sexta-feira, 1 de julho de 2011

WIKILEAKS? O JORNALISMO NÃO SERÁ MAIS O MESMO

Era uma vez um pequeno país, uma ilha localizada bem próxima do pólo norte, com clima gelado e pouco mais de 300 mil habitantes, e para quem o mundo dedicava pouquíssimas atenções. Até que as cinzas expelidas por um vulcão lá localizado, de nome quase impronunciável (Eyjafjallajokull), foram responsáveis por paralisar praticamente todo o tráfego aéreo europeu, entre março e abril de 2010. E também até que a gravíssima crise financeira que assolou o país pouco antes, em 2008, levasse a ilha à bancarrota. O sistema bancário entrou em colapso em três dias. O governo teve de recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que estabeleceu como solução a velha cartilha neoliberal. A população enraivecida tomou as ruas em protestos e, por conta da intensidade do desastre, a Islândia foi literalmente à falência. E transformou-se finalmente em manchete jornalística planetária.

"Achávamos que vivíamos em uma ilha de fantasias, que éramos muito inteligentes e que conseguíamos gerar dinheiro do nada. Aquele colapso espetacular, fulminante e em escala assustadora fez com que a população passasse a cobrar respostas dos jornalistas. Por que não nos avisaram? Por que não nos alertaram? Tivemos que rapidamente nos tornar experts em finanças. O problema é que, embora falidos, os bancos continuavam protegidos por leis de sigilo. Foi quando entrou em cena o jornalismo de investigação, quando começamos a perguntar, a apurar, a mobilizar nossas fontes", contou o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson, em palestra realizada na manhã desta sexta-feira, 1º de julho, no 6º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Depois de um trabalho de apuração que consumiu quase quatro meses, Hrafnsson tinha uma história que revelava práticas escusas de empresários, esquemas fraudulentos de enormes proporções e a constatação de que os tomadores de empréstimos na Islândia tinham sido os próprios donos dos bancos - os responsáveis, portanto, por quebrar o país. O canal privado para quem ele trabalhava, no entanto, não só se recusou a veicular a reportagem como demitiu o jornalista e toda a equipe dele, alegando que tinham violado sigilos garantidos legalmente.

Hrafnsson passou a trabalhar para a emissora estatal do país. E foi lá que recebeu uma valiosa dica: "pesquise no site do Wikileaks". Ele confessa: nunca tinha ouvido falar sobre o tal site. Mas fez o dever de casa. E encontrou uma enorme quantidade de informações valiosas sobre as operações irregulares do sistema financeiro islandês, incluindo as listas de empréstimos feitos pelos bancos. Desta feita, a reportagem tornou-se pública. "Era uma história que ninguém conhecia", relembra. Naturalmente, Hrafnsson foi acusado de "sabotagem" pelos poderosos de plantão, foi perseguido e processado. Mas não arredou pé. "O Wikileaks foi fundamental para ajudar a contar para a população os escombros daquela crise econômica", reforçou.

Para ele, o episódio da Islândia é apenas uma amostra pequena do potencial transformador do Wikileaks. Hrafnsson citou ainda a divulgação, em outubro do ano passado, dos cerca de 400 mil documentos sobre a Guerra do Iraque, que definitivamente provaram (se é que havia dúvidas...) a farsa que os Estados Unidos tinham construído para invadir o país do Oriente Médio. "Os vazamentos confirmaram o que já sabíamos. Não havia armas de destruição em massa, não havia Al Qaeda. Os norte-americanos apenas desejavam derrubar o governo de Saddam Hussein".

O jornalista islandês fez menção também aos comunicados e telegramas trocados entre governos e diplomatas, escancarando bastidores das relações internacionais, e tornados públicos pelo Wikileaks, no final do ano passado. Para ele, foi uma cobertura bem sucedida porque se organizou a partir de uma dinâmica colaborativa - as informações foram simultaneamente divulgadas pelo New York Times, The Guardian, Der Spiegel, El Pais, Le Monde, Channel 4 da Inglaterra e Al Jazeera. "Foi uma parceria jornalística em escala jamais vista. Porque não adianta apenas divulgar documentos. É preciso maximizar os impactos", definiu.

Importante lembrar que o Brasil teve participação ativa nessa divulgação. Por aqui, num primeiro momento com exclusividade, e graças ao trabalho da jornalista Natalia Viana e dos contatos que ela estabeleceu com o Wikileaks, a Folha de São Paulo divulgou telegramas relativos às especificidades da diplomacia brasileira. Foi quando ficamos sabendo por exemplo que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, havia dito ao embaixador dos EUA no Brasil, Clifford Sobel, que o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, Samuel Guimarães, "odiava os Estados Unidos". Num segundo momento, ainda no final de 2010, a Folha trabalhou em parceria com O Globo. "Mas, pela própria dinâmica da produção jornalística, os documentos começaram a perder força, as notícias rarearam", disse Natalia, também na palestra realizada no Congresso da Abraji.

Foi preciso idealizar uma nova estratégia de publicização dos documentos levantados pelo Wikileaks - a parceria com os blogueiros progressistas. Vieram à tona as declarações de Andrea Matarazzo sobre as relações do governador Geraldo Alckmin com a Opus Dei e as avaliações de representantes norte-americanos sobre as campanhas eleitorais de 2010. "Mas os blogueiros também começaram a ter dificuldades, porque trabalham sozinhos, não conseguem manter equipes", destacou a jornalista brasileira. 

Em uma terceira etapa então, Natalia concebeu, junto com duas outras colegas jornalistas (Marina Amaral e Tatiana Merlino), a criação da Pública, agência de reportagem e jornalismo investigativo que está divulgando, durante esta semana, cinco matérias por dia tendo como ponto de partida informações reunidas pelo Wikileaks. Os textos já foram inclusive reproduzidos e repercutidos por veículos da grande imprensa. Graças a essa iniciativa, sabemos agora que o ex-governador José Serra pediu ajuda ao governo norte-americano para enfrentar o Primeiro Comando da Capital (PCC). "Estão chegando ao noticiário informações sobre doações feitas pela polícia dos EUA às polícias do Brasil", completou Natalia.

Para ela, esse trabalho colaborativo e não competitivo permite que o público tenha acesso a várias versões distintas sobre o mesmo fato, o que garante pluralidade de narrativas - princípio do bom jornalismo. "O trabalho de investigação do Wikileaks também incentiva a sociedade a discutir o direito que temos de saber o que acontece nos meandros dos governos", reforçou a jornalista.

Hrafnsson, que atualmente trabalha para o Wikileaks, diz que o site criado por Julian Assange tem o mérito de voltar a desafiar os repórteres, que se tornam mais curiosos e voltam a fazer as perguntas que devem ser feitas. Ele não tem dúvidas: estamos vivendo uma revolução no jornalismo, com fim de segredos, modelo colaborativo, mídia digital pautando veículos tradicionais, boas histórias e narrativas mais sofisticadas e contextualizadas ajudando a disseminar ideais de liberdade - para o jornalista islandês, o Wikileaks ajudou inclusive a fomentar a Primavera Árabe.

"Vamos dar internet para as pessoas, não armas", defendeu. Para ele, essa é a mensagem que fica. E encerrou sua fala na palestra citando o escritor francês Victor Hugo, que escreveu que "nada é tão poderoso como uma ideia que chega na hora certa". Para Hrafnsson, o Wikileaks é essa boa ideia, no momento preciso.

2 comentários:

  1. Nada como histórias bem apuradas e bem contadas. Triplamente aqui. A única dúvida é: como se pronuncia o nome do repórter islandês?

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  2. A internet tem sido um importante canal para que o grande público tenha acesso a fatos que de outro modo permaneceriam escondidos. Que mais e mais pessoas tenham acesso à rede, e que os "outsiders", blogueiros sujos e afins, que hoje colaboram para que se desvendem as imoralidades de Estado mantenham os olhos sempre abertos: a reação dos estabelecidos virá, com certeza!

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