outros, está, sim, discriminando, pondo à parte e condenando pessoas por uma faceta delas que não têm como mudar".

E eu recordo cá com meus botões que, em 1992, ao apoiar a decisão da escola Ursa Maior, na capital paulista, de recusar a matrícula da aluna Sheila Carolina de Oliveira, 5 anos, por ser portadora do vírus da Aids, o então presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (SEMESP), José Aurélio de Camargo, afirmou sem pudores que "a criança aidética já nasce com atestado de óbito assinado e portanto não precisa estudar". Abjeto, de embrulhar o estômago. Recuou em seguida, lamentando "o mal-entendido e dizendo que apenas desejava incentivar o debate sobre a doença". Cinismo leviano levado às últimas consequências. A propósito: o argumento do CQC ao explicar o espaço oferecido a Bolsonaro é de natureza bastante semelhante, não?

É preciso considerar ainda mais uma confusão deliberadamente incentivada pelo programa. Não raro, os professores nos deparamos em sala de aula com falas do tipo "você viu a reportagem feita pelo CQC? Ficou boa aquela entrevista feita pelo CQC, não?". Ora, entrevista e reportagem são conceitos e técnicas pertencentes ao campo do jornalismo (que faz pensar e incentiva reflexões); o CQC é um programa de entretenimento (que espetaculariza, provoca sensações e cutuca os instintos mais primitivos). Espertamente, o programa movimenta-se para se apropriar da chancela de credibilidade e reconhecimento sociais de que o jornalismo ainda dispõe. Faz humor (e nem vou entrar no mérito do tipo e da qualidade do humor que faz), mas alega informar. Mais uma vez, é preciso estar atento e saber separar o joio do trigo. 

Ventos do fascismo
Não menos importante: Jair Bolsonaro cumpre atualmente o seu sexto mandato como deputado federal e recebeu em 2010, na última disputa, 120.646 votos, alcançando o posto de décimo-primeiro mais votado no Rio de Janeiro. "Logo, tem adeptos fiéis. Conta com financiadores perseverantes", reforça Saul Leblon, na Agência Carta Maior. Sugiro exercício bem simples: acompanhar cartas sobre o assunto que têm sido publicadas pelos jornais, nas seções dos leitores. Boa parte delas tece elogios à postura de Bolsonaro. Cuidado: o capitão-deputado está longe de ser uma caricatura; ao contrário, publiciza, reverbera e amplifica aquilo que muita gente no Brasil infelizmente pensa e defende: extermínio de pobres, perseguição às minorias, pena de morte, tortura, racismo, homofobia, ditadura... 

Bolsonaro funciona como porta-voz de setores representativos e significativos da sociedade brasileira (só para lembrar, ao abrir a caixa de Pandora na eleição presidencial de 2010, José Serra conquistou cerca de 44% dos votos no segundo turno). O comportamento do capitão-deputado e as falas dele - e o respaldo social que recebem - nos levam a duas importantes reflexões finais. Primeiro: conseguimos, os setores progressistas, vencer a disputa presidencial nas três últimas eleições - mas estamos certamente falhando na construção de hegemonia de valores e princípios. Segundo (e como consequência da anterior): os ventos do fascismo insistem em soprar despudoradamente por aqui.