(*) Por Elisa Marconi, radialista e professora universitária
Vou a Portugal em setembro próximo. Por uma série de razões, essa viagem será bem importante para mim, em todos os sentidos. Por isso o fenômeno valter hugo mãe combina tanto com esse momento. Confesso que fiquei um tantinho mal humorada quando entendi que não era a única brasileira a descobrir o português. Ao contrário, o tsunami literário previsto por José Saramago virou o queridinho da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, vendeu todos os livros que levou para lá, foi protagonista da palestra mais comentada e autografou os livros por, creiam, 4 horas. E enquanto o Brasil descobria valter hugo mãe, ele mesmo ia descobrindo esse país aqui.
Essa aventura de como, pouco a pouco, foi tendo um contato mais próximo com o país e com seus habitantes foi exatamente a primeira parte da palestra que ele proferiu no Cine Livraria Cultura na noite de segunda-feira da semana passada, 11/07. Ao lado do diretor editorial da Cosac Naify, Cassiano Elek Machado, mãe levou o auditório lotado às gargalhadas ao contar sobre a participação na “macumba antropofágica” de Zé Celso Martinez – e do pânico de que a qualquer hora o dramaturgo o fizesse ficar pelado (justo ele que, durante a fala na FLIP, só conseguia enxergar a própria barriga saliente destoando da linda figura de Pola Oloixarac, com quem dividiu o palco) –; ou sobre o encontro tão fugaz quanto definitivo com a diva Elza Soares; ou ainda sobre as lindas vacas que pastavam sentidas em São Luis do Paraitinga.
Depois de ler um trecho belíssimo de "a máquina de fazer espanhóis", o primeiro romance de valter hugo mãe lançado aqui no Brasil – aquele mesmo que vendeu como água na FLIP, ficando atrás apenas da vendagem do livro "Leite Derramado", de Chico Buarque, na Festa Literária de 2009 –, em que o senhor silva, personagem principal, abraça a mulher morta e entende que a morte não é capaz de fazer o amor sair do coração, o escritor começou a falar sobre a obra.
Provocado por Elek Machado, mãe concordou que o livro tem várias linhas mestras. Trata ao mesmo tempo do amor, da amizade, da família que se escolhe, da velhice, da iminência da morte, da situação de Portugal, da situação da Europa e por aí vai. É o leitor, segundo o autor, quem vai decidir qual será o caminho a ser trilhado. De qualquer maneira, todos os caminhos são uma tentativa de devolver o sorriso ao senhor silva, que aos 84 anos precisa reencontrar razões para viver.
Deixado pela família num lar de idosos depois que a esposa morre, senhor silva enfrenta as questões que valter hugo mãe entende mais significativas para um homem velho. Algumas já relatadas acima - e ainda outras tantas. Duas delas me chamam a atenção: a ternura que pode acontecer numa amizade (e amizade é um amor desprovido de corpo, de desejo, de sexualidade, como disse o escritor), possibilidade linda e delicadamente retratada na cena em que senhor silva e esteves sem metafísica – outro morador do asilo, este roubado a Fernando Pessoa – dividem a mesma cama, depois que esteves chega apavorado por pesadelos ao quarto do amigo. senhor silva, aliás, também é assombrado por sonhos terríveis. Abutres e pássaros negros aparecem à noite para bicar-lhe o corpo.
A segunda dimensão que me arrebata é a que revela como sentimentos sempre são os mesmos. Ou, nas palavras de mãe, aquilo que magoa, magoa sempre. Aí, citando um outro poeta português – RuyBelo, acho – valter hugo conta que feliz é o homem que consegue dividir a tristeza em pequenos bocados e distribuí-los ao longo dos dias da vida. Tocante.
Mas, ao contrário do que possa estar parecendo, "a máquina de fazer espanhóis" não é um livro depressivo, para baixo. mãe falou sobre isso também na palestra. A ele encanta um mecanismo sobre o qual não temos nenhum controle, mas que garante uma certa salvação mesmo depois do desgosto mais violento. Como se toda gente tivesse a capacidade de perceber que – por raros instantes – a vida vale a pena, mesmo depois de experiências tão dolorosas. Encontrar o sorriso no meio da amargura – ou tratar da máquina que devolve o sorriso ao senhor silva – era um dos objetivos que o autor perseguia ao escrever o livro. Pensar assim, nessas fagulhas de felicidades que sussurram que a vida vale a pena, apenas isso já faz a vida valer a pena, de fato.
Porque, segundo mãe, esses momentos são uma espécie de chave para o apaziguamento. Para ele, viver bem, morrer bem e tal nada tem a ver com a idade, e sim com esse apaziguamento, esse contentamento que a vida foi o que você esperava dela, que a vida correspondeu ao que se buscou nela. O gatilho que faz rir mesmo durante a dor aponta justamente para esse conforto, essa certeza de que a vida vale a pena. (Aliás, algo aqui me lembra que alguém já cantou isso em verso... mas essa já é outra história de português.)
Oi, Elisa, adorei essa sua matéria/comentário (texto fluido, gostoso, informativo e sensível)e estou torcendo para que essas minhas linhas não sumam do blog. Por via das dúvidas, vou salvar em algum outro lugar.
ResponderExcluirAi, Elisa, que texto gostoso e delicado! Não conheço o autor (aliás, que nome mais diferente, né?), e vou correndo comprar este livro, que fala da vida do Seu Silva, pra ler. Adorei! ("valter hugo conta que feliz é o homem que consegue dividir a tristeza em pequenos bocados e distribuí-los ao longo dos dias da vida.") Aproveite Portugal. Vou ver se acho anotações sobre uma casa de fado que conheci, em Alfama, de colocar a gente em êxtase profundo. Beijão.
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