DE PARATY
O encontro foi casual, perto da hora do almoço, quando o céu se tornava um pouco menos cinzento e um sol ainda muito tímido tentava se impor no horizonte de Paraty (seria rapidamente vencido pelas nuvens). Depois de algumas andanças pela cidade e dos acertos para a programação infantil da tarde, decidimos conhecer o espaço cultural da editora Companhia das Letras especialmente montado para a Festa Literária Internacional de Paraty. Miguel Nicolelis estava distante uns dez passos da entrada, em pé, braços cruzados, conversando animadamente. Feitas as devidas apresentações (havíamos apenas nos falado por e-mail e redes sociais), arrisquei um comentário. "Puxa, professor, sua fala hoje vai acontecer justamente na hora do jogo do Palmeiras contra o América de Minas...". Nicolelis, palestrino fanático, daqueles de não perder jogo no campo quando está em São Paulo e de narrar partidas pelo twitter quando está fora do país, concordou, em tom de brincadeira: "é mesmo um crime!". Elisa, minha esposa-companheira, aproveitou a deixa. "Você vai usar a camisa do Palmeiras à noite, na palestra?". Nicolelis disse que de fato a camisa alviverde estava na mala. Mas ainda não havia decidido se a usaria oficialmente, em cerimônia tão solene.
O encontro foi casual, perto da hora do almoço, quando o céu se tornava um pouco menos cinzento e um sol ainda muito tímido tentava se impor no horizonte de Paraty (seria rapidamente vencido pelas nuvens). Depois de algumas andanças pela cidade e dos acertos para a programação infantil da tarde, decidimos conhecer o espaço cultural da editora Companhia das Letras especialmente montado para a Festa Literária Internacional de Paraty. Miguel Nicolelis estava distante uns dez passos da entrada, em pé, braços cruzados, conversando animadamente. Feitas as devidas apresentações (havíamos apenas nos falado por e-mail e redes sociais), arrisquei um comentário. "Puxa, professor, sua fala hoje vai acontecer justamente na hora do jogo do Palmeiras contra o América de Minas...". Nicolelis, palestrino fanático, daqueles de não perder jogo no campo quando está em São Paulo e de narrar partidas pelo twitter quando está fora do país, concordou, em tom de brincadeira: "é mesmo um crime!". Elisa, minha esposa-companheira, aproveitou a deixa. "Você vai usar a camisa do Palmeiras à noite, na palestra?". Nicolelis disse que de fato a camisa alviverde estava na mala. Mas ainda não havia decidido se a usaria oficialmente, em cerimônia tão solene.
Pouco mais de seis horas depois, às 19h43 (no meu relógio), mais precisamente, Miguel Nicolelis subiu ao palco principal da FLIP para participar da mesa 4, que discutiu o tema "O humano além do humano", contou também com a exposição do filósofo Luiz Felipe Pondé e teve a mediação da jornalista Laura Greenhalgh, de O Estado de São Paulo. Não estava com a camisa do Palmeiras, é verdade. Mas, arrisco dizer que não casualmente, vestia um agasalho de moletom verde. As tendas dos autores e do telão estavam completamente lotadas - e, nas laterais, para além das grades de proteção, cadeiras que originalmente pertenciam a barracas da praia se transformaram em assentos extras para aqueles que não tinham conseguido ingressos, mas que ficaram muito bem posicionados naquelas arquibancadas improvisadas, todos com ouvidos e olhares atentos para um dos vinte mais importantes cientistas do mundo, candidatíssimo a Prêmio Nobel de medicina e autor do recém-lançado "Muito além do nosso eu", que já desponta nas listas de mais vendidos do país.
Nicolelis abriu sua palestra comemorando o fato de o cérebro não ser mais somente assunto hermético, inatingível e restrito a rodas de cientistas - nem de aparecer ao leigo apenas em filmes de ficção. "O cérebro ainda é prisioneiro do corpo humano. Mas vivemos um momento em que é possível pensar que irá conseguir se libertar dos limites físicos impostos por esse corpo", anunciou. Exibiu então no telão imagens de linhas horizontais irregulares, com cores diferentes, que subiam e desciam, representando uma tempestade cerebral - ou seja, os disparos elétricos feitos por neurônios diante de um estímulo e registrados por computador. "Essa é a fotografia de um pensamento de cem células de um primata, durante dez segundos", explicou. Em seguida, ouviu-se na tenda um som muito parecido com o que o filho de Nicolelis classificou de "pipoca estourando enquanto se ouve uma emissora de rádio AM mal sintonizada". Naquele instante, pareceu-me também semelhante aos chiados e ruídos produzidos por uma televisão que transmite mais chuviscos que imagens. Com pompa e circunstância, estávamos sendo apresentados ao som de uma tempestade cerebral. "Todas as nossas ações, emoções, planos, angústias, medos e decisões se transformam em sons como esses", completou.
O neurocientista citou então estudos pioneiros liderados por ele que representam passos pioneiros, na fronteira do conhecimento mesmo, e importantíssimos nesse movimento de libertação do nosso cérebro de sua prisão corporal. Ele lembrou do trabalho feito em 2002 com a macaca Aurora, extremamente competitiva e fã confessa de vídeo-game - e também fissurada pelo bom suco de laranja brasileiro, como Nicolelis fez questão de ressaltar. Diante de uma tela, Aurora era desafiada por bolas brancas que apareciam repentinamente, em pontos diferentes e aleatórios. A tarefa dela era, com um joystick em mãos, "destruir" esses pontos luminosos (a cada vitória, ganhava uma gota do saboroso e desejado suco). Pequenos eletrodos conectavam neurônios da macaca a um computador, responsável por ler e decodificar os sinais enviados por aquelas tempestades cerebrais, repassando essas informações, em tempo real, a um braço mecânico, que se movimentava em sincronia com o braço de Aurora. "Jogavam o mesmo jogo", definiu o neurocientista. Em determinado momento, o joystick foi retirado dela e colocado na mão-robô. Mas as imagens das bolas continuavam sendo exibidas na tela. E Aurora insistia em explodi-las, agora não mais usando seus movimentos, mas a força do pensamento (aos céticos de plantão: falamos de evidências científicas, não de auto-ajuda). Quem continuava se movimentando era a prótese. "Acabou se transformando no terceiro braço de Aurora, enquanto ela usava os outros dois verdadeiros para dar conta de outras tarefas, como arranhar o pesquisador que tentava anotar os resultados do estudo", recordou Nicolelis.
Em 2008, foi a vez de ousar um pouco mais e de testar membros inferiores. No laboratório da Universidade de Duke, Carolina do Norte, nos Estados Unidos, a macaca Idoya caminhava em uma esteira, sempre incentivada por gotas de suco de laranja. Conectadas a ela, seguindo basicamente os mesmos princípios metodológicos usados no trabalho com Aurora, estavam pernas mecânicas, que se movimentavam a cada passo dado pela primata, novamente em tempo real e com sincronicidade. Detalhe fundamental: a prótese funcionava e respondia do outro lado do planeta, na Universidade de Kyoto, no Japão. Pela primeira vez, estabeleceu-se uma interface cérebro-máquina a partir de dois continentes. De repente, a esteira foi desligada. Mas Idoya, usando o pensamento, mas sem mover músculos, continuava produzindo as tempestades cerebrais responsáveis por seu caminhar (o que lhe garantia gotas de suco!). Do outro lado do globo, o robô acompanhava esses passos, movido somente pelo cérebro da primata.
Todos esses estudos pretendem em um futuro não tão distante oferecer a pessoas que tenham perdido os movimentos a capacidade de recuperá-los. O sonho possível de Nicolelis é idealizar exoesqueletos robóticos, espécies de carapaças que, graças ao comando livre das tempestades cerebrais, garantiriam a organismos com lesão de medula, por exemplo, que voltassem a mexer braços e pernas. "Esse equipamento será usado pela primeira vez no jogo de abertura da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, quando uma criança tetraplégica entrar em campo correndo junto com os jogadores da nossa seleção.... ". Nicolelis parou, a voz travou, embargada. Fez segundos de silêncio. Respirou fundo. Os aplausos efusivos da plateia o ajudaram a concluir o raciocínio. "... Essa criança dará o pontapé inicial da partida. Será um belo gol da ciência brasileira em benefício de toda a humanidade".
Cena impossível? Nicolelis citou como inspiração e resposta o gênio brasileiro Alberto Santos Dumont (1873-1932), inventor do avião. "Quando a mãe dele disse 'agora que você já é herdeiro de várias fazendas de café, o que vai fazer?', ele de imediato respondeu: 'agora eu vou voar'. Hoje, todos voamos, graças ao sonho de um brasileiro".
Depois da palestra, Nicolelis participou da sessão de autógrafos de "Muito além do nosso eu". Às 21h15, a fila já era bem grande. Muito provavelmente, não teve tempo de ouvir ou de ver o empate do Palmeiras (1 x 1) com o América mineiro, até aqui uma das piores equipes do campeonato brasileiro. Acho que Nicolelis não deve ter gostado do resultado. Já sobre a palestra na FLIP, pode ficar sossegado. Foi um sucesso.
Parabéns pelo belo texto.
ResponderExcluirNicolelis encanta o País com seu jeito singular.
Um cientista brasileiro que é do mundo.
Que venha o Nobel.
Sucesso!
Elogiar Nicolelis é mesmo natural, é certo, é algo que nós brasileiros nem pestanejamos ao fazer. Mas ter notícia de Nicolelis por meio de um texto desse, Chico, foi um deleite... Parabéns pelo modo poético de expresasr suas ideias, sua opinião e seu conhecimento de mundo.
ResponderExcluirPela primeira vez li você e ...virei fã!
Abraços de Maria de Lourdes Arruda Guerra. S. José dos Campos -SP
Francisco,
ResponderExcluirParabéns pelo post, muito bem escrito mesmo. Tive o privilégio de assistir a uma conferência do Miguel Nicolelis na terça-feira passada (05/07) aqui em Salvador, sobre esse mesmo assunto (neurociência), e lendo seu texto posso dizer que o mesmo retratou de forma muito fiel e inteligente o que foi transmitido pelo cientista.
Marígia, Maria de Lourdes e Cristiano, muito agradecido pelos comentários generosos. Poder ver e ouvir o professor Nicolelis, cientista brilhante e ser humano especial, representou de fato momento único. Melhor ainda poder compartilhar com vocês essa experiência. Abraços e visitem sempre o Blog. Chico
ResponderExcluirExcelente, gostei de ler o texto.
ResponderExcluirBom vc ter feito o post- eu não saberia repetir a palestra dele :)
ResponderExcluirUm orgulho termos o Nicolelis perto de nós.
Abs, Elianne
www.orientacaopsi.blogspot.com
Gostei muito do modo que conduziu o acontecimento. Nesse mês de agosto a revista Super Interessante tratou justamente do tema: O futuro do nosso corpo. Avanços da ciência que estão contribuindo para as modificações do corpo humano. Conta a história de um indivíduo que teve os nervos da mão - que se conectam ao cérebro - cortados. Hoje ele usa uma mão biônica que consegue fazer movimentos delicados através de sinais recebidos pelo cérebro. Havia mais um monte de novidades como força sobre-humana, ajuda a surdos e cegos, outro conceito dentário e de silicone. Acho que você iria gostar.
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