terça-feira, 31 de julho de 2012

NO MENSALÃO, JORNALISMO CONDENA. MAS NÃO EXPLICA.





Na disciplina "Teorias do Jornalismo", procuro desenvolver com os alunos, durante o semestre, um percurso intelectual e conceitual que estabelece o diálogo com vários pensadores e autores da área, convergindo para a elaboração de uma possível definição sobre essa forma específica de conhecimento. Tal linha de raciocínio nos permite compreender o jornalismo como uma narrativa, o principal contador de histórias da contemporaneidade, que tem na singularidade (traduzida por meio de olhares específicos e da diversidade de interpretações e de visões de mundo) o seu mais representativo patrimônio, devendo, em sociedades democráticas, estabelecer relações estreitas com a cidadania, de forma a construir a melhor versão possível da realidade, para finalmente garantir o direito à informação. 

O conceito não é, obviamente, definição única, absoluta, a esgotar o assunto, simples de ser transportada para a prática cotidiana - nem nasce ao acaso, por geração espontânea. Consolida-se a partir de reflexões como as do professor Ciro Marcondes Filho, que no livro "Ser jornalista" (editora Paulus, 2009) escreve que "para chegar de fato a ser jornalista, no sentido estrito, (o sujeito) terá, um dia, atingido a consciência de que seu trabalho é pequenino, como o de um varredor de rua, de um entregador de gás, de um cobrador de ônibus. E que não há trabalhos grandes, apenas trabalhos honestos. E sinceros. E repassar aquilo que se viu, ouviu é de especial delicadeza se o outro, aquele que recebeu, pôde se emocionar, se sensibilizar, se entristecer ou se animar, em suma, se a mensagem proferida teve a qualidade de ver o outro como um ser humano, tão digno de atenção e respeito como ele mesmo, que tanta porrada teve que tomar na vida para aprender esta singela lição. Que não há nada mais importante que o anonimato de um trabalho decente". 

Faz sentido também resgatar contribuições da professora Liriam Sponholz, na obra "Jornalismo, conhecimento e objetividade" (editora Insular, 2009), em que a autora sugere que "o que está em jogo é o papel do jornalismo como mediador da realidade. Objetividade diz respeito à correlação entre a realidade social e a realidade midiática. Ou seja, se aquilo que está nos jornais tem a ver com o que aconteceu, pode-se falar de objetividade. Se jornalistas quiserem produzir notícias e reportagens que estejam em concordância com a realidade, eles precisam observá-la. Trocando em miúdos: quem quer noticiar de forma objetiva precisa investigar. Mais do que isso: a sua observação tem que obedecer regras que ajudem a evitar uma percepção falsa. A investigação precisa seguir normas profissionais que tenham como objetivo a produção de notícias e reportagens com um alto grau de correlação com a realidade social".

Avançando um pouco mais, temos em "Teoria do Jornalismo" (editora Contexto, 2005), de Felipe Pena, severas críticas ao denuncismo que contamina nossa produção noticiosa. Lembra com propriedade o autor que "na busca incessante pelo furo, repórteres antecipam-se ao trabalho do judiciário e acabam produzindo julgamentos públicos. Isso não é jornalismo investigativo. Na maioria das vezes, as reportagens apenas reproduzem declarações de pessoas interessadas nas denúncias e se escondem em uma pretensa objetividade, ouvindo a defesa dos acusados. Só que a denúncia toma corpo e, mesmo que as investigações revelem que ela é mentirosa, a informação continua no imaginário do público. Por isso, é bom deixar bem claro: jornalismo investigativo não se baseia em denúncias, apenas começa com elas. A base mesmo é uma sólida pesquisa por parte do repórter". 

Quem dera nossos principais nobres veículos jornalísticos, os ditos "de referência", estivessem minimamente dispostos a observar tais preceitos - e a colocá-los em prática durante o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), que começa nesta quinta-feira, 02 de agosto. Lamentavelmente, o que se anuncia é mais um show midiático, sofisticadamente tecido por interesses políticos (disputas eleitorais e de poder) e econômicos (audiências) nem tão escusos assim. Um dos mais complexos episódios de nossa história recente acabou se transformando em pílulas simplistas e fragmentadas, supostamente informativas, oferecidas em doses homeopáticas, no café da manhã ou nos finais de noite, de maneira a não construir conjunto harmônico de significados. Pouca explicação, muita excitação e histeria coletiva - eis a diretriz a pautar até aqui a cobertura do acontecimento. E, assim como se deu em crimes e processos judiciais anteriores - alguém consegue esquecer o folhetim policialesco "casal Nardoni"? -, o veredito midiático já foi estabelecido, muito antes mesmo de os ministros togados proferirem os votos deles. 

Caso os culpados já sentenciados pelo jornalismo não sejam todos, todinhos punidos pela Corte com penas máximas, a tendência é que se consolide na opinião pública a percepção (ou seria convicção?) senso comum de que "somos mesmo o país da impunidade, da farta distribuição de pizzas, dos acordos espúrios e do vale tudo. Só aqui mesmo. O Brasil não é sério". Em função do consenso forjado pelas narrativas midiáticas reverberadas até aqui, o único resultado possível e aceitável será a condenação ampla, geral e irrestrita, de todos os réus. A partir daí, atira-se o STF numa panela de pressão, em fogo altíssimo. E o Supremo terá portanto sido omisso e covarde, conivente, se não der conta do clamor popular. O roteiro está sendo escrito antes de o documentário ter sido gravado.

É fato que as leis e a justiça não estão divorciadas de tensas e intensas relações estalecidas com contextos históricos, com diferentes forças sociais, não acontecem para além da vida cotidiana, não constituem universo sem conexões com tantos outros. Mas parece evidente também que os ministros não podem entrar no plenário do STF com as facas nos dentes, a prometer sangue, guiados pelas narrativas e constrangimentos da mídia, dispostos em primeira instância a dar satisfações aos urros que ecoam nas ruas, apenas para ficar bem na fita, com as popularidades em alta. Ou estaríamos então ainda vivendo sob os auspícios do pão e circo do Coliseu romano, com os césares na tribuna a erguer ou indicar polegares para baixo, a partir das catarses, palmas e excitações da platéia ensandecida nas arquibancadas. 

Em artigo publicado na Folha de São Paulo desta terça-feira, 31 de julho, o jornalista Jânio de Freitas (anos-luz de ser um esquerdinha radical ou governista de carteirinha) avalia que "o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal é desnecessário. Entre a insinuação mal disfarçada e a condenação explícita, a massa de reportagens e comentários lançados agora, sobre o mensalão, contém uma evidência condenatória que equivale à dispensa dos magistrados e das leis que devem servir os seus saberes. Os trabalhos jornalísticos com esforço de equilíbrio estão em minoria quase comovente".

Manifesto em alto e bom som, antes que uma voz acusatória se levante para também me condenar por ser conivente com  caixa dois, desvio de recursos públicos, financiamentos irregulares de campanhas (mensalão também foi nome fantasia incentivado pela mídia, a grudar no imaginário popular): não defendo a impunidade. Mas também não sou partidário da execração antecipada e do massacre público anunciados. Entre as duas pontas, há várias situações - e sentenças - intermediárias plausíveis e possíveis. É por esses meandros que o STF e o jornalismo deveriam transitar. 

Não cobro a objetividade perfeita, técnica e isenta. Essa falsa proposição de neutralidade coloca-se para além da condição humana. O que espero dos ministros, talvez ingenuamente, é que possam julgar com sensatez, responsabilidade e equilíbrio, dispostos a ouvir os argumentos e a considerar os contraditórios. Esse mesmo equilíbrio transparente e honesto deveria pautar (aqui, sou mais uma vez inocente) a cobertura jornalística, sempre em busca de versões plurais, bem apuradas, rigorosamente checadas e documentadas, a dar espaço a vozes dissonantes (sem monólogos agressivos e autoritários), com intuito de articular falas e de costurar sujeitos capazes de contextualizar e de explicar, e não de confundir, estilhaçar e esconder (quando então torna-se mais fácil sustentar teses previamente concebidas). Para garantir o direito à informação, seria preciso escapar dos debates viciados e investir em balões renovados de oxigênio de compreensão.

Gostaria de ser otimista. A realidade, no entanto, é nada alvissareira. Minha sensação é que o show espetacularizado e as narrativas instrumentalizadas e enviesadas prevalecerão. 

A propósito, uma honesta provocação: mesmo com a avalanche de matérias até aqui publicadas sobre o tema, quem consegue, com detalhes e precisão, explicar o que foi o mensalão, como se construiu e funcionou o esquema, como atuaram seus operadores? A narrativa faz sentido? Tem coesão e coerência? Há começo, meio e fim? Engasgou? Pois então...

Que comece (ou continue) o espetáculo.

2 comentários:

  1. Só de ver os seus "sites companheiros" (carta maior, luis nassif, paulo henrique amorim, revista carta capital etc.) já dá para vislumbrar seu viés: por trás da sua máscara isentista, esconde-se, na verdade, um militante petista. Que descaradinho, não?

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