Lorenza é uma jornalista colombiana que participa da resistência à ditadura militar instalada na Argentina em março de 1976, quando a presidenta Isabelita Perón foi derrubada por um golpe de Estado liderado pelo general Jorge Videla. Em Buenos Aires, ao cumprir com afinco (e às vezes se envolvendo em perigosas trapalhadas) as tarefas indicadas pelo partido em que militava, a jovem conhece o dirigente trotskista Ramón, por quem se apaixona e com quem tem um filho, Mateo. Quando a separação do casal torna-se inevitável (quem toma a iniciativa do rompimento é Lorenza), o garoto, com três anos, é sequestrado pelo pai (episódio que logo no início da trama é chamado de "lance obscuro"), que não aceita o fim do casamento, mas que ao final parece render-se e aceitar o inexorável - e o garoto é então resgatado pela mãe, com quem vai viver em Bogotá. Não voltará a ver o pai até os 16 anos, quando cheio de coragem (mas também atormentado pelas dúvidas) decide retornar a Buenos Aires disposto a reencontrar-se com suas raízes - e a finalmente procurar Ramón.
Esse é o enredo que move "Heróis demais", livro recentemente lançado pela escritora colombiana Laura Restrepo (o oitavo da carreira), que esteve no Brasil para a divulgação da obra e participou de uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP. Tendo a crueldade da ditadura militar argentina e a entrega da militância política de resistência como contextos e cenários, o romance carrega forte conteúdo auto-biográfico, já que a própria Laura reconhece, em entrevista publicada pelo jornal "O Estado de São Paulo", que "do ponto de vista pessoal, eu tinha uma conversa pendente com meu filho. Era tema delicado, sobre sua origem, sobre seu pai. Escrever foi uma forma de travar esse diálogo. Foi um processo bonito. Enquanto eu escrevia, ele terminava seu doutorado em literatura e começava seu primeiro romance, uma história juvenil chamada Épica Patética, sobre um adolescente que quer crer num mundo heroico enquanto a realidade se impõe. Conversando pela literatura, e não diretamente, pudemos digerir um tema difícil".
O fio delicado a conduzir a narrativa é justamente o diálogo intenso entre mãe e filho - que não raro assume ares de interrogatório. Mateo pergunta, Lorenza responde, em um jogo de contínua revelação das histórias. Há momentos em que o filho aperta, incisivo - "não foi assim que você contou em outra ocasião, você não tinha dito isso, está faltando um pedaço desse episódio". É o típico conflito de gerações - "uma convencida de seus atos e outra que a questiona", como ressalta a autora na entrevista citada. Mateo também não aceita - e chega a explodir em cólera - a complacência, a admiração e a reverência que Lorenza ainda é capaz de manifestar pelo ex-companheiro e a figura idealizada que acaba por construir de Ramón, que surge nas palavras da jornalista invariavelmente como um herói (é demais para o adolescente). O jovem quer conhecer o pai, não o militante; deseja resgatar o ser humano, com acertos e erros. Não quer travar contato com uma figura que oprima, mas que liberte. "Há uma tensão ambígua entre Lorenza e Mateo, feita de culpas, desculpas, acusações, mas também de compreensões e de um afeto enorme, que muitas vezes leva a cenas tristemente cômicas", sugere o texto publicado pelo blog da editora Companhia das Letras.
Laura Restrepo é hábil e precisa na descrição de episódios importantes que marcaram a sangrenta ditadura argentina (saldo de 30 mil mortos e desaparecidos, vôos da morte que despejavam os militantes no rio da Prata ou no mar, filhos de opositores assassinados pelo regime que acabaram sendo adotados por torturadores algozes). Vem então à tona a Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina e vencida pela seleção anfitriã (conquista largamente usada pelos generais para calar e humilhar a oposição, reforçando o terror). É resgatada também a Guerra das Malvinas, em 1982, quando o país vizinho foi esmagado pela Inglaterra, e ainda assim o presidente-ditador de plantão, general Leopoldo Galtieri, nas lembranças ficcionais-biográficas de Laura/Lorenza, chegou a sair bêbado na sacada da Casa Rosada para exaltar o espírito nacionalista e vitorioso do povo argentino. Enquanto isso, na Praça de Maio, a multidão em lágrimas gritava "vai se acabar a ditadura militar". Muito distantes dali, resolvendo o "lance obscuro", Lorenza e Ramón comemoravam - e se despediam.
Toca a alma do leitor a angústia da mãe ao saber que está grávida e que terá de proteger o filho e cuidar dele em plena clandestinidade. "Como íamos cuidar de você, Mateo, se tínhamos feito uma promessa de nós mesmos não nos cuidarmos? Como defender tua vida sem saber quanto as nossas durariam? Teu nascimento ia ser um acontecimento contra toda evidência, uma urgência e uma reivindicação da vida diante da engrenagem de morte que nos rodeava", diz a mãe ao filho, em momento crucial da narrativa. Por todos esses descaminhos, o destino estava selado, e o amor do casal tinha prazo de validade - o tempo da militância e da resistência. O tempo da luta. A separação vem com o fim da ditadura.
Longe de ser panfletário, como reforça o blog da Companhia, e costurando com maestria várias cenas e conversas que acontecem em tempos diferentes, o livro lida com "um assunto delicado e doloroso, mas que Laura Restrepo aborda com extraordinária leveza e bom humor. Com uma linguagem perfeitamente coloquial, mas que não dispensa o rigor técnico, o romance se estrutura numa montagem de tempos e cenários que faz lembrar Mario Vargas Llosa, deixando o leitor à espera do desfecho do drama até os últimos parágrafos, como numa boa história policial".
É leitura mais do que recomendável. Só lamento mesmo não ter conseguido ver a palestra de Laura Restrepo na FLIP...
Temi que o texto revelasse demais o livro e fizesse a leitura perder a graça, mas foi exatamente o oposto... Thanx, baby!
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