A estreia foi marcada por expectativas intensas e por um burburinho considerável, que reverberou na velha mídia e também chegou às redes sociais. Preferi aguardar a exibição de alguns capítulos (uma parte deles, vi "ao vivo"; outros, recuperei na internet), para não escorregar em avaliações precipitadas. Depois de quase um mês no ar, me parece mesmo que, como narrativa ficcional, a novela "Amor e Revolução", exibida pelo SBT, deixa muito a desejar.
Os diálogos são ingênuos, fracos, soam infantis e superficiais, e parecem ter sido escritos por alunos do ensino fundamental. Será que os militantes de esquerda falavam e agiam mesmo da maneira caricata como a novela nos faz crer? É possível alegar que é ficção, que há liberdade de (re) criação, e que o objetivo seja exatamente esse - apresentar-se como uma trama didática, para alcançar um público que ainda não conhece ou pouco sabe a respeito dos anos de chumbo vividos pelo Brasil e precisa, por meio da estética do entretenimento, ter essa história resgatada e traduzida, para que a memória daqueles tempos possa se tornar acessível e inteligível. É legítimo abraçar esse caminho. É uma opção.
Ainda assim, minha percepção é que a narrativa se anuncia invariavelmente artificial, pouco convincente, distante. Em boa medida, essa avaliação é reforçada pelas atuações dos atores que, longe de serem arrebatadoras e instigantes, apresentam-se também pobres, pasteurizadas e insuficientes para incentivar empatias e pertencimentos, deixando por tabela de construir mecanismos de projeção e identificação.
Análises negativas à parte - e admito com toda a honestidade que são muito mais impressões de um telespectador, temperadas pelos pitacos do jornalista -, penso que a novela tem se destacado por cumprir um papel histórico e político da máxima relevância, quando, ao final de cada capítulo, traz depoimentos de militantes de esquerda e de ex-presos políticos que resistiram à ditadura. Muitos deles são sobreviventes das torturas praticadas nos porões do regime. Ressalte-se que representantes dos militares e da repressão também já tiveram espaço garantido para seus testemunhos, em escala bem mais reduzida. Nesse sentido, a novela parece mais uma vez ter estabelecido seu recorte e feito sua opção: revelar a história dos vencidos e da resistência.
Setores da Forças Armadas gostaram muito pouco ou quase nada dessa escolha narrativa. Os militares rapidamente perceberam o potencial político da novela. Alguns chegaram inclusive a solicitar ao Ministério Público que retirasse "Amor e Revolução" do ar. Têm saudades declaradas dos tempos da censura.
Não conseguem tolerar falas como a do ex-ministro José Dirceu, que lembra dos companheiros presos no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1968, em Ibiúna, recordando ainda que os jovens assassinados pela ditadura deram à vida pela liberdade. Não aceitam, alguns militares, que Carlos Eugênio Paz denuncie a participação dos empresários no financiamento da repressão. Tremem de raiva quando Rose Nogueira vem a público para denunciar as sevícias, inclusive sexuais, de que foi vítima, afirmando que "as marcas da tortura não passam jamais". Ficam arrepiados ao encarar Maria Amélia Teles dizendo, em alto e bom som, "que não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos". Revoltam-se quando Crimeia Almeida reforça que "não nos envergonhamos da nossa História". E se contorcem e estrebucham quando Ivan Seixas conta que sequestros realizados pelos militantes de esquerda não exigiam dinheiro como resgate - serviam para libertar companheiros presos pela ditadura. No fundo, o que os militares não conseguem é encarar de frente a verdade histórica. (os vídeos abaixo trazem todos os testemunhos aqui citados e exibidos pela novela, na íntegra).
Os depoimentos podem portanto ajudar a publicizar e popularizar as agruras e os descalabros cometidos pela ditadura, reforçando por consequência a consciência coletiva a respeito da necessidade de abertura urgente dos arquivos secretos do período; podem ainda ampliar a pressão popular pela fundamental tarefa de instalação da Comissão da Verdade, com intuito de superar finalmente um silêncio que se faz criminoso. É inadiável recontar, para além das versões oficiais e dos militares, a história recente do Brasil - belíssima nos ideais, sonhos, valores, princípios e lutas que é capaz de inspirar.
No livro "A Era dos Extremos", o historiador inglês Eric Hobsbawm escreve que "a destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem".
Vista a partir de sua dimensão política e com os tocantes e preciosos depoimentos que exibe, riquíssimos de significados (reunidos, certamente renderiam um belíssimo documentário), a novela "Amor e Revolução" pode dar um empurrãozinho mais do que importante e salutar e ajudar nessa tarefa cidadã de dizer o que precisa ser dito - e de "lembrar o que outros esquecem", como também escreve Hobsbawm.
Olá Chico.
ResponderExcluirConcordo com você. Amor e Revolução em muito têm pecado, mas apesar de tudo é um grande avanço na nossa teletramaturgia, já que na Globo, a Ditadura é sempre mostrada com um "romancismo" e "simplicidade" irritantes.
Parabéns pelo post!
Att,
AnaLu Oliveira.
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@oliveiranalu
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns Chiquinho!
ResponderExcluirTenho visto a novela é e realmente um misto de contentamento e frustração. Sem dúvida o SBT está sendo corajoso, principalmente pelo depoimentos. Por outro lado, essa forma didática de fazer a novela, torna os personagens de esquerda caricatos, tolos, até mesmo bobos e a coisa não é bem assim.
Eu espero que ele modifiquem esse caminho. Sinceramente.
De toda forma, num país onde muitas pessoas (adultos, jovens e crianças) não sabem o que foi a Ditadura e ainda acham que revolucionário e terrorista é a mesma coisa, acho que a novela é muito válida!
Beijos
Faby
Na metade dos anos 90, na faculdade, precisei fazer um trabalho sobre Vladimir Herzog. Com a internet engatinhando e uma pobreza de livros sobre o assunto, fui até o Arquivo do Estado de São Paulo, manusear as fichas existentes (e empoeiradas) naquela instituição. Hoje uma infinidade de livros, filmes e material pela internet são facilmente acessados. E agora, até uma novela. É perfeita? Não. Tem vários problemas. Mas acho válida sim. Quanta gente do povo sem noção do que realmente aconteceu tem agora a oportunidade de ter contato com uma realidade da qual não participou ou não se informou?
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