Minha satisfação confessa por conta da aprovação, em primeira votação no Senado Federal, da volta da obrigatoriedade da formação específica para o exercício do Jornalismo fez com que alguns amigos e conhecidos, dos mais diferentes circuitos de relações, ficassem espantados e me perguntassem: "mas como você pode ser a favor do diploma? É anacrônico, reserva de mercado".
Minha resposta primeira, nessas situações, foi defender, em sentido mais amplo, a universidade como espaço privilegiado e único de reflexão e de construção de conhecimento crítico, onde é possível aprender, experimentar, criticar, questionar e até errar - sem as cruéis pressões impostas pelo mercado. Nessa perspectiva, o curso superior específico é fundamental para a formação de jornalistas - assim como a máxima vale também para os advogados, economistas, médicos, engenheiros, arquitetos, psicólogos, enfermeiros e tantas outras profissões. Devolvo a pergunta - se são tantas as profissões (e os diplomas, por consequência), por que apenas o de Jornalismo representa a tal da "reserva de mercado"?
A tréplica dos que não querem o diploma segue em consonância com as falas dos sete senadores que votaram contra a obrigatoriedade (Fernando Collor de Melo e Aloysio Nunes Ferreira Filho entre eles), que alegaram que o fizeram por achar que o diploma é "um impedimento ao exercício da liberdade de expressão". Pergunto: como assim, se já há espaço garantido, atualmente, para a colaboração de colunistas, cronistas, articulistas, resenhistas, comentaristas e tantos outros "istas", que não são necessariamente jornalistas?
A própria Proposta de Emenda Constitucional (PEC) analisada pelo Senado diz que "o exercício da profissão de jornalista é privativo do portador de diploma de curso superior de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, expedido por curso reconhecido pelo Ministério da Educação, nos termos da lei", mas permite (constitucionalmente, é importante lembrar) a "atuação do colaborador, assim entendido aquele que, sem relação de emprego, produz trabalho de natureza técnica, científica ou cultural, relacionado com a sua especialização, para ser divulgado com o nome e qualificação do autor", respeitando ainda "os jornalistas provisionados que já tenham obtido registro profissional regular perante o Ministério do Trabalho e Emprego". Tudo isso está no texto da Emenda.
Claro está que os legisladores - e as entidades profissionais envolvidas no debate, como a Federação Nacional dos Jornalistas e o Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo - entendem que a produção de notícias e de reportagens (reconhecer/apurar/pesquisar/ entrevistar/redigir/editar, manifestações máximas e razões de ser do fazer jornalístico) cabe exclusivamente aos jornalistas, profissionais devidamente capacitados e habilitados para o exercício ético e responsável dessas complexas tarefas. Mas não negam - ao contrário, reconhecem - que os colaboradores têm contribuições enriquecedoras a oferecer. Que assim seja. Transportando para os gêneros - jornalistas ficariam com o informativo, o interpretativo o opinativo e o investigativo; colaboradores, apenas com a análise e a opinião. As fronteiras ficam muito bem estabelecidas - e trabalha-se com a perspectiva de complementaridade, não de exclusão.
A bola volta para os opositores da formação específica. Alegam então que a liberdade de expressão, constitucionalmente garantida a todos os brasileiros, fica limitada pelo diploma, pois só os jornalistas podem trabalhar em jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV e na internet, alijando dessa possibilidade todo o restante da população. Pergunto: com o fim do diploma, significaria dizer então que todos os 190 milhões de brasileiros, se assim o desejassem, teriam o legítimo e legal direito de escrever, diariamente, em todos (sem exceção) os veículos jornalísticos? Comecemos todos, e imediatamente, a mandar os textos para a Folha, a Veja, a Globo, o portal Terra e todos os demais. Vão publicar esse material? Todo esse material? Não? Por quê? Mas não são eles os primeiros a defender a liberdade de expressão, para todos, sem distinção? Lamento, mas é exatamente essa a situação que se impõe - e, se apenas um brasileiro tiver seu texto recusado ou não publicado, a restrição à "liberdade de expressão" permanecerá "desrespeitada". Não é assim?
Sugiro aqui uma analogia, para que possamos pensar juntos: é a Constituição Federal quem também garante o amplo direito à defesa. No entanto, nos tribunais e em processos (exceção às pequenas causas, e ainda assim até determinado valor), preciso de um advogado para me defender e me representar, em diferentes áreas e situações. Não posso, por ser jornalista, fazer sozinho essa defesa - tal prerrogativa não me é atribuída. Há uma aparente restrição. Por isso devo então alegar que meu direito à defesa foi limitado, foi derrubado? Obviamente que não. Ao contrário. Significa reconhecer que é muito melhor e mais benéfico buscar um profissional qualificado para cumprir a tarefa - exatamente aquele que estudou e se formou em curso superior específico, o de Direito.
Usei o exemplo do Direito para retornar ao Jornalismo e lembrar que a sutileza é a seguinte: confunde-se (muito provavelmente de forma proposital, para confundir as cabeças) a liberdade de expressão com o exercício da profissão. Ora, assim como um advogado tem muito mais condições de me representar com competência, é justamente o jornalista bem formado (em curso específico, para que possa compreender os meandros da área em que atua) aquele que vai trabalhar para garantir relatos jornalísticos responsáveis, diversos e plurais, capazes de estabelecer a mediação entre as mais distintas e antagônicas correntes de pensamento da sociedade. Ou seja, muito longe de construir qualquer tipo de obstáculo, o jornalista com formação específica é precisamente o sujeito que atua firmemente e com responsabilidade para costurar a diversidade de visões da realidade - defendendo portanto o ideal da liberdade de expressão.
Na sequência, provavelmente vem à tona o "mas para ser jornalista basta ter leituras, sólida formação cultural e saber ler e escrever". Foi essa a justificativa inclusive usada pela juíza Carla Ríster, da Justiça Federal de São Paulo, em 2001, quando concedeu liminar que derrubou pela primeira vez o diploma obrigatório. De tão reducionista, simplista e tecnicista que é, o argumento chega a ser ofensivo. Primeiro porque saber ler e escrever e ter cultura geral é uma necessidade que se impõe a todos os brasileiros, independentemente da profissão que sigam, mas como direitos de cidadania.
Recorro novamente às analogias: a seguir o raciocínio da juíza, todos aqueles que conhecerem os artigos da Constituição e os códigos de lei poderão ser advogados; todos os que souberem interpretar a tabela periódica poderão atuar como químicos; todos os que forem especialistas em teorias e escolas econômicas poderão ser economistas; todos os que tiverem bom gosto serão arquitetos; todos os que leram Freud e Lacan serão reconhecidos como psicólogos, todos os capazes de desenvolver cálculos sofisticados e complexos serão engenheiros ou matemáticos... A lista seria infinita - e obviamente estapafúrdia, uma atrocidade intelectual. Claro que todas as profissões aqui citadas são socialmente importantíssimas, marcadas por singularidades e a exigir formação específica. Assim como o Jornalismo. A visão simplista e tecnicista das profissões (reverberada publicamente pela juíza) apenas escancara um solene desprezo pelos saberes.
Vou além: há um ethos (comportamentos), conceitos, práticas, ética, teorias, técnicas, uma história, uma deontologia (princípios) singulares e exclusivos do Jornalismo, que marcam a personalidade, estabelecem o DNA da profissão e a definem como tal. E profissão está diretamente associada à perspectiva de (boa) formação - voltamos, portanto, à necessidade do curso superior específico.
"Mas os cursos de Jornalismo são muito ruins", insistem os contrários ao diploma. Erro primeiro: a generalização. Como - novamente - em todas as áreas do conhecimento, há cursos caça-níqueis, ruins, regulares, bons e de excelência. A formação às vezes deficiente não é privilégio do Jornalismo. Ou será que temos apenas e tão somente excelentes médicos, advogados, dentistas, economistas, administradores e tantos outros concluindo suas graduações? E, se há cursos ruins, que o Ministério da Educação cumpra sua tarefa constitucional, republicana e democrática e fiscalize essas instituições, punindo-as, se for o caso, até com o fechamento dos cursos. Mas que essa mesma prática atinja todas as áreas do conhecimento, e não apenas o Jornalismo. Por que trabalhar com critérios diferentes?
Em mais um movimento de oposição, há quem ainda diga - a juíza Carla Ríster apoiou-se também nessa justificativa - que o diploma de Jornalismo é "elitista". Vou me permitir aqui responder com pouquíssimas palavras - o que dizer então de um curso de Medicina, que em uma universidade privada chega a custar quatro, cinco mil reais por mês? Se é assim, vamos acabar com o diploma dos médicos?
Em fala derradeira, surge o "fiquem tranquilos, nada vai mudar, as empresas continuarão a contratar profissionais diplomados". Bem, mas se tudo vai continuar como antes... por que derrubar a regulamentação? Não parece uma contradição? E afinal, se é mesmo o tal do mercado quem vai regular e escolher os melhores profissionais, a máxima não deveria valer mais uma vez para todas as profissões? Pois vamos acabar com o diploma dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, dos biólogos, dos arquitetos... Não há problema, o mercado é sábio, e as empresas continuarão a dar preferência aos qualificados, aos formados nas áreas. Certamente é falsa - e perigosíssima - essa premissa. Estariam legitimados a selvageria e o vale-tudo.
Para continuar pensando: se são tantas as profissões, por que a grita se volta única e exclusivamente contra o Jornalismo? Por que o movimento contrário ao diploma é capitaneado pelos empresários da comunicação? Que interesses eles de fato defendem? E por que as empresas, que são contra os cursos, invariavelmente montam e oferecem seus próprios cursos (Abril, Estadão, Folha...) aos jovens aspirantes? Não basta saber ler e o resto é com o mercado, a prática cotidiana? Por que raios oferecem essas alternativas de formação, fora da universidade? Que contradição é essa?
Em artigo publicado no livro ""Teorias do Rádio - volume II", organizado por Eduardo Meditsch e Valci Zuculoto, a jornalista e professora Luciane do Valle recorre a reflexões de Walter Sampaio (formado na primeira turma da ECA/USP), que dizia que "o jornalista já não é mais aquele marginal, frustrado e boêmio, aquele romântico literato que emprestava os ares de seu talento nas crônicas de época. A notícia, a reportagem, o editorial, a cobertura, enfim, desse mundo a caminho do cosmos é grande demais para ser retratado pelo talento descomprometido de poetas irregulares ou de escritores inconstantes. Jornalismo, em nossos dias, é sinônimo de indústria e seu suporte só pode ser construído com pilares firmes e consistentes".
Reforçando o raciocínio, Elias Machado, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escreve em artigo publicado no site do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) que "do mesmo modo que o conjunto de transformações sociais fez com que a figura do rábula seja hoje uma página virada no Direito, o acesso ao Jornalismo a pessoas totalmente despreparadas, sem uma formação específica, coloca em xeque a qualidade das informações que chega ao público. Um bom jornalista necessita competência conceitual, técnica e ética. Nenhuma empresa jornalística tem condições de suprir este tipo de formação especializada, que deve ficar a cargo dos cursos de jornalismo".
Por tudo isso, afirmo com convicção: a formação específica em curso superior (o diploma obrigatório) é o caminho mais adequado para consolidar a prática de um Jornalismo responsável, democrático, sintonizado com a qualidade da notícia e com o direito à informação e capaz de garantir a liberdade de expressão.
Como comentei no Facebook:
ResponderExcluirDiscordo. E a "qualidade" do jornalismo hoje é prova de que formação, em si, não agrega nada. Basta ver também a qualidade de jornalistas sem diploma, como o Juca Kfouri.
Usar o argumento de que porque a grande mídia não luta por liberdade de expressão é falacioso, porque não existe apenas grande mídia e porque sim, TODOS tem o direito de exercer a profissão se forem capacitados. Porque eu não posso escrever na Folha, pela minha posição ideológica, qeur dizer que eu não pdoeria escrever para a Caros Amigos? Para a Fórum ou mesmo para algum portal não-alinhado aos grandes na internet, como jornalista?
E não há como comprar a profissão de advogado com a de jornalista, ou mesmo com a de médico. São competências absolutamente diversas. A grauação em jornalismo, em geral, não agrega quase nada que faça diferença mortal como na profissão de médico ou advogado. Ademais, se estamos falando em reserva de mercado - pois é o caso - então vamos proibir que jornalistas falem de economia sem serem diplomados em economia ou em política internacional, caso não sejam formados em Relações Internacionais. Ora,s porque devo ficar satisfeito com jornalistas escrevendo - e muitas vezes errando grotescamente nas análises - sobre Relações Internacionais, minah formação, mas eu não posso escrever pra um jornal?
Utilizar o exemplo de mandarins da colunismo opinático, como Juca Kfouri e Mino Carta, para defender a não-obrigatoriedade do diploma corresponde a dizer que todo candidato a soldado será mesmo um Napoleão Bonaparte. Como é sabido, nem todo soldado é Napoleão, da mesma forma como nem todo aspirante a "pundit" será jornalista do quilate de Juca Kfouri.
ResponderExcluirBelo texto!, Chico.
Fabio Cardoso
Afora isso, ainda concordando com o texto do Chico, não há empecilhos ou quaisquer impedimentos para que analistas de várias áreas, de Relações Internacionais inclusive, manifestem suas opiniões e pontos de vista nos veículos. A propósito: os jornais da grande mídia adotam essa prática há muitos anos --- no Brasil e fora do Brasil. O que essa cortina de fumaça sobre o diploma esconde, em verdade, é a precarização do trabalho diário do jornalista. Sim, porque muitos querem escrever em jornais e revistas textos opináticos, "análises" e artigos de fundo. Poucos são os que querem fazer o trabalho (pesado) de apuração, de busca de informação, de checagem detalhada, algo que os estudantes de jornalismo fazem nos cursos. E vejam só: tanto dentro como fora do Brasil, fato que os defensores da precarização do diploma não abordam ou por vilania ou por desinformação.
ResponderExcluirAbraços,
Fabio Cardoso
O texto do Chico Bicudo é bem claro sobre a proposta que está no Congresso: profissionais de outra área poderão continuar escrevendo sobre temas específicos em revistas, jornais e outros meios de comunicação, como, por exemplo, sobre Relações Internacionais, Direito e Economia.
ResponderExcluirSó mesmo uma pessoa que não frequentou um curso de graduação em Jornalismo para achar que ele "não agrega quase nada que faça diferença". Poupe-me.
ResponderExcluirUm texto atemporal, caro Chico. Deveria constar como leitura obrigatória a todos os aspirantes e veteranos a essa profissão. O trecho que alerta para não confundir liberdade de expressão com exercício da profissão, para mim, é a essência de tudo. Eu, como pessoa, tenho o direito de me manifestar sobre o que quiser, porque o foco é o que penso, minha experiências pessoais, sociais, profissionais. Eu, como jornalista, tenho a obrigação de produzir informação o mais clara, objetiva, imparcial (mesmo que imparcialidade seja um mito) possível, porque o foco é o leitor, não eu. Isso exige sim formação acadêmica, quando menos para saber que todos esses princípios existem e regem o bom exercício da profissão. Quem não percebe a diferença entre um e outro vai morrer comprando alhos e levando bugalhos.
ResponderExcluirEu inverteria o raciocínio: se vao acabar com o diploma para jornalista, que haja menos profissoes regulamentadas, e nao mais. Esse raciocínio equivale ao dono de cartório que quer ganhar seu dinheiro sem muito servico, fazendo reconhecimento de firma em tres vias e autenticando impressos da internet.
ResponderExcluirE aí quando voce diz que esse é um entrave burocrático estúpido e rentista ele faz uma lista dos entraves burocráticos estúpidos e rentistas que existem como uma defesa do direito de também ele ter o entrave burocrátio estúpido e rentista dele. Eu sou advogado, mas me parece estúpido e rentista que para qualquer divórcio consensual voce precise pagar uma graninha pra um sujeito com diploma assinar. Nao acho isso mais justificável porque o país tem outros problemas maiores. Aliás, nós brasileiros adoramos, quando alguém aponta que tem problemas na nossa área, mandar o outro ir se preocupar com a educacao, com a saúde ou com o buraco na rua. Nenhum desses problemas faz menor o problema de ficar criando regulamentos estúpidos e rentistas. Sou contra o diploma de jornalismo como sou contra a necessidade de advogados pra causas simples, como sou contra o sujeito precisar ser médico, com residencia e especializacao, pra operar uma máquina dessas que verificam sua miopia (e que qualquer técnico com ensino médio e um curso de 6 meses consegue operar, com ganhos para toda a sociedade).
A única vantagem da aprovacao dessa PEC estúpida e rentista é que o STF poderá tirar da cartola a ideia de "Emenda Constitucional Inconstitucional". Espero que o faca. O Artigo 5o, que lista nossos direitos e garantias fundamentais, é maior do que o resto da Constituicao.
"Pergunto: com o fim do diploma, significaria dizer então que todos os 190 milhões de brasileiros, se assim o desejassem, teriam o legítimo e legal direito de escrever, diariamente, em todos (sem exceção) os veículos jornalísticos?" Sim, exatamente isso. Assim como os 190 milhões de brasileiros, se assim desejarem, podem trabalhar como vendedores de loja ou publicitários de agência. Mas, será que há espaço para todos? Será que todos assim o querem? Ou será que apenas os competentes encontrarão espaço no mercado, em uma área ou em outra, com ou sem diploma? Colocar um pedaço de papel acima do mérito e da competência, é assim que funciona a combinação de coorporativismo rasteiro, sindicalismo barato, e um senado que vive de troca de interesses (lobby do ensino privado, inclusive).
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