Passei o dia de ontem com o coração apertadíssimo e a cabeça agoniada fervilhando, sem parar de funcionar, as ideias se formando e se perdendo de maneira desordenada, sem rumo, sem vontade. Esta sexta-feira não tem sido diferente. Angústia, impotência, perplexidade, indignação, revolta, identificação, preocupação, medo, solidariedade, desejo de pelo menos poder oferecer um ombro amigo - são muitos os sentimentos. E a percepção cada vez mais cristalina que diz que vivemos em um sociedade doente.
Acompanhei os primeiros relatos sobre a tragédia da escola de Realengo, no Rio de Janeiro, por meio dos portais na internet. Recorri em seguida ao rádio. Em casa, liguei a TV. Assustado e chocado, desliguei o príncipe eletrônico em menos de uma hora, sem forças ou disposição para suportar mais um espetáculo midiático.
Câmeras nervosas tremendo e focando os rastros de sangue, closes e planos fechados nos rostos de pais e mães em desespero, gritos, trilhas sonoras que ajudavam a produzir adrenalina em doses elevadas, perguntas descabidas e desrespeitosas como "o que a senhora sente depois de confirmada a morte da sua filha?" ou "como vai ser a sua vida agora?", apresentadores, âncoras e repórteres investindo em suposições e invencionices - "o assassino era um fanático religioso, ligado a grupos islâmicos, era homossexual, foi vítima de bullying, finalmente o Brasil entrou na rota do terrorismo internacional", as entradas ao vivo apenas destinadas a reforçar "o show continua, aguarde". Foi demais, pelo menos para mim. Não suportei. Por si só, a chacina já é chocante; não carece de exageros desumanos de cobertura.
Rafael Tsavkko escreveu com muita propriedade em seu blog que "as manchetes dos principais veículos de imprensa destoavam. Não se sabia o número de vítimas e houve ainda grande especulação até mesmo sobre a motivação do assassino, enquanto as redes de TV e jornais buscavam os melhores ângulos para mostrar de forma mais crua a tragédia. Sangue, choro e desespero foram mostrados incansavelmente pela grande mídia, cada uma tentando ir mais além, numa competição que beira a desumanidade".
Um minuto de silêncio, dedicado à reflexão.
Vamos lá: não estou certamente defendendo que o episódio, lamentável e terrível, devesse ter sido ignorado pelos veículos de comunicação. Ao contrário - trata-se de fato de interesse público, que precisa ser amplamente noticiado e debatido - publicamente, em todos os canais e fóruns possíveis. Mas não podemos apenas sentir a tragédia, reagindo de maneira instintiva, alimentando uma onda de histeria coletiva. É preciso sobretudo buscar compreendê-la, com profundidade, chamando à sociedade ao exercício apurado da reflexão.
O jornalista norte-americano Fraser Bond, em seu clássico "Introdução ao Jornalismo", de 1959, estabelece que um dos deveres do jornalismo é ser decente, ou seja, sem falsos moralismos, é imprescindível manter distância do bizarro, do grotesco e do sensacional. Bond defende ainda que a profissão deve ser exercida com responsabilidade - o que significa pensar com muito cuidado sobre cada palavra que escrevemos e a respeito de cada cena que exibimos, avaliando impactos, desdobramentos e consequências, deixando martelar insistentemente nas nossas consciências as seguintes perguntas: "estou de fato prestando um serviço público, de forma ética? Estou contribuindo para garantir o direito à informação?".
A presença constante destes questionamentos torna-se ainda mais relevante quando consideramos que, como sugere Luiz Gonzaga Motta, professor da Universidade de Brasília, o jornalismo alcançou a condição privilegiada de principal narrativa da contemporaneidade. É fundamentalmente por meios das narrativas jornalísticas que sistematizamos nossa visão de mundo.
Em reportagem publicada pela revista Pesquisa Fapesp em novembro de 2004, Motta reforça que o jornalismo "pode ser visto como uma espécie de herdeiro do teatro grego, que, na Antigüidade, era o responsável por explicitar e levar para os palcos tragédias e comédias da humanidade. Já na era da globalização, as conquistas e os conflitos são narrados pelo jornalismo - e é por meio dele que promovemos a nossa catarse moderna".
Na mesma reportagem, Raquel Paiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz um alerta: "a volatilidade, marca do jornalismo atual, favorece o erro e o discurso do senso comum, que acaba por reforçar estereótipos, preconceitos e exclusões". Para Motta, "o grande risco seria a formação de sujeitos alienados e atomizados, incapazes de estabelecer relações e de compreender a complexidade das situações, e sem o repertório necessário para participar das discussões públicas. A linguagem de videoclipe anestesia e paralisa". Eis o saldo final do espetáculo.
A essa altura, alguém poderá indagar: então, diante da tragédia, os jornalistas deveriam se comportar de forma fria e calculista? Jamais. Somos seres humanos. Sentimos. Choramos. Sofremos. Como escreve Eugênio Bucci em "Sobre ética e imprensa", "sem indignação, o espanto, a surpresa, não há reportagem. Banir a emoção da informação é banir a humanidade do jornalismo". Mas atenção: uma coisa é a emoção do jornalista; outra, bem diferente, é a guerra pela audiência. A sensibilidade que nos move (e que deve ser compartilhada com o público) não pode em hipótese alguma ser confundida com o espetáculo como uma ordem de mundo.
O debate de fundo que está colocado, inadiável, é: afinal, para que serve o jornalismo?
Tom Rosenstiel e Bill Kovach, em "Os elementos do jornalismo", escrevem que "a finalidade do jornalismo é fornecer informação às pessoas para que estas sejam livres e capazes de se autogovernar. As pessoas precisam de informação por causa de um instinto básico do ser humano, que chamamos de Instinto de Percepção. Elas precisam saber o que acontece do outro lado do país e do mundo, precisam estar a par de fatos que vão além de sua própria experiência. O conhecimento do desconhecido lhes dá segurança, permite-lhes planejar e administrar suas próprias vidas. Trocar figurinhas com essa informação se converte na base para a criação da comunidade, propiciando as ligações entre as pessoas".
Para que este processo se efetive, para que os laços sociais se estabeleçam e para que a humanidade faça valer sua dimensão civilizada e civilizatória, é preciso afastar o jornalismo do espetáculo. Sei que tenho neste Blog insistido quase à exaustão na urgência deste movimento, como se fosse um mantra. Mas o fato é que o rei está nu. E insiste em permanecer assim. O que nos obriga, do lado de cá, a continuar gritando.
Discordo em partes professor. A cobertura dese massacre tinha que ser ou 8, ou 80. Era pra chocar, ou seria noticiado superficialmente. Não poderia passar como um simples episódio do cotidiano... Há casos em que o espetáculo se faz necessário.
ResponderExcluirConcordo que veículos como Record e RedeTV exploram até o límite do aceitável, mas eles não são exemplo de jornalismo decente!
Mas não é questão apenas de Record ou RedeTV, Márcio. A Globo, sempre considerada exemplo de "bom jornalismo" — não sei onde — também exagerou. Não era necessário, por exemplo, exibir as imagens do atirador morto na escadaria do colégio. Assim como diversos portais não precisavam ter exibido a foto do corpo do rapaz repleto de sangue em suas páginas de abertura.
ResponderExcluirE a Veja, então, que publicou a "Fórmula de como se fabrica um monstro"? Aliás, tenho medo de pensar qual será a capa da edição desta semana e aposto que a matéria virá recheada de juízos de valores.
Enfim. Para a mídia é muito cômodo tachá-lo de "muçulmano" (como se isso fosse defeito), "solitário", "louco", etc. Difícil é fazer uma análise aprofundada e tentar mostrar que vivemos, como o Chico citou, em uma sociedade doente.
Belo texto, bela análise. Passei o dia me perguntando exatamente isso. Para que tanto show, para que exploração sem sentido? Para que tantas suposições que, neste momento, são irrelevantes, já que consumada a tragédia? Já já, alguém vai "descobrir" que o tal de Wellington tinha ligações com a Al Qaeda ou que era representante do Hezbollah no Brasil. Enfim, como de costume, cobertura patética. Discordo, ainda, do comentário acima, respeitando, obviamente, a colocação. A cobertura desse fato deprimente não teria que ser chocante. Os fatos, por si só, já são chocantes o suficiente.
ResponderExcluirProfesshor (a lá Cauby),
ResponderExcluirfui leviano e devo confessar.
quando li o email acusando a potagem desse texto sobre o tal incidente fiquei ,pra dizer o minimo, ressabiado.
"o que esse cara vai falar.já nao há o suficiente?"
Sorte minha que o próprio conteudo de seu texto veio me absolver (e me consolar) quanto ao mau julgamento por mim feito.
A abordagem de nossa imprensa televisiva foi extremamente mal direcionada,digna de nojo, e contaminou-me de forma tão intensa a ponto de fazer-me pedir trégua.
Extremamente lúcido.
Parabens.
Concordo no que diz respeito à imagem do Wellington morto. A Globo realmente passou dos limites do aceitável também. Com relação a cobertura, não sou do tipo de deixar o leitor com a imaginação de como foi. E neste caso uma simples cobertura dizendo o número de mortos, o nome do colégio, a ação do Wellington e da polícia, seria superficial. Sem relato de sobreviventes, mães que perderam os filhos, não saberíamos de 10% do que aconteceu. Ainda assim, sou contra criarem suposições sobre a vida do rapaz. Investigar a vida dele cabe a polícia, e divulgar cabe a nós. Claro, toda divulgação seguindo a regra básica do jornalismo, que é: checar sempre a informação. Esta que foi noticiada sobre ele ser mulçumano, não foi checada. E reitero minha opinião, neste caso tinha que ser mostrada a história por completo. Sem poupar!
ResponderExcluir