O documentarista João Moreira Salles conheceu o matemático Artur Ávila, então com 30 anos, em maio de 2009, ao ler uma reportagem publicada pelo jornal O Globo sobre o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), o mais importante do Brasil nessa área, e onde o jovem desenvolve suas pesquisas. Artur é daquelas mentes raras, inquietas, curiosas. Brilhante. Concluiu o ensino médio junto com o mestrado. Começou o doutorado com 18 anos. Pode ser chamado de gênio - e a matéria do jornal carioca chamava justamente a atenção para o fato de o garoto prodígio ser um dos fortes candidatos a conquistar a Medalha Fields, uma espécie de Prêmio Nobel da Matemática, porém ainda mais concorrido, pois oferecido apenas de quatro em quatro anos. Impressionado com a história, e fã confesso da ciência, para ele muito mal tratada no Brasil, ao contrário do que acontece com as Artes, João, sem fazer muitos cálculos, foi rápido na formulação da equação jornalística. Decidiu fazer um perfil de Artur para a revista Piauí, que ele criou e dirige e que se transformou na principal guardiã nacional da melhor tradição do jornalismo literário.
O primeiro contato aconteceu por e-mail. João apresentou-se. Artur aceitou a proposta. Seguiram-se então onze longos encontros, alguns com até sete horas de duração, durante cerca de sete meses, para que João pudesse mergulhar no universo do perfilado. "No primeiro papo, você só levanta dúvidas, são só enigmas. É preciso voltar e buscar as respostas, várias vezes", contou João, em palestra realizada no Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, organizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Além das conversas, o documentarista-repórter embrenhou-se com volúpia e afinco pelas leituras a respeito da história da Matemática, seus princípios e dilemas, a forma como sistematiza ideias e problemas, travando contato ainda com explicações matemáticas para leigos, além de procurar suporte conceitual de outros pesquisadores de referência na área. Não demorou muito para perceber que estava diante de um problema - desta feita jornalístico - considerável.
Já no início do processo de apuração, ao perguntar a Artur "o que você faz?", João ouviu do jovem: "estudo estrutura de operadores, entende? É uma matriz infinita e simétrica. E tem um espectro". Percebeu que fazer o perfil seria uma tarefa bem mais complexa do que havia imaginado. "Não entendia absolutamente nada daquilo, era incompreensível para mim". E não era apenas para ele. Como os estudos feitos por Artur estão na chamada fronteira do conhecimento, João conta que o jovem brasileiro talvez tenha 10 ou 15 interlocutores no mundo inteiro capazes de decifrar o que ele publica. "É um campo completamente opaco à compreensão até mesmo de especialistas".
Como escrever aquela história tão hermética e permeada por conceitos indecifráveis? Foi quando João teve um insight e começou a ler ainda mais sobre temas que tangenciavam a Matemática. E descobriu elementos que marcam essa área do saber e que foram então usados pelo repórter para costurar e tecer sua história.
João identificou em primeiro lugar que a Matemática é marcada pela forte presença da intuição - "aquilo que se sabe sem saber, a insinuação, o que esconde o enunciado". Percebeu também que a beleza é um instrumento fundamental para os matemáticos estabelecerem descobertas ou invenções. "A beleza seria a intuição de uma totalidade, quando duas coisas aparentemente diferentes acabam se encontrando e você percebe que compõem uma totalidade", reforça. Ficou fascinado ainda com o fato de a Matemática lidar com objetos que não envelhecem - ao contrário de outras ciências, que seguem a lógica da sucessão de verdades provisórias, funciona a partir do acúmulo de conhecimentos. "O Teorema de Pitágoras vale hoje o que valia há três mil anos". Por fim, João encantou-se com a inutilidade matemática, em um mundo marcado pela exigência utilitarista, pela lógica da mercadoria e do consumo, pela preocupação com a aplicação imediata do conhecimento. "O Artur faz, sem se perguntar qual a serventia daquilo que ele estuda".
Estavam dados os alicerces narrativos do perfil - João decidiu escrever não sobre os conceitos construídos por Artur, mas fincou pé na disposição criativa de revelar o processo a partir do qual o matemático chega às teorias, a capacidade que o jovem prodígio tem de juntar e conectar o conhecimento acumulado. "Era para mim impossível explicar a natureza do trabalho do Artur. Mas eu podia entender a Matemática de uma forma diferente, descrever como ele operava e trabalhava, como funciona a cabeça de um pesquisador da área, como ele faz as suas descobertas", define. As perguntas importantes passaram a ser outras: "você faz contas? Pensa com imagens ou com palavras? As ideias vêm espontaneamente? Demoram? O que precisa acontecer para você ter uma ideia?". Ao costurar esse caminho narrativo, João diz que o perfil "Artur tem um problema" nasceu e transformou-se na tentativa de explicar o mistério da invenção matemática. "É sobretudo uma discussão a respeito da maneira como ele opera mentalmente, sem falar do conteúdo", define.
E foi assim, com muita transpiração e um pouco também de inspiração, que João Moreira Salles solucionou seu problema jornalístico e escreveu um de seus mais brilhantes perfis - publicado em janeiro de 2010 pela revista Piauí, com quase dez mil palavras e mais de 55 mil toques. Ao final do trabalho, João recebeu de Artur um e-mail que dizia sobre a matéria: "você foi preciso". Em linguagem matemática: sinal evidente de que tudo tinha dado certo. Em linguagem jornalística: o perfil é de fato uma aula da boa narrativa literária. Como queríamos demonstrar.
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Clique aqui para ler na íntegra "Artur tem um problema".
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