domingo, 31 de julho de 2011

A REFORMA AGRÁRIA QUE O PT TAMBÉM NÃO FEZ

A reforma agrária no Brasil é um fiasco - e, apesar da retórica do "nunca antes", infelizmente é preciso reconhecer que uma parcela e tanto da responsabilidade por esse fracasso retumbante deve ser atribuída aos governos Lula e Dilma. E não se trata de denúncia feita por adversário político ou pela mídia oposicionista, mas de constatação oferecida pela reportagem principal da revista "Carta Capital" que está nas bancas. A publicação traz na capa, laconicamente, uma foto que, em primeiro plano, mostra um boné vermelho do Movimento dos Sem-Terra (MST) pendurado em uma cruz branca (e há várias delas enfileiradas em um gramado, como se olhássemos para um cemitério), com a manchete estampando em amarelo um sonoro e lamentável "Reforma agrária, descanse em paz". Ainda na capa: "nos governos do PT, o programa refluiu".

Os números apresentados na matéria, escrita por Ricardo Carvalho e Soraya Aggege, são implacáveis e revelam que, triste, não passou de bravata, jogo de cena e discurso vazio a fala do ex-presidente Lula, ainda no início do primeiro mandato, quando afirmou que resolveria a tragédia da concentração da terra no Brasil com uma canetada ("faltou tinta na caneta", provoca o texto). 

"O índice de Gini, em 1967, era de 0,836 (quanto mais perto de 1,0, mais concentrado é o modelo). Em 2006, data do último Censo Agrário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), era de 0,854. Outro dado, do mesmo censo, dá uma dimensão mais clara da concentração. As pequenas propriedades, com menos de 10 hectares, ocupam 2,36% do total de terras, embora representem quase metade (47,86%) dos estabelecimentos rurais. Já os latifúndios, com mais de mil hectares, somam menos de 1% das propriedades e controlam 44,42% terras, situação com poucos similares no mundo", destaca a matéria.

Mesmo os números oficiais, divulgados e defendidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que diz ter assentado 614 mil famílias entre 2003 e 2010, são questionados na matéria pelo geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais especialistas no tema do país. Segundo ele, "o governo Lula teria assentado apenas 154,2 mil famílias em oito anos". A divergência acontece porque, na avaliação de Umbelino, "o governo coloca no mesmo balaio 303,6 mil famílias beneficiadas por uma reordenação fundiária que significa trocar um assentado de uma terra para outra, 154 mil por regularização e 2,3 mil que foram removidas por conta de construção de barragens".

Diante dos números que a revista escancara, o que parece ficar claro é que os governos petistas fizeram uma consciente opção política: incentivar e endeusar o agronegócio exportador e favorecer os grandes proprietários de terra, buscando assim sustentar a participação do Brasil no mercado internacional (o país continua a ser um dos principais exportadores de produtos agrícolas do planeta), com gestos apenas tímidos e pontuais em relação aos miseráveis das zonas rurais. 

O que causa ainda mais indignação é que esse estágio - a concentração no campo continua a mesma da época da ditadura militar, reforça a matéria - foi atingido em administrações que foram eleitas com a esperança confessa de que agissem fortemente para reverter essa lógica, invertendo prioridades e olhando com carinho para as demandas populares. Infelizmente, moveram-se para reforçar a exclusão. O todo-poderoso econômico mais uma vez prevalece sobre o social. A perspectiva de lucros e ganhos imediatos - e concentrados - supera o ideal de uma sociedade mais justa e civilizada, não marcada por desigualdades.

Aliás, mesmo o argumento que diz "não é interessante investir em reforma agrária porque o que resulta dela não é competitivo e não alavanca desenvolvimento nacional" é refutado pela reportagem de "Carta Capital". No texto, Guilherme Delgado, economista e professor da Universidade Federal de Uberlândia, afirma que "a pequena propriedade, por vocação, é pluricultural. Se houver políticas públicas de garantia de preços e sistemas de concessão de créditos, não tenho dúvidas que a agricultura familiar e a média propriedade têm total capacidade de produzir excedentes". É uma questão de orçamento, de apoio e estrutura. E de vontade política.

Para além da reportagem, mas como reflexão que ela suscita, preocupante também é notar que outro resultado negativo das administrações federais petistas é um recuo gritante no número de ocupações de terra (principal instrumento de luta política e de pressão para realização da reforma agrária). Em 2003, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 391 ocupações no Brasil; em 2004, esse número atingiu o pico (496 ocupações) e, desde então, conheceu quedas vertiginosas, ano a ano: foram 437 em 2005, 384 em 2006, 364 em 2007, 252 em 2008, 290 em 2009 e 180 em 2010. Para efeito de comparação, se considerarmos o primeiro e o último anos dos dois mandatos do ex-presidente Lula, a redução é de 55%. Ao  dar legitimidade e força à lábia "agora vocês têm governos aliados", as gestões petistas conseguiram desmobilizar e arrefecer o ímpeto das ações dos movimentos de trabalhadores sem-terra. E a reforma agrária não andou. O PSDB não faria melhor. 

E para os arautos de uma suposta modernidade que pensam que a reforma agrária é coisa do passado, iniciativa arcaica, anacrônica e descolada da realidade dos tempos de capitalismo globalizado, o professor Ariovaldo Umbelino alerta, em entrevista publicada pelo site do Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), que "o Brasil possui os maiores latifúndios que a humanidade já registrou, ou seja, não há limite para o tamanho das propriedades do país. É uma excrescência, do ponto de vista internacional, um país ter propriedades privadas que são maiores do que unidades federativas que possui, sem falar que algumas são ainda maiores do que muitos países existentes no mundo. Então, é evidente, como eu disse, que existe uma questão fundiária ainda não resolvida". Para ele, "é evidente que o Brasil tem uma estrutura fundiária altamente concentrada nas mãos das elites que controlam terras que não lhes pertence, o que é um contra-senso e uma ilegalidade denunciados pelos movimentos sociais". 

Será que este Brasil é mesmo um país de todos? E se país rico é país sem pobreza, o que dizer deste Brasil?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

OS BRASILEIROS E A UNIÃO CIVIL DE HOMOSSEXUAIS

Para contribuir com um debate fundamental e urgente, arrisco breves linhas e um olhar reflexivo (mais questões que respostas) sobre a pesquisa feita pelo Ibope Inteligência que entrevistou duas mil pessoas e foi divulgada nesta quinta-feira pelo jornal “O Estado de São Paulo”, revelando que 55% da população brasileira é contrária à união civil entre homossexuais.

Primeiro: certamente a superação do preconceito exige de todos, nos mais distintos espaços públicos, esforço cotidiano para garantir o acesso amplo e plural à informação e o exercício de formação crítica, fazendo valer a pedagogia da esperança de Paulo Freire, aquela que é dialética (contradições e conflitos) e dialógica (via de mão dupla) e que, como dizia o educador, se contrapõe à “instrumentalização tecnicista e bancária”. Educação é certamente uma variável importante. Mas será que é adequado e sensato reduzir os resultados da pesquisa à equação (que me parece rasa) “falta de educação = recusa maior à união civil”, como podem sugerir à primeira vista os números do levantamento (68% dos que têm até o quarto ano dizem “não” à união entre pessoas do mesmo sexo, enquanto no segmento ensino superior esse percentual cai para 40%)? Sim, a distância é grande. Mas não é também extremamente elevado o índice de recusa entre aqueles que têm pelo menos a graduação, muitos dos quais passaram por tantos outros cursos, intercâmbios, especializações, mestrados, doutorados e, ainda assim, com todo esse repertório e sofisticado percurso educacional, mantêm-se firmes em suas visões conservadoras de sociedade? Notem, estamos falando de 40% deste grupo “iluminado e esclarecido”, quase metade dos que são vistos como “formadores de opinião”. Um exagero preocupante, não? Como explicar essa relação? Como fica, nesse caso, a equação citada acima? A pensar.

Segundo: chamam a atenção os resultados revelados quando consideramos a variável religião. Entre os ateus e agnósticos, 51% aceitam a união civil, mas 49% a recusam – um quase empate. Ou seja, o que fica sugerido é que cai por terra o argumento muitas vezes usado neste debate (e em tantos outros) que associa o não seguir uma religião a uma visão mais elevada e progressista de sociedade. Em relação ao tema, quem não crê parece ser tão conservador quanto os que professam e seguem crenças religiosas, sem diferenças significativas. Ainda olhando para esta variável, protestantes e evangélicos são os mais avessos à união civil – 77% deles não a aceitam. Para refletir: o que estaria acontecendo nos templos neopentecostais? Qual a influência dos meios de comunicação de que são proprietários nesta fotografia? Que relações estabelecer entre o avanço sólido e acelerado dos movimentos evangélicos no Brasil e a consolidação de uma cultura de viés conservador? Parece razoável sugerir que este resultado tão impactante de alguma maneira possa ser compreendido como um dos reflexos nefastos de vociferações promovidas por pastores como o truculento e nada tolerante Silas Malafaia, que não se cansa de tratar a homossexualidade como doença, como castigo do demônio, como algo a ser perseguido e punido. Obviamente que esse discurso indigente pautado por atrocidades e bobagens encontra ressonância e é amplificado no tecido social – e precisa ser fortemente combatido. O que não significa limitar o debate a uma também reducionista sentença matemática “evangélicos = intolerantes”. Há vários tons de cor cinza entre o preto e o branco. Rótulos são perigosos – e tendem a consagrar injustiças. Confesso que gostaria agora de ver analistas se debruçando sobre a pesquisa e cruzando os dados de forma complexa: grau de escolaridade + religiões + classes sociais + apoio ou recusa à união civil. O que pode sair dessa costura? Uma pista importante, dada pelo sociólogo Rudá Ricci em entrevista publicada no final do ano passado pelo site do Sindicato dos Professores de São Paulo e que se refere à ascensão das novas classes médias: “Essa população tem letramento, tem acesso à informação. Não lê, é verdade, mas sabe o que está acontecendo e escolhe seus candidatos de forma bem egocêntrica. São famílias egocêntricas. Por exemplo, vão à igreja para conseguir o sucesso, por isso fazem muitas novenas e promessas. A religião é usada como uma estratégia de garantia e de estratégia da família”. Vale também pensar a respeito. E antes que perguntem: sou ateu, convicto e tolerante. E absolutamente favorável à união civil de homossexuais.

Terceiro – a sensibilidade feminina parece aqui também dizer “presente” de maneira muito mais efusiva: 52% das mulheres apoiam a união civil. Entre os homens, esse percentual despenca para 37% - um sinal também claro do machismo patriarcal fundador de nossa sociedade e elemento ainda forte, infelizmente, da identidade nacional.

Quarto – a boa notícia parece ser a posição favorável representativa dos jovens à união – entre a faixa etária de 16 a 24 anos, o apoio chega a 60%. Há luz no fim do túnel.

Quinto e último – um de meus mantras prediletos: vitórias eleitorais não estão diretamente associadas à construção de hegemonia de valores. No plano federal, lá se vão oito anos de governo Lula e mais sete meses de administração Dilma Rousseff, gestões de continuidade e eleitas com forte empenho e participação das forças progressistas e de esquerda do país. Mas que foram (e são) também governos que recuaram em iniciativas cruciais quando consideramos as lutas históricas dos grupos homossexuais. A pouca disposição para fazer aprovar o projeto de lei que criminaliza a homofobia, durante o governo Lula, que acabou resultando no arquivamento da proposta, e o cancelamento da distribuição dos kits anti-homofobia produzidos pelo Ministério da Educação em escolas públicas, já sob a batuta de Dilma, são dois exemplos gritantes de derrotas progressistas – que as forças obscurantistas obviamente comemoraram e das quais souberam tirar proveito. Até porque, ensina a Física: espaço que é deixado vazio acaba sendo ocupado. Nem sempre da maneira mais desejável. E, às vezes, é tarde demais. 


Eis minha impressão - e a discussão que sugiro: os valores conservadores se esparramam pelo tecido social, com intensidades distintas, obviamente, mas independentemente de escolaridade, religiões, classe social... Há uma onda conservadora também em curso no Brasil.  

quarta-feira, 27 de julho de 2011

PRESIDENTA, QUE TAL APROVEITAR A ONDA E DEMITIR O JOBIM?

É uma questão de coerência política - se você não concorda com determinado projeto político, se tem ligações históricas umbilicais com outras visões ideológicas, se pensa com convicção que outros partidos poderiam fazer mais e melhor que aquele que está no poder e se manifesta divergências profundas e insuperáveis com propostas que são gestadas, idealizadas e patrocinadas por determinado governo, obviamente você não deve fazer parte deste governo. Deveria agir com lisura ética, hombridade e dignidade e buscar abrigo nas forças de oposição, ajudando a gestar ideias e iniciativas alternativas, instrumento aliás construtivo e fundamental para o fortalecimento da democracia. 

Pois, surpresa, não é assim que acontece com o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, que apesar de ocupar um dos cargos mais importantes da República, não se cansa de manifestar publicamente, sempre que mínima brecha se abre, suas insatisfações e discordâncias com os rumos dos governos Lula e Dilma Rousseff, dos quais fez e faz parte, invariavelmente indicando seu apreço incontido pela "Era FHC" e agindo, no interior das gestões comandadas pelo PT, para minar e implodir ações administrativas e políticas importantes. Jobim atua no governo como legítimo representante da oposição. É como se fosse escalado pelo técnico como homem de confiança do time, mas aproveitasse o privilégio para marcar gols (no plural mesmo) contra - e ainda cometesse o disparate de comemorar efusivamente tais feitos. Consagra, assim, a máxima do "dormindo com o inimigo". 

A mais recente manifestação de um Jobim que é mais aliado da oposição que representante do governo deu-se na Folha de São Paulo de hoje, quarta-feira, 27 de julho, quando ao ser entrevistado pelo jornalista Fernando Rodrigues, o Ministro da Defesa não teve pudores em afirmar: "Eu votei no Serra em 2010". Ah, sim...  e está fazendo o que então no governo que não é o do PSDB, ministro? A "resposta" está na entrevista: "Na avaliação dele, se o tucano José Serra tivesse derrotado a petista Dilma Rousseff, o governo "seria a mesma coisa" no manejo das recentes crises políticas, como a do combate à corrupção no Ministério dos Transportes". Puxa, "argumento" mais que suficiente e sustentável para "justificar" o fato de Jobim jogar com duas camisas, não é mesmo? Fiquei comovido.

Aliás, fica quase perdido na matéria da Folha um outro gol contra anunciado por Jobim. Historicamente, o Ministro sempre foi favorável à manutenção de sigilo eterno para documentos produzidos pelo Estado brasileiro e classificados como "ultrassecretos". Noticiou-se recentemente que teria recuado e passado a apoiar a mudança aprovada pela Câmara dos Deputados e que será em breve avaliada pelo Senado, que limita a 50 anos, no máximo, o não acesso a tais documentos. Mais uma vez sem constrangimentos, diz Jobim à Folha: "Vamos ser práticos. Daqui a 50 anos, se algum governo achar que tem algum documento [que não deve ser aberto], poderá alterar a lei." Ou seja, é só para inglês ver, tudo não passa de jogo de cena, de brincadeirinha, vamos enrolar e enganar a opinião pública... E ele, ministro de Estado, admite tudo isso publicamente!  

Em junho, em uma das tantas comemorações que marcaram os 80 anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Nelson Jobim já havia subido o tom das críticas e, para espanto e susto até dos amigos tucanos, como revela matéria do jornalista Leandro Fortes publicada pela revista Carta Capital, chegou a anunciar que estava no cargo, exclusivamente, por vontade de FHC, afirmando que "nunca o presidente (FHC) levantou a voz para ninguém. Nunca criou tensionamento entre aqueles que te assessoravam”.  De acordo com a matéria, não economizou elogios ao ex-presidente. "E foi além, ao insinuar que os governos Lula e Dilma demoliram o que ele chamou de “processo político de tolerância, compreensão e criação”, supostamente construído nos tempos do tucanato. “Precisamos ter presente, Fernando, que os tempos mudaram”, falou a FHC". O arremate final, segundo o texto de Leandro Fortes, teria sido "quase um pedido público de demissão, uma citação do dramaturgo Nelson Rodrigues. “Ele dizia que, no seu tempo, os idiotas chegavam devagar e ficavam quietos. O que se percebe hoje, Fernando, é que os idiotas perderam a modéstia”, afirmou. “E nós temos de ter tolerância e compreensão também com os idiotas, que são exatamente aqueles que escrevem para o esquecimento”. Mais explícito, impossível", termina a matéria. Só para não perder a oportunidade: a que governo mesmo você pertence, Ministro Jobim? 

Por fim, também para não perder o bonde, Nelson Jobim é aquele mesmo que, no final de 2009, bombardeou duramente o Plano Nacional de Direitos Humanos, terceira versão, recusando também a criação e instalação da Comissão da Verdade, destinada a apurar,  levantar informações, investigar, publicizar e responsabilizar autores de crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). Diante da truculência de Jobim, que bateu forte na mesa e chegou a ameaçar pedir demissão, o governo Lula recuou, o PNDH3 foi desfigurado e a Comissão não foi instalada até hoje.

"Nelson Jobim tem a função de representar as demandas dos militares. Mas tem também outro papel, que tem relação não só com as questões da ditadura, mas está ligado diretamente a debates contemporâneos, como a Força Nacional, a intervenção das Forças Armadas no Rio de Janeiro. São questões que dizem respeito à segurança pública, a toda uma política militarizada que se concretizou no pós-ditadura, e que trata a pobreza como criminosa. É a tolerância zero, importada dos Estados Unidos, onde você mantém a população monitorada e criminaliza qualquer pequeno delito. É o que está acontecendo no Rio de Janeiro. O Nelson Jobim apoia esse tipo de ação e é uma figura importante do governo", avalia a historiadora Cecília Coimbra, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, em entrevista publicada por este Blog em janeiro passado.

Pois chegamos então a um ponto crucial da análise: qual a origem do poder de Jobim? Pois se o jabuti está belo e formoso no topo da árvore é porque alguém o colocou lá. Nelson Jobim foi inicialmente escalado para o Ministério pelo ex-presidente Lula e permaneceu no governo Dilma, ao que se sabe, como alguém que faz parte da cota pessoal do ex-presidente. Por quê? Melhor perguntar a Lula. Talvez ele tenha a resposta. 

Mas a presidenta Dilma bem que poderia aproveitar as mudanças que estão sendo promovidas na Esplanada dos Ministérios para demitir também Nelson Jobim. Já passou da hora.

sábado, 23 de julho de 2011

MORTES NA NORUEGA? NÃO. O JORNAL NACIONAL DESTACOU AMY.

O primeiro bloco do Jornal Nacional, o principal telejornal da emissora de maior audiência do país, foi todinho dedicado à morte da cantora inglesa Amy Winehouse. Foram dez minutos em horário nobre - só para começar. O repórter Marcos Losekann entrou ao vivo, de Londres, com informações sobre o andamento das investigações a respeito das possíveis causas da morte. Teve o tradicional e desgastado (mas performático) "fala povo", com os fãs nas ruas cantando e uma adolescente brasileira falando sobre o legado de Amy para a música e a falta que vai fazer. Houve ainda espaço para uma também participação ao vivo de Elaine Bast, de Nova Iorque, repercutindo o acontecimento. Na bancada, no estúdio, Marcio Gomes e Renata Vasconcellos receberam o produtor musical Nelson Motta, que lembrou o envolvimento da cantora com as drogas e destacou que se trata de "uma crônica da morte anunciada". Sem perder tempo, uma chamada para o Fantástico de amanhã, quando o espetáculo deverá ser ainda mais estarrecedor - uma das questões fundamentais que será discutida é a da "idade maldita", já que outros ícones da música pop, como Jimi Hendrix, Kurt Cobain, Jim Morrison e Janis Joplin também morreram aos 27 anos, assim como Amy.

Intervalo.

No segundo bloco, os ataques terroristas em Oslo, na Noruega, mereceram seis minutos de atenção do JN. Isso mesmo: quatro minutos menos que Amy (até aqui). E nenhum especialista na bancada, um cientista político ou analista de relações internacionais, para refletir sobre significados dos atentados. É verdade que o repórter Pedro Bassan trouxe informações ao vivo, da capital norueguesa, e Marcos Losekann, em matéria gravada, narrou os desdobramentos da investigação, a prisão do atirador (suspeita-se da participação de outros), que se auto-denomina um "cristão fundamentalista", já foi militante de partido de extrema direita e não aceita uma sociedade multicultural. Mas o assunto que, penso, segundo critérios jornalísticos (relevância, interesse público, universalidade, impacto), representa o fato do final de semana teve ainda de dividir as atenções do bloco com o sequestro do bebê em clínica privada do Rio de Janeiro e o GP da Alemanha de Fórmula 1, sem contar as chamadas do programa Esporte Espetacular de amanhã.      

Basta? Não. Vem o último bloco. Assunto único novamente: Amy Winehouse, em mais 12 longos minutos. Matéria resgata a biografia da cantora, com fotos de criança, os primeiros shows, envolvimento com drogas e álcool, relações complicadas de amor e de ódio com o público, a perseguição dos paparazzi, a presença e a carreira nos Estados Unidos, a passagem pelo Brasil, as brigas com o namorado. Nova entrada ao vivo de Nova Iorque - desta feita, foi Rodrigo Bocardi. Mais Marcos Losekann, ao vivo, de Londres. Mais Nelson Motta, na bancada do estúdio, com obviedades. Entrevistas com os fãs brasileiros, em Natal e em São Paulo, em luto. Até terminar com o maior sucesso da cantora (confesso minha ignorância - não sei o nome da música, mas esse é um problema meu).

Total: 22 minutos para Amy (metade da edição), seis minutos para o horror na Noruega. Detalhe: no twitter, o tema "Amy Winehouse" é o mais discutido no Brasil - e também mundialmente. Mortes na Noruega? O tópico não aparece na lista.

Talvez esteja mesmo na hora de rever meus conceitos jornalísticos. Pode ser que minhas concepções estejam ultrapassadas, que os fundamentos da profissão tenham mudado, que a comoção se justifique, que a cobertura tenha sido adequada, que eu não tenha alcançado a importância da cantora, que Amy merecesse mesmo 22 minutos do Jornal Nacional. Talvez. Talvez.

Mas, como bom dinossauro jornalístico que sou, confesso que minha sensação é que a histeria e o entretenimento venceram a informação. E sinto muito pelo pessimismo momentâneo, mas terminei de ver o JN concordando com o genial escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura e morto em junho do ano passado (teve edição especial para ele?), que dizia com muita serenidade e convicção que o ser humano é um projeto fracassado.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

LAURA RESTREPO E SEUS "HERÓIS DEMAIS"



Lorenza é uma jornalista colombiana que participa da resistência à ditadura militar instalada na Argentina em março de 1976, quando a presidenta Isabelita Perón foi derrubada por um golpe de Estado liderado pelo general Jorge Videla. Em Buenos Aires, ao cumprir com afinco (e às vezes se envolvendo em perigosas trapalhadas) as tarefas indicadas pelo partido em que militava, a jovem conhece o dirigente trotskista Ramón, por quem se apaixona e com quem tem um filho, Mateo. Quando a separação do casal torna-se inevitável (quem toma a iniciativa do rompimento é Lorenza), o garoto, com três anos, é sequestrado pelo pai (episódio que logo no início da trama é chamado de "lance obscuro"), que não aceita o fim do casamento, mas que ao final parece render-se e aceitar o inexorável - e o garoto é então resgatado pela mãe, com quem vai viver em Bogotá. Não voltará a ver o pai até os 16 anos, quando cheio de coragem (mas também atormentado pelas dúvidas) decide retornar a Buenos Aires disposto a reencontrar-se com suas raízes - e a finalmente procurar Ramón.

Esse é o enredo que move "Heróis demais", livro recentemente lançado pela escritora colombiana Laura Restrepo (o oitavo da carreira), que esteve no Brasil para a divulgação da obra e participou de uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP. Tendo a crueldade da ditadura militar argentina e a entrega da militância política de resistência como contextos e cenários, o romance carrega forte conteúdo auto-biográfico, já que a própria Laura reconhece, em entrevista publicada pelo jornal "O Estado de São Paulo", que "do ponto de vista pessoal, eu tinha uma conversa pendente com meu filho. Era tema delicado, sobre sua origem, sobre seu pai. Escrever foi uma forma de travar esse diálogo. Foi um processo bonito. Enquanto eu escrevia, ele terminava seu doutorado em literatura e começava seu primeiro romance, uma história juvenil chamada Épica Patética, sobre um adolescente que quer crer num mundo heroico enquanto a realidade se impõe. Conversando pela literatura, e não diretamente, pudemos digerir um tema difícil".

O fio delicado a conduzir a narrativa é justamente o diálogo intenso entre mãe e filho - que não raro assume ares de interrogatório. Mateo pergunta, Lorenza responde, em um jogo de contínua revelação das histórias. Há momentos em que o filho aperta, incisivo - "não foi assim que você contou em outra ocasião, você não tinha dito isso, está faltando um pedaço desse episódio". É o típico conflito de gerações - "uma convencida de seus atos e outra que a questiona", como ressalta a autora na entrevista citada. Mateo também não aceita - e chega a explodir em cólera - a complacência, a admiração e a reverência que Lorenza ainda é capaz de manifestar pelo ex-companheiro e a figura idealizada que acaba por construir de Ramón, que surge nas palavras da jornalista invariavelmente como um herói (é demais para o adolescente). O jovem quer conhecer o pai, não o militante; deseja resgatar o ser humano, com acertos e erros. Não quer travar contato com uma figura que oprima, mas que liberte. "Há uma tensão ambígua entre Lorenza e Mateo, feita de culpas, desculpas, acusações, mas também de compreensões e de um afeto enorme, que muitas vezes leva a cenas tristemente cômicas", sugere o texto publicado pelo blog da editora Companhia das Letras.

Laura Restrepo é hábil e precisa na descrição de episódios importantes que marcaram a sangrenta ditadura argentina (saldo de 30 mil mortos e desaparecidos, vôos da morte que despejavam os militantes no rio da Prata ou no mar, filhos de opositores assassinados pelo regime que acabaram sendo adotados por torturadores algozes). Vem então à tona a Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina e vencida pela seleção anfitriã (conquista largamente usada pelos generais para calar e humilhar a oposição, reforçando o terror). É resgatada também a Guerra das Malvinas, em 1982, quando o país vizinho foi esmagado pela Inglaterra, e ainda assim o presidente-ditador de plantão, general Leopoldo Galtieri, nas lembranças ficcionais-biográficas de Laura/Lorenza, chegou a sair bêbado na sacada da Casa Rosada para exaltar o espírito nacionalista e vitorioso do povo argentino. Enquanto isso, na Praça de Maio, a multidão em lágrimas gritava "vai se acabar a ditadura militar". Muito distantes dali, resolvendo o "lance obscuro", Lorenza e Ramón comemoravam - e se despediam. 

Toca a alma do leitor a angústia da mãe ao saber que está grávida e que terá de proteger o filho e cuidar dele em plena clandestinidade. "Como íamos cuidar de você, Mateo, se tínhamos feito uma promessa de nós mesmos não nos cuidarmos? Como defender tua vida sem saber quanto as nossas durariam? Teu nascimento ia ser um acontecimento contra toda evidência, uma urgência e uma reivindicação da vida diante da engrenagem de morte que nos rodeava", diz a mãe ao filho, em momento crucial da narrativa. Por todos esses descaminhos, o destino estava selado, e o amor do casal tinha prazo de validade - o tempo da militância e da resistência. O tempo da luta. A separação vem com o fim da ditadura.

Longe de ser panfletário, como reforça o blog da Companhia, e costurando com maestria várias cenas e conversas que acontecem em tempos diferentes, o livro lida com "um assunto delicado e doloroso, mas que Laura Restrepo aborda com extraordinária leveza e bom humor. Com uma linguagem perfeitamente coloquial, mas que não dispensa o rigor técnico, o romance se estrutura numa montagem de tempos e cenários que faz lembrar Mario Vargas Llosa, deixando o leitor à espera do desfecho do drama até os últimos parágrafos, como numa boa história policial".

É leitura mais do que recomendável. Só lamento mesmo não ter conseguido ver a palestra de Laura Restrepo na FLIP...

quarta-feira, 20 de julho de 2011

UMA VERGONHA CHAMADA ITAQUERÃO

O buraco começou a ser cavado - e não, não falo das obras de terraplanagem e fundação do estádio Itaquerão, mas dos recursos públicos canalizados para financiar o tal empreendimento. No mesmo dia em que o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, levou às lágrimas Andrés Sanchez, presidente corinthiano, e assinou a lei que concede generosíssimos 420 milhões de reais em incentivos fiscais para a construção do estádio do Corinthians (e há quem diga que não são recursos públicos; me belisquem, por favor), a Odebrecht, empreiteira responsável pela obra, revelou que o governo do Estado de São Paulo bancará outros 70 milhões de reais para erguer o elefante branco, garantindo assim que a capacidade de público alcance os 68 mil lugares, mínimo exigido pela FIFA (comandada por executivos de ilibada reputação) para abrigar a partida de abertura da Copa do Mundo de 2014. 

Em linguagem matemática: os 820 milhões iniciais (orçamento oficialmente divulgado pelo Corinthians) já se transformaram, em menos de 24 horas, em 89o milhões de reais. Do montante total, os poderes públicos (municipal e estadual) se responsabilizarão por 490 milhões (55% do total, de cara, sem considerar as porteiras sempre abertas para novos auxílios, incentivos e aditivos). Os 45% restantes? Sabe-se lá de onde sairão - mas de que importa ter garantias e transparência, não é mesmo? O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está aí para o que der e vier, sempre a postos para bem servir, certo? Uma conta bem rápida e simples: 890 milhões de reais significam mais de 1 milhão e meio de salários-mínimos brasileiros (valor = R$ 545,00).

Não há santos nessa história (farra seria melhor?), que é para lá de suprapartidária: a prefeitura é do PSD (era do DEM), o Estado é administrado pelo PSDB, o BNDES é órgão federal (portanto sob orientação do PT), a aproximação entre a empreiteira e o presidente do clube foi em grande medida estimulada pelo ex-presidente Lula, aliado desde o primeiro mandato do grão-duque do futebol brasileiro, que por sua vez, além de muito próximo do mandatário corinthiano, finge ter rusgas com o pessoal da FIFA, mas vislumbra no horizonte e deseja ardentemente a presidência da entidade a partir de 2015 (depois da Copa, portanto). O Itaquerão acaba sendo portanto mais uma das tantas ações entre amigos que serão gestadas por conta dos megaeventos esportivos que acontecerão no Brasil nos próximos anos.

Antes que me ataquem, não escreve aqui o torcedor, mas o cidadão inconformado. Não condeno a construção do estádio do Corinthians, especificamente, mas o uso de milhões de orçamentos públicos já tão limitados para custear devaneios privados. Esse é o "xis" da questão. São essas relações espúrias e inaceitáveis que combato. Capitalismo sem riscos e sustentado pelo Estado - eis o melhor dos mundos! E não me venham dizer "ah, mas o São Paulo fez o mesmo com o Morumbi". Um erro afinal justifica o outro? Não demora muito e o Palmeiras vai entrar também na fila, a cobrar a fatia para erguer a Arena Palestra. 

Aliás, com tantos estádios na cidade que poderiam ser reformados e modernizados (Morumbi, Pacaembu, Parque Antártica, Canindé e até mesmo o de Barueri, nas fronteiras da metrópole), por que é mesmo que será preciso construir um novo? Na Copa do Mundo de 1994, os Estados Unidos não ergueram arenas - dedicaram-se a aproveitar e adaptar estádios de futebol americano, na maior parte das vezes. Aproveitamento futuro, desenvolvimento econômico e social da região? Perguntem aos sul-africanos que vivem no entorno do Soccer City, palco de abertura do último Mundial, o que aconteceu com o estádio e como vem sendo usado depois de 2010... São Paulo precisa mesmo sediar a partida de abertura? Por que, se Tóquio, por exemplo, que é capital do Japão, não recebeu jogos em 2002?

Sei que estou chovendo no molhado, batendo em teclas já tocadas por tantos outros brasileiros sérios e responsáveis, desnudando o óbvio ululante. Mas não consigo conter a indignação. Triste: para as "autoridades" brasileiras, as questões acima não são relevantes. Importante mesmo é "cumprir as exigências da FIFA". E usar e abusar do dinheiro público - de todos nós, portanto.

O FUTURO DE MANO PASSA PELOS GIGANTES DA BOLA

Antes da Copa América disputada na Argentina, nas mesas-redondas futebolísticas de boteco, divagava com amigos-torcedores-comentaristas e defendia que a convocação do técnico Mano Menezes era merecedora de elogios - ou, no mínimo, não abria brechas para críticas contundentes. Vá lá, claro, era possível discordar pontualmente, recusar uma ou outra escolha, às vezes até mesmo escorregando em simpatias pessoais (e não exatamente em critérios técnicos). Mas não houve grita coletiva por algum jogador esquecido ou injustiçado, como ocorrera na Copa do Mundo de 2010, com Paulo Henrique Ganso e Neymar. Os melhores (se futebol é momento), me parece, tinham sido chamados.

O fracasso (não é todo dia que se perde para o Paraguai desperdiçando quatro pênaltis) na competição sul-americana nos coloca assim diante de uma encruzilhada futebolística, daquelas capazes de mobilizar tantas outras mesas-redondas: ou a safra de jogadores é ruim ou o treinador não está sabendo agir para transformar um grupo de bons boleiros em uma equipe coesa, competitiva e vencedora. De pronto: fecho com a segunda hipótese. E, num exercício assumidamente de livre imaginação - não tenho fontes secretas e me recuso a trabalhar com grampos ilegais, como fazem os capangas do gângster australiano Rupert Murdoch -, penso que o destino de Mano à frente da seleção brasileira de futebol será selado neste segundo semestre, quando o Brasil enfrentará gigantes do futebol mundial: Alemanha (agosto), Argentina (dois confrontos, em setembro), Espanha (outubro, quando o Brasil também jogará contra o México) e Itália (novembro). 

Não há como negar que a Copa América representava momento importante da preparação da seleção para o Mundial de 2014. Mas nunca esteve perto de significar ponto de inflexão, marco decisivo e com condições e peso para definir a demissão de Mano em caso de fracasso - atenção, também já defendia esse ponto de vista antes do torneio. Trata-se afinal de disputa regional, pouco valorizada ou abraçada pela torcida, disputada junto com o Campeonato Brasileiro, e que neste ano alcançou nível técnico especialmente abaixo da crítica (a exceção que confirma a regra fica por conta do embate entre Argentina e Uruguai nas quartas). E, cá entre nós, a eliminação dos hermanos nas quartas-de-final, antes do Brasil, aliviou ainda mais a barra e a pressão e facilitou o trabalho da CBF, ajudando a sustentar o discurso do grão-duque que diz que "continuamos bancando e prestigiando Mano". 

O que assusta e preocupa é que, com bom material humano em mãos e tempo para trabalhar, diante de rivais mais fracos, Mano não conseguiu construir um time, idealizar um jeito de jogar para a seleção. A defesa mostrou inconsistências e fragilidades em momentos cruciais. Os dois volantes oscilaram muito (é verdade que Ramires fez uma boa partida contra o Paraguai). Pato não pode jogar enfiado entre os zagueiros, de costas para o gol. O time teve dificuldades para sair de marcação sob pressão e, nestes momentos, recorreu a chutões. Isolado, sem outro companheiro a auxiliá-lo na armação das jogadas, sem alguém que ao menos chamasse a atenção dos adversários, PH Ganso tornou-se presa mais fácil para os marcadores. Gostaria muito de ter visto o craque do Santos ao lado de Lucas, do São Paulo, outro talento indiscutível. Neymar? Ficou preso na ponta esquerda, parecia tímido, acuado, pouco arriscando os dribles e arrancadas intempestivas e criativas, suas marcas registradas.

Diga-se também sobre a dupla santista que, no clube, são astros decisivos não apenas pelos talentos inquestionáveis e já mais que provados, mas também porque o esquema de jogo foi em grande medida pensado e idealizado em função deles, para maximizar os recursos técnicos de que dispõem. Não foi assim na seleção. Foram cobrados por expectativas que ainda não podem atender. Perfeito, não adianta agir como avestruz e esconder a cabeça - Ganso e Neymar renderam menos do que podem e são capazes; ainda assim, é importante lembrar que boa parte das jogadas mais lúcidas e agudas nasceu dos pés da dupla santista. 

E muito cuidado - que esse raciocínio por favor não sirva de "argumento" para ressuscitar o dunguismo e reabilitar a cartilha (já verbalizada pelo auxiliar-apóstolo Jorginho a veículos de comunicação) que reza que "a comissão técnica agiu corretamente ao não convocar os dois jovens talentos para a Copa da África do Sul, que o tempo deu razão a essa escolha". Mantenho a convicção de sempre - Ganso e Neymar deveriam ter feito parte do grupo que disputou o último Mundial, ainda que como reservas. A dar crédito a alguns corneteiros de plantão, que nadam conforme as correntezas, os dois craques são agora "uma farsa, enganadores". Quanta insensatez. Tremenda bobagem. Até porque, se Ganso e Neymar tivessem vivido a experiência (e as cobranças) de uma Copa do Mundo, estariam hoje em outro patamar de maturidade. De certa forma, teriam passado por um ritual de provação, de transição. Mais um adendo: também não faço parte dos "anti-Dunga Futebol Clube".... Pois é, até mesmo o futebol não é tão isso ou aquilo, também marcado por nuances e sutilezas, não?

Perdemos enfim um tempo precioso - ainda mais se lembrarmos que não teremos desta feita as Eliminatórias para treinar a equipe. Ainda assim, como já disse, Mano poderá continuar seu trabalho. Mas o tempo urge. O sinal amarelo se acendeu. Minha tese: o futuro do técnico da seleção será jogado neste segundo semestre, diante de seleções que reúnem dez títulos mundiais: os hermanos argentinos (duas Copas), os disciplinados alemães (três títulos), os eficientes italianos (tetracampeões) e os técnicos espanhóis, últimos a levantar o caneco. É aí que o bicho vai pegar.

Se conseguir jogar bem - e vencer, importante -, Mano se cacifa para o Mundial de 2014. Se conhecer novos tropeços, a pressão será insuportável. Vão exigir sangue - a torcida, a imprensa, os patrocinadores, a TV Globo... Poderá se calcificar no imaginário popular a fotografia de uma seleção fraca, vulnerável, sem comando, um Brasil incapaz de bater grandes seleções. Cabeças terão de ser entregues. A de Mano tende a ser a primeira. A cúpula da CBF avaliará que o limite foi atingido. Buscará mudanças, ainda com pelo menos dois anos de fôlego e margem de manobra para que o novo treinador da Seleção possa montar uma equipe com condições de conquistar a taça pela sexta vez - a primeira em território nacional.

Para terminar, outro assumido exercício de imaginação - sem Mano, acho que a CBF bateria na porta de Felipão. Muricy? O melhor do país, atualmente. Mas refugou uma vez. E o grão-duque é daquelas personalidades rancorosas, que guarda mágoas, não aceita ser contrariado. Mais: às vésperas da disputa do Mundial de Clubes com o Santos, a tendência seria o atual treinador santista dizer outro "não", certo? O dono do futebol brasileiro morreria de cólera. Não arriscaria. Felipão seria a vertente mais segura, não aventureira, já testada e aprovada. Resta saber se ele aceitaria. Em 2002, em condições semelhantes, disse "sim" - tinha nada a perder, e um mundo a conquistar. Em 2012, correria o risco de ver desconstruída sua imagem de técnico vencedor.

Como disse, só estou pensando alto.

domingo, 17 de julho de 2011

MAIS UM ENCONTRO COM valter hugo mãe

(*) Por Elisa Marconi, radialista e professora universitária

Vou a Portugal em setembro próximo. Por uma série de razões, essa viagem será bem importante para mim, em todos os sentidos. Por isso o fenômeno valter hugo mãe combina tanto com esse momento. Confesso que fiquei um tantinho mal humorada quando entendi que não era a única brasileira a descobrir o português. Ao contrário, o tsunami literário previsto por José Saramago virou o queridinho da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, vendeu todos os livros que levou para lá, foi protagonista da palestra mais comentada e autografou os livros por, creiam, 4 horas. E enquanto o Brasil descobria valter hugo mãe, ele mesmo ia descobrindo esse país aqui. 

Essa aventura de como, pouco a pouco, foi tendo um contato mais próximo com o país e com seus habitantes foi exatamente a primeira parte da palestra que ele proferiu no Cine Livraria Cultura na noite de segunda-feira da semana passada, 11/07. Ao lado do diretor editorial da Cosac Naify, Cassiano Elek Machado, mãe levou o auditório lotado às gargalhadas ao contar sobre a participação na “macumba antropofágica” de Zé Celso Martinez – e do pânico de que a qualquer hora o dramaturgo o fizesse ficar pelado (justo ele que, durante a fala na FLIP, só conseguia enxergar a própria barriga saliente destoando da linda figura de Pola Oloixarac, com quem dividiu o palco) –; ou sobre o encontro tão fugaz quanto definitivo com a diva Elza Soares; ou ainda sobre as lindas vacas que pastavam sentidas em São Luis do Paraitinga.

Depois de ler um trecho belíssimo de  "a máquina de fazer espanhóis", o primeiro romance de valter hugo mãe lançado aqui no Brasil – aquele mesmo que vendeu como água na FLIP, ficando atrás apenas da vendagem do livro  "Leite Derramado", de Chico Buarque, na Festa Literária de 2009 –, em que o senhor silva, personagem principal, abraça a mulher morta e entende que a morte não é capaz de fazer o amor sair do coração, o escritor começou a falar sobre a obra. 

Provocado por Elek Machado, mãe concordou que o livro tem várias linhas mestras. Trata ao mesmo tempo do amor, da amizade, da família que se escolhe, da velhice, da iminência da morte, da situação de Portugal, da situação da Europa e por aí vai. É o leitor, segundo o autor, quem vai decidir qual será o caminho a ser trilhado. De qualquer maneira, todos os caminhos são uma tentativa de devolver o sorriso ao senhor silva, que aos 84 anos precisa reencontrar razões para viver.

Deixado pela família num lar de idosos depois que a esposa morre, senhor silva enfrenta as questões que valter hugo mãe entende mais significativas para um homem velho. Algumas já relatadas acima - e ainda outras tantas. Duas delas me chamam a atenção: a ternura que pode acontecer numa amizade (e amizade é um amor desprovido de corpo, de desejo, de sexualidade, como disse o escritor), possibilidade linda e delicadamente retratada na cena em que senhor silva e esteves sem metafísica – outro morador do asilo, este roubado a Fernando Pessoa – dividem a mesma cama, depois que esteves chega apavorado por pesadelos ao quarto do amigo. senhor silva, aliás, também é assombrado por sonhos terríveis. Abutres e pássaros negros aparecem à noite para bicar-lhe o corpo. 

A segunda dimensão que me arrebata é a que revela como sentimentos sempre são os mesmos. Ou, nas palavras de mãe, aquilo que magoa, magoa sempre. Aí, citando um outro poeta português – RuyBelo, acho – valter hugo conta que feliz é o homem que consegue dividir a tristeza em pequenos bocados e distribuí-los ao longo dos dias da vida. Tocante.

Mas, ao contrário do que possa estar parecendo, "a máquina de fazer espanhóis" não é um livro depressivo, para baixo. mãe falou sobre isso também na palestra. A ele encanta um mecanismo sobre o qual não temos nenhum controle, mas que garante uma certa salvação mesmo depois do desgosto mais violento. Como se toda gente tivesse a capacidade de perceber que – por raros instantes – a vida vale a pena, mesmo depois de experiências tão dolorosas. Encontrar o sorriso no meio da amargura – ou tratar da máquina que devolve o sorriso ao senhor silva – era um dos objetivos que o autor perseguia ao escrever o livro. Pensar assim, nessas fagulhas de felicidades que sussurram que a vida vale a pena, apenas isso já faz a vida valer a pena, de fato. 

Porque, segundo mãe, esses momentos são uma espécie de chave para o apaziguamento. Para ele, viver bem, morrer bem e tal nada tem a ver com a idade, e sim com esse apaziguamento, esse contentamento que a vida foi o que você esperava dela, que a vida correspondeu ao que se buscou nela. O gatilho que faz rir mesmo durante a dor aponta justamente para esse conforto, essa certeza de que a vida vale a pena. (Aliás, algo aqui me lembra que alguém já cantou isso em verso... mas essa já é outra história de português.)

sábado, 9 de julho de 2011

FRAGMENTOS DE UM DISCURSO JOÃOUBALDIANO

DE  PARATY


Concorridíssima (estava muito mais que lotada, com gerais e arquibancadas laterais improvisadas ocupando cada palmo de areia), animada, inteligente e bastante engraçada e divertida - foi assim a conversa com o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro (mesa 14, "Alegorias da Ilha Brasil") na FLIP, como revelam os fragmentos da fala dele que selecionei e reproduzo abaixo.  Foi a maneira que encontrei para tentar registrar e documentar no Blog algumas tiradas e raciocínios sensacionais, que de alguma maneira desnudam o jeito de ser e de pensar do autor de obras magistrais como "Sargento Getúlio", "Viva o povo brasileiro" e "O sorriso do lagarto".



"Por alguma razão que não consigo explicar a ilha de Itaparica invariavelmente aparece em meus livros. Talvez faça mais parte da minha formação do que eu suspeite. Tenho medo do carioquês, apesar de conhecer e de ter vivido no Rio. A história vai acabar sempre saindo com a cara de um itaparicano".

"Não sou historiador de Itaparica. Nunca me preocupei com a veracidade das situações. Não escrevo reportagens".

"Quando comecei a escrever, era um autor engajado politicamente, achava que mudaria os destinos da humanidade, que em poucos anos ganharia o Nobel e que seria presença maiúscula na cultura nacional".

"No momento em que decide ser escritor, você decide se vai ser bom ou ruim, se vai fazer concessões, qual a hierarquia de valores que pretende consagrar em seus livros, se quer dizer algo importante ou apenas alcançar sucesso fácil".

"Olhe, é muito difícil achar lógica no sucesso ou no fracasso de um escritor. Não sei se sorte é a melhor palavra. Mas existe sim um tanto de imponderável".

"O que O Sorriso do Lagarto anunciava em termos de ciência acabou virando brincadeira".

"Não quis coisa nenhuma reescrever a história do Brasil do ponto de vista do dominado. Queria escrever um bom livro, bem escrito e que fosse grosso, para esfregar na cara do Pedro Paulo Sena Madureira. Foi isso o que fiz". (sobre "Viva o povo...")

"A obra de Guimarães Rosa não me fala. Não está entre os autores de meu afeto".

"Tenho medo do ser humano pilotando seu próprio destino".

"Não sou otimista em relação à humanidade. Somos uma espécie muito criticável".

"A nossa ruindade animalesca prevalece, apesar de nossa racionalidade".

"Por que eu deveria escrever um livro sobre o pecado da preguiça? Só porque sou baiano?". 

"Encomenda gera livro, cheque gera inspiração". (sobre seu processo criativo)

"O grande João Ubaldo é inteligente, solidário, simpático, educado, afável. Uma excelente pessoa".

"Já o pequeno João Ubaldo é um canalha que vive me perseguindo. Já tentei botá-lo para fora de casa várias vezes. Mas ele não vai embora".

HISTÓRIAS RUINS - ESQUECER OU NÃO ESQUECER?

DE  PARATY

Para um apaixonado por futebol, o dilema era de grande significado. É bem verdade que a Copa América disputada na Argentina tem sido ridícula, um estrondoso fracasso, com partidas sofríveis. Ainda assim, o jogo Brasil x Paraguai continuava sendo um programa convidativo - até porque, noves fora, Ganso e Neymar estariam em campo. Mas, ao final das contas, foi sem remorso nem dor no coração que troquei a peleja pela mesa 12 da FLIP, que teve como tema "Ficção entre escombros", e da qual participaram Edney Silvestre, Marcelo Ferroni e Teixeira Coelho, com a mediação do jornalista Claudiney Ferreira. A proposta era discutir obras literárias que flagram traumas, agruras e fraturas da História do Brasil na segunda metade do século XX.

Reconheço que minha vontade mais intensa - e daí ter deixado o jogo de lado - era ouvir Edney, a quem admiro como repórter e jornalista e que escreveu aquele que considero, muito modestamente, um dos mais empolgantes romances brasileiros dos últimos anos ("Se eu fechar os olhos agora"), seja pela trama policial marcada por suspenses e reviravoltas, pela maestria como as histórias são entrelaçadas, pela habilidade descritiva cinematográfica, pela sensibilidade e profundidade na construção dos personagens e também pelo final tão empolgante quanto inesperado. A polêmica já foi superada - a presença de Edney na FLIP deste ano de certa forma carregou esse simbolismo, como bem observou o jornalista e companheiro Fabio Cardoso -, mas "Se eu fechar..." merecia o prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano de 2010, bem mais que "Leite Derramado", de Chico Buarque (que aliás é um livro de que também gosto bastante). 

E Edney não só deu conta de minhas expectativas como me cativou um pouco mais ao ler, na abertura da mesa na FLIP, um trecho do próximo romance dele, "A felicidade é fácil", que deve ser lançado em outubro. Em linhas gerais, é uma história que acontece num único dia, em 1990, seis meses depois do anúncio do confisco de poupanças e contas correntes promovido pelo trágico Plano Collor. A obra nasceu a partir de uma notícia de jornal que dava conta de um menino sequestrado por engano em São Paulo, no ano citado. Impressionado, o jornalista e escritor guardou aquela matéria, fonte de inspiração para essa nova investida literária."Fiquei matutando, até conseguir concatenar as ideias e colocá-las no papel".

Fiel ao tema da mesa, e procurando aproveitar possíveis pontos de conexão entre as obras dos autores presentes, a pergunta então sugerida pelo mediador aos debatedores foi: será que a Literatura pode contar a História melhor do que a própria História é capaz de fazê-lo?

Teixeira Coelho apressou-se em responder com firmeza que os melhores historiadores são literatos. "História é Literatura", insistiu o autor de "História natural da ditadura", obra que reflete sobre diferentes experiências autoritárias vividas pela humanidade, e, mais recentemente, de "O homem que vive - Uma jornada sentimental", uma espécie de viagem em busca da felicidade. "A melhor coisa que você pode fazer é colocar a verdade em discussão. Eu procuro trabalhar com versões coerentes e lógicas. Mas a pergunta é sempre melhor que a resposta", completou.

Marcelo Ferroni, autor de "Método prático da guerrilha", que usa a ficção para contar os dois últimos anos de vida de Ernesto Che Guevara, disse que o problema é distorcer deliberadamente a realidade, com fins e interesses instrumentalizados. "Mas aí estamos falando de outro espírito", decretou. 

Edney foi o último a falar nessa rodada. Não se fez de rogado e recorreu a seu trabalho como jornalista, talvez preocupado com a relativização absoluta, para manifestar divergência com a fala de Coelho. "Existem versões, mas há uma verdade, sim, que às vezes a gente não sabe bem qual é. Eu já presenciei verdades muito duras". Citou como exemplo uma reportagem feita no início do ano, durante as fortes chuvas e a tragédia da enchente na cidade de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, quando em determinado momento das gravações percebeu que estava caminhando sobre cadáveres. "Eram reais, verdadeiros. Há uma realidade incontestável e outras que construímos em nossos romances", advertiu.   

Na réplica, Teixeira Coelho procurou esmiuçar seu raciocínio, explicando que sua preocupação se dá com as nuances e sutilezas e sugerindo que as verdades que mais interessam a ele são aquelas que são complicadas ou ambíguas. "A história conta que Walter Benjamin se suicidou quando fugia da França para a Espanha, em 1940. Mas estava sozinho no quarto. Quem garante que foi suicídio? É verdade? É versão? Proposição?", provocou. Naquele mesmo instante me lembrei de uma entrevista que fiz ainda como estudante de jornalismo com a escritora Judith Patarra, ainda nos idos dos anos 1990, que na ocasião estava lançando a biografia de Iara Iavelberg, militante e guerrilheira que lutou contra a ditadura militar e que foi companheira do capitão Carlos Lamarca. De acordo com a narrativa, acuada e ao perceber que seria presa pelas forças de repressão, Iara teria dado um tiro no peito. Mas também estava sozinha em um apartamento em Salvador, em agosto de 1971. Perguntei à autora: "como ter certeza que foi assim mesmo que aconteceu, que essa não é uma versão que interessa à ditadura?". Ela ficou nervosa. Nâo gostou da questão. E apenas repetiu que tinha sido daquela maneira.

Àquela altura do debate, Ferroni parecia já ter se conformado com o papel de coadjuvante e mais observava do que falava.  E pôde então acompanhar mais uma discussão de fundo que acabou colocando os outros dois debatedores em posições novamente antagônicas: a preservação da memória. Teixeira Coelho revelou que uma das razões para ter escrito "O homem que vive..." foi justamente tentar esquecer e deixar os escombros e o pessimismo de "História natural..." para trás e investir em narrativas mais construtivas. Edney quase pulou da poltrona. "Quero dizer o contrário. Não podemos esquecer os escombros. Tive um amigo torturado e não morto pela ditadura. Anos depois, suicidou-se. Não posso esquecer. Assim como fiquei ainda mais horrorizado com o que aconteceu nos anos Collor quando fiz a pesquisa para o novo romance. Além da corrupção, foi naquele momento que vimos intensificar a diáspora brasileira, gente que saía daqui em busca de sobrevivência em outros países".

Teixeira pediu réplica: "Esquecer tudo é impossível. A questão é mais complexa. Esquecer o que é ruim também significa ter memória".

Edney insistiu na tréplica: "Acompanhamos recentemente discussão complicadíssima sobre segredos e arquivos secretos da ditadura. Insisto: não podemos esquecer".

Saí da Tenda do Telão convicto: tinha valido muito a pena ter deixado de lado o jogo do Brasil (não posso dizer o mesmo do senhor que acompanhou o debate na cadeira ao meu lado. Dormiu quase de roncar. Com pouco mais de meia hora de conversa no palco, levantou-se e foi embora). Estou mais do que ansioso para ler o novo romance de Edney. Se uma das tarefas da FLIP é despertar curiosidades para novas leituras e autores, o trabalho mais uma vez foi bem feito.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

MODOS DE ESCREVER DE POLA E DE valter hugo

DE  PARATY


Depois de acompanhar bem de perto a alegria desavergonhadamente estampada nos rostos dos pequenos, que participaram de conversas com Pedro Bandeira e Ilan Brenman, renomados escritores infanto-juvenis, dei uma rápida escapada para ver na Tenda do Telão a mesa 6 da Festa Literária Internacional de Paraty - que recebeu o título "Pontos de Fuga". A conversa reuniu nesta sexta-feira o angolano-português valter hugo mãe (assim mesmo, como ele escreve, com minúsculas), autor elogiadíssimo pelo inesquecível Nobel José Saramago, e a romancista argentina Pola Oloixarac, uma das convidadas mais badaladas da festa e incluída pela respeitada revista literária britânica Granta na lista dos vinte melhores jovens autores contemporâneos em língua espanhola. 

Era uma mistura de sotaques e de estilos que se anunciava muito promissora - e o diálogo de fato valeu a pena. Mas já em seu início sugeriu também que a plateia teria de lidar, ao longo daquela hora e meia de reflexões, com percalços e incômodos que acabariam por tornar tortuosas algumas falas - especialmente no que disse respeito à escritora argentina. 

Feitas as apresentações, como determina o cerimonial da FLIP, o mediador da mesa, jornalista Angel Gurría-Quintana, como deve ter sido combinado nos bastidores, pediu a Pola que lesse de imediato um trecho de seu romance "As teorias selvagens", que articula utopias e situações políticas com provocações sobre novas tecnologias. A expressão constrangida de Pola acabou por denunciá-la: não havia subido ao palco com sua "cola", as linhas previamente selecionadas. Tentando manter controle da situação, sereno, o mediador apontou dois caminhos: "podemos procurar seu livro. Ou você faz a leitura usando o exemplar em Português que está aqui". A argentina fez uso da segunda opção. Não funcionou. 

Foi então que as páginas em espanhol finalmente apareceram. Alívio geral. Durou pouco. Fomos mais uma vez pegos de surpresa e o que era solução assumiu ares de novo obstáculo: a tradução simultânea da fala da argentina acontecia automaticamente, para todos, em som ambiente, e não apenas para os que tinham escolhido acompanhar com fones de ouvido. Conclusão: não foi possível ouvir os pedaços da história narrados pela voz da própria Pola. Para complicar: a ampla, geral e irrestrita tradução da fala da romancista, que infelizmente se estendeu por toda a palestra, parecia atrasada e fragmentada, truncada, com longas pausas tomando conta do ambiente, deixando pouco compreensíveis momentos significativos do depoimento.

Estranhamento - talvez seja essa a sensação a expressar mais de perto o que aconteceu com o público. O que mais se via eram olhares com contornos de pontos de interrogação e um burburinho que se transformou rapidamente em comentários incontidos do tipo "está muito ruim, não estou entendendo nada, ela não fala coisa com coisa". A avaliação foi confirmada ao final da palestra: na saída,  havia um consenso que estabelecia que a tradução tinha mesmo atrapalhado a recepção mais precisa e nítida da fala de Pola (que, por si só, já parecia mesmo um tanto dispersa). Uma pena.

Do que foi possível garimpar, Pola disse considerar a cultura como um espaço em guerra e contou que em sua obra procura estabelecer pontes com os desejos humanos, tudo aquilo que gostaríamos de dizer mas não estamos anunciando abertamente. "Me divertia essa perspectiva de fazer comédia e de dar conta da paixão pelo conhecimento, que é a razão de ser da literatura". No entanto, de forma provocativa, ressaltou que desejava guardar distância de antigas tradições políticas da literatura latino-americana, que a argentina considera muito engajadas e disciplinadas - leia-se "certinhas". 

Pola concorda que seu romance pretende assumir um certo caráter experimental e de laboratório. Lembrou que a obra é uma porta aberta para o debate sobre a moralidade de nossa época - característica aliás que considera uma tradição genuína da literatura argentina, presente em grandes autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Contou ainda que para ela a construção de personagens é sempre uma enorme diversão. "São pessoas com quem eu gostaria de estar, de certa forma são meus amigos".

Não faltaram farpas para a crítica. "Quando uma mulher fala sobre ideias, com repertório e ambição intelectual, arruma-se sempre um jeito de banalizar a discussão e de torná-la trivial. Não tinha percebido esse comportamento até lançar o romance. Foi uma surpresa". Aproveitou ainda a chance para anunciar que está trabalhando em dois novos romances: um sobre plantas, tendo florestas brasileiras como cenário; o outro será sobre uma temporada que ela passou na Califórnia, Estados Unidos, em uma base militar da agência espacial norte-americana, a NASA. 

Sem a tradução, e num português para lá de claro e acessível, a fala de valter hugo soou muito mais atraente e pôde ser mais bem aproveitada. Ao revelar detalhes de seu processo criativo, disse que o "escritor procura substituir com a literatura aquilo que lhe falta na vida real". Para ele, escrever é um trabalho sobretudo destinado a suscitar a percepção sobre o que o mundo tem de melhor, que são as pessoas. "Livros são máquinas de fazer ver e sentir". O angolano-português fez questão de deixar bem claro - suas obras não são auto-biográficas. "Não mereço, minha vida não é interessante, não sou James Bond ou qualquer outra celebridade do cinema", brincou.

valter hugo - um dos campeões de vendas de livros na loja da FLIP, ao lado do neurocientista Miguel Nicolelis - cresceu amedrontado pela ideia da morte. Contribuía para esse temor o fato de o pai dele sempre ter dito que morreria de cancro - o que de fato acabou se consumando. A primeira meta do escritor era completar 18 anos; depois, 33, a idade de Cristo. Com quase 40 (vai completá-los em setembro), fica se perguntando: "mereço viver tanto?". 

Não por acaso, essa angústia em relação ao fim da vida evidencia-se no último romance dele - "a máquina de fazer espanhóis", em que o protagonista, um velho com 84 anos, tem de redescobrir e reinventar o sentido da vida em plena e avançada velhice. Este livro na verdade encerra uma quadrilogia, que nasce com "o nosso reino" (personagem principal é uma criança de oito anos), passa por "o remorso de baltazar serapião" (protagonista é um jovem com 20 anos), chega a "o apocalipse dos trabalhadores" (destaque para mulheres com 40) e se fecha com "a máquina...". 

"Acabei construindo, juntando os quatro livros, uma história de um tempo normal de vida para um ser humano. A literatura me ajudou a compreender essa experiência fascinante chamada vida. Se eu morrer com 40, penso que não será tão dramático", voltou a brincar.

Sem perder tempo, emendou: tem muito prazer em escrever. "Não quero que o público fique com a referência de que meus textos são deprimentes". Contou então que se diverte em várias etapas de sua catarse criativa de escritor. "Tenho ataques de riso, dou gargalhadas, e muitas vezes até perco a piada e não sei mais o que queria escrever". Reconheceu: é literalmente tomado pelo processo, fica enfeitiçado pelas narrativas - interage com os personagens, fica esperando que batam à porta dele, não sabe se é dia ou noite. "O momento de escrever é salvação. É o melhor tempo do meu ano".

Sobre o peso da tradição da literatura portuguesa, disse que é fundamental valorizar os clássicos, sem perder de vista a exigência de pavimentar caminhos criativos de singularidade. E por falar em gênios escritores portugueses, em mais um momento de descontração, contou que já dormiu no quarto que pertenceu a Fernando Pessoa. No dia seguinte, os jornalistas queriam saber se fantasmas tinham aparecido (talvez o heterônimo Ricardo Reis?). "Dormi mal sim, mas porque a cama era péssima, muito estreita", divertiu-se, arrancando aplausos da plateia, cativada também pelo próximo projeto do autor. "Sinto a necessidade de ter filhos. O romance que estou a finalizar é sobre o perceber e o descobrir o que é ser pai".

Ao final, lendo uma carta com elogios ao Brasil, aos brasileiros, às mulheres brasileiras e até mesmo a Renato Russo e à canção "Tempo Perdido" ("todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo"), valter hugo caiu definitivamente nas graças do público presente, principalmente da ala feminina, de quem recebeu efusivos e demorados aplausos.