Virou uma novela, com requintes de um disse-que-disse bem ao gosto de uma certa parcela da crônica esportiva brasileira (grifo proposital, para escapar de generalizações injustas), o possível rompimento (ou não, como diria Caetano Veloso) do contrato que o craque Paulo Henrique Ganso tem com o Santos Futebol Clube. O desavisado que não acompanha futebol ficaria perdidinho da silva se de repente decidisse se informar sobre o caso e buscasse então notícias publicadas a respeito do jogador santista no último mês: Ganso já vestiu as camisas do Milan, da Internazionale de Milão e do Corinthians. Mas continua mesmo atuando pelo alvinegro praiano. Desse enredo confuso e estranho, consigo extrair sete lições, a saber:
Primeira lição - O clube de origem merece respeito
Jogador de futebol não é escravo. Tem o direito de escolher por qual clube deseja atuar, avaliando as condições de trabalho que lhe são oferecidas, como qualquer outro profissional. Trata-se de livre arbítrio. Cumprindo a legislação em vigor, as determinações fixadas em contrato e respeitados os compromissos estabelecidos por tal documento (assinado pelo atleta, não custa lembrar), pode trocar de time quando bem entender. O que se espera, no entanto, eticamente falando, é que o jogador tenha maturidade para encaminhar essa negociação de ruptura de maneira equilibrada e transparente, com lisura. E, se de fato estiver se encontrando com dirigentes de outras agremiações na calada da noite, sem que o Santos saiba de tais encontros e sem que participe diretamente das negociações (como aliás exige o estatuto da FIFA), para depois negar diante das câmeras e dos microfones que essas conversas nas catacumbas tenham sido encaminhadas, Paulo Henrique Ganso pode sim ter seu comportamento, para além dos gramados, fortemente questionado e duramente criticado. Jogadores, invariavelmente e com razão, cobram dos clubes que representam que sejam tratados com respeito e dignidade. Devem oferecer a contrapartida, mesmo nos momentos mais tensos e enrolados. O que vale para um precisa valer também para o outro lado. É via de mão dupla.
Segunda lição - Em campo, o craque tem sido exemplo
Se é possível criticar Ganso por aquilo que supostamente estaria negociando com outras equipes, a conduta do craque em campo, dentro das quatro linhas, tem sido até aqui irreparável, digna de aplausos. O jogo contra o Cerro Portenho do Paraguai, pela Copa Libertadores, foi a demonstração máxima desse profissionalismo. Ganso assumiu a responsabilidade de liderar a equipe que estava desfalcada, deu passes preciosos, cansou de colocar companheiros na cara do gol e foi um dos responsáveis pela vitória importantíssima. Foi com toda a justiça que o técnico Muricy Ramalho elogiou a participação do craque na partida. Justo reconhecer que já vinha sendo assim desde o jogo contra o Botafogo de Ribeirão Preto, quando retornou aos gramados. Não procedem, na minha leitura, os gritos que às vezes têm ecoado das arquibancadas e repercutido nas redes sociais acusando Ganso de mercenário. Em campo, repito, não tem sido assim. O atleta vem honrando o sagrado manto santista. O que ainda falta é um pouco de ritmo de jogo, natural para quem ficou sete meses sem atuar. Nesse aspecto, vale como referência para outros companheiros.
Terceira lição - Que diferença faz um técnico!
Diante das idas e vindas do folhetim, Muricy Ramalho mostra que técnico ainda é peça estratégica e mais do que relevante em uma equipe de futebol. O treinador conseguiu isolar Ganso das pressões e reforçou ao jogador que, noves fora e transações à parte, é preciso treinar e jogar bola, enquanto o barco estiver ancorado em porto santista. Foi isso o que Ganso preocupou-se em fazer em Assunção, quando muitos corneteiros diziam que ele pouco se importaria com a disputa, pois uma eventual derrota do Santos aceleraria a ida do craque para o Corinthians, com quem já estaria apalavrado. Melhor: Muricy montou um esquema de jogo que favoreceu a genialidade de Ganso - ou seja, longe de queimar o jogador, tratou de aproveitar o que ele tem de melhor. O "se" não faz história, mas o enredo poderia hoje ser outro se Muricy tivesse chegado ao Santos antes. Tomara que ele consiga usar sua experiência e liderança para chamar Ganso à realidade e convencê-lo do que ainda tem a conquistar (em todos os sentidos, inclusive financeiramente) se decidir permanecer no Santos. Ainda dá tempo.
Quarta lição - rivalidades clubísticas não podem assumir ares de trairagem
Caso as especulações se confirmem (prefiro tratar dessa maneira) e se Ganso for mesmo jogar no Corinthians, terá sido deplorável e lamentável a atitude da direção da equipe de Parque São Jorge, ao aliciar o jogador, à revelia da diretoria do Santos (prática que, reforço, é condenada pela FIFA). Pior: em público, o mandatário corinthiano só faz negar a eventual negociação e, de acordo com o presidente santista, Luis Álvaro Ribeiro, teria inclusive se preocupado em entrar em contato com a cúpula da equipe praiana para negar boatos e garantir que em hipótese alguma agiria de forma desleal e anti-ética. Chegou a chamar o Santos de "co-irmão". Se (sempre no condicional) Ganso desembarcar no Parque São Jorge apenas para concretizar o "clube de aluguel" e aguardar a janela de transferências do final do ano, será possível inferir que palavras corinthianas empenhadas valem quase nada e que as várias faces da conveniência e da dissimulação ditam as regras de conduta e comportamento por lá. Pode parecer antigo, ingênuo, romântico, "futebol é negócio", mas ainda sou de um tempo em que promessas - verbais inclusive - eram cumpridas. Tapetes puxados devem ser repelidos. Acirram ânimos dos torcedores, sempre passionais; deixam orgulhos tocados e feridas que demoram a cicatrizar, encaminhando projetos de vingança e de futuras disputas. Desnecessário.
Quinta lição - forças não tão ocultas assim querem prejudicar o Santos
Foi Antero Greco, respeitado (com muita justiça) comentarista da ESPN Brasil e colunista do jornal O Estado de São Paulo, quem escreveu no twitter, em 12 de abril: "Não tenho rabo preso com ninguém e, graças a Deus, posso falar o que quero. Nessa história do Ganso, tem sacanagem contra o Santos. Fato." Não é segredo para ninguém que a DIS, braço futebolístico do grupo Sonda, detentora de 45% do passe do Ganso e responsável ainda por gerenciar a carreira do atleta, ficou ressentida com as mudanças promovidas no clube pelo presidente Luis Álvaro, principalmente em relação à divisão sobre porcentagens dos direitos de jogadores e à participação nas categorias de base do Santos. Há inclusive sérias disputas judiciais entre as partes. E ao que parece a DIS está usando Ganso para dar o troco no clube, tentando criar todas as condições para tornar insustentável a permanência do craque na Vila Belmiro. Dirá então que o clube não soube valorizar o atleta, que o camisa 10 está sendo hostilizado pela torcida e que deseja respirar outros ares. Vai fazer do jogador o santo e do clube, o vilão. Está de olho no negócio, nos milhões (de euros ou de reais) em questão. O experiente Elano declarou recentemente: "Ganso está sendo mal assessorado". Já é mais do que tempo de a legislação esportiva repensar tudo isso e se adaptar aos novos tempos. A Lei Pelé foi fantástica ao acabar com o passe e com a servidão. Mas fez um mal danado ao futebol ao dar brecha para o surgimento da figura do empresário - os novos senhores feudais do esporte, que controlam exércitos de jogadores.
Sexta lição - Há uma guerra política interna. E a atual direção do Santos também erra.
2011 é ano eleitoral no Santos. A oposição, que deseja ardentemente retomar o comando do clube, não mede esforços para alcançar tal objetivo. O ex-presidente da agremiação tem aproveitado toda essa situação para tentar faturar politicamente e enfraquecer a atual administração. Já deu diversas declarações públicas afirmando que o patrimônio do Santos não está sendo bem cuidado. E, embora seja louvável o esforço feito para resgatar, modernizar e moralizar o clube (não há termos de comparação com projetos anteriores), precisa ser dito também que o presidente Luis Alvaro e sua diretoria escorregaram e não foram felizes ao congelar as negociações para renovação de contrato com Ganso, depois da contusão do craque. Deram munição para a DIS. Pisaram novamente na bola ao tentar fazer com que o jogador assinasse novo compromisso na concentração, às vésperas da partida contra o Colo Colo do Chile. Ficou parecendo pressão - e voltou a elevar a temperatura de uma disputa que vinha arrefecendo. Deram outra vez discurso para a DIS. Por fim, é preciso democraticamente debater e questionar a decisão da diretoria de também dividir direitos de jogadores com grupos de amigos. Permanecem pouco transparentes, ao menos para mim, as parcerias envolvendo o Santos e a Terceira Estrela Investimentos (TEISA), ligada à Guia, um grupo de empresários próximos do mandatário santista e que participa da aquisição de atletas (Neymar é o caso mais gritante. Não entendi as contas divulgadas pela diretoria). Para ser diferente, é preciso fazer diferente. Ser transparente. E explicar. Sem tergiversar. Não estariam sendo fomentadas novas relações duvidosas e futuras disputas envolvendo investidores e clube, outros "casos Ganso?".
Sétima lição - Jornalismo não pode abrir mão de apuração
Infelizmente, o que se nota é que parcela representativa do jornalismo esportivo brasileiro parece se deliciar com a prática da boataria, em detrimento da velha e boa apuração. Polêmicas vazias envolvendo rivalidades entre clubes ajudam a vender jornais - mas prestam desserviço aos leitores. Talvez Ganso esteja mesmo negociando sua ida para o Corinthians. É uma hipótese, que precisa ser devidamente sustentada. Não nego - mas não boto a mão no fogo. Até porque até aqui ele só fez negar essa possibilidade. E olha que os urubus estão tentando com todas as forças arrancar essa declaração do jogador. Claro, dirão os iluminados, ele não seria tolo ou ingênuo de confirmar. Faz sentido, certamente. Não sou bobo. O que não se pode aceitar é que esse "não dizer" seja imediatamente substituído por especulações, boatarias, disse-que-disse, declarações secretas, declarações bombásticas, pirotecnias, desmentidos e balões de ensaio. Mesmo para oferecer o off (informação em que a fonte não é identificada) é preciso apurar, checar, confrontar, buscar segurança. Bob Woodward e Carl Bernstein, ícones do jornalismo investigativo e responsáveis pelo caso Watergate, teriam muito a ensinar a alguns de nossos afoitos repórteres (insisto: não é justo generalizar. Há gente séria fazendo jornalismo esportivo). Ganso pode ir para o Milan? Sim. Para a Inter? Sim. Para o Corinthians? Sim. Pode resolver ficar no Santos? Sim. No limite, tudo vale. Espalha-se a confusão e abre-se o leque de alternativas - para que, a partir do "tudo pode ser", o veículo possa ao final faturar, qualquer que seja o resultado da disputa. Se um dos clubes italianos sair vencedor, o discurso será "avisamos e levantamos essa lebre"; se o destino for o Parque São Jorge, comemorarão: "o furo foi nosso". Por fim, se nada mudar e o Santos renovar com o jogador, escreverão que "foi uma reviravolta inesperada de última hora". E seguirão em frente. Até o próximo folhetim.
Pois é. O último capítulo dessa chatíssima novela desmentiu completamente o "furo" dado pelos irresponsáveis jornalistas do diário "Lance". Qual será o próximo capítulo? Não sabemos. O que sei é que quero e espero que o Ganso fique no Santos, honre seu contrato e jogue futebol, como tem feito e como fez na última quinta-feira. E, se as propostas de Milan, Internazionale, etc. chegarem, caberá à Diretoria do Santos, ao qual pertencem os direitos federativos (que não se confundem com direitos econômicos)sobre o atleta, decidir de aceita a proposta, se aceita reduzir a multa, etc. Sem pressões desses sanguessugas chamados "empresários", sem pressão do atleta, sem pressão dos "co-irmãos" (Deus me livre, não tenho e não quero ter um co-irmão como Andres Sanchez - aquele que era vice do Dualib, que gritou "o Kia é da Fiel" em 2005 e que hoje se julga o defensor da moralidade no futebol).
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