Na disciplina "Teorias do Jornalismo", procuro
desenvolver com os alunos, durante o semestre, um percurso intelectual e conceitual que
estabelece o diálogo com vários pensadores e autores da área, convergindo para a elaboração de uma possível definição sobre essa forma específica de
conhecimento. Tal linha de raciocínio nos permite compreender o jornalismo como uma narrativa, o principal contador
de histórias da contemporaneidade, que tem na singularidade (traduzida por meio
de olhares específicos e da diversidade de interpretações e de visões de mundo) o seu mais
representativo patrimônio, devendo, em sociedades democráticas, estabelecer
relações estreitas com a cidadania, de forma a construir a melhor versão
possível da realidade, para finalmente garantir o direito à informação.
O conceito não é, obviamente, definição única, absoluta, a esgotar o assunto,
simples de ser transportada para a prática cotidiana - nem nasce ao acaso, por
geração espontânea. Consolida-se a partir de reflexões como as do professor
Ciro Marcondes Filho, que no livro "Ser jornalista" (editora Paulus, 2009) escreve que
"para chegar de fato a ser jornalista, no sentido estrito, (o sujeito)
terá, um dia, atingido a consciência de que seu trabalho é pequenino, como o de
um varredor de rua, de um entregador de gás, de um cobrador de ônibus. E que
não há trabalhos grandes, apenas trabalhos honestos. E sinceros. E repassar
aquilo que se viu, ouviu é de especial delicadeza se o outro, aquele que
recebeu, pôde se emocionar, se sensibilizar, se entristecer ou se animar, em
suma, se a mensagem proferida teve a qualidade de ver o outro como um ser
humano, tão digno de atenção e respeito como ele mesmo, que tanta porrada teve
que tomar na vida para aprender esta singela lição. Que não há nada mais
importante que o anonimato de um trabalho decente".
Faz sentido também resgatar contribuições da professora Liriam
Sponholz, na obra "Jornalismo, conhecimento e objetividade" (editora Insular, 2009), em que a
autora sugere que "o
que está em jogo é o papel do jornalismo como mediador da realidade. Objetividade
diz respeito à correlação entre a realidade social e a realidade midiática. Ou
seja, se aquilo que está nos jornais tem a ver com o que aconteceu, pode-se
falar de objetividade. Se jornalistas quiserem produzir notícias e reportagens
que estejam em concordância com a realidade, eles precisam observá-la. Trocando
em miúdos: quem quer noticiar de forma objetiva precisa investigar. Mais do que
isso: a sua observação tem que obedecer regras que ajudem a evitar uma
percepção falsa. A investigação precisa seguir normas profissionais que tenham
como objetivo a produção de notícias e reportagens com um alto grau de
correlação com a realidade social".
Avançando um pouco mais, temos em "Teoria do
Jornalismo" (editora Contexto, 2005), de Felipe Pena, severas críticas ao denuncismo que contamina
nossa produção noticiosa. Lembra com propriedade o autor que "na busca
incessante pelo furo, repórteres antecipam-se ao trabalho do judiciário e
acabam produzindo julgamentos públicos. Isso não é jornalismo investigativo. Na
maioria das vezes, as reportagens apenas reproduzem declarações de pessoas
interessadas nas denúncias e se escondem em uma pretensa objetividade, ouvindo
a defesa dos acusados. Só que a denúncia toma corpo e, mesmo que as
investigações revelem que ela é mentirosa, a informação continua no imaginário
do público. Por isso, é bom deixar bem claro: jornalismo investigativo não se
baseia em denúncias, apenas começa com elas. A base mesmo é uma sólida pesquisa
por parte do repórter".
Quem dera nossos principais nobres veículos jornalísticos, os ditos "de referência", estivessem minimamente dispostos a observar tais preceitos - e a colocá-los em
prática durante o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), que
começa nesta quinta-feira, 02 de agosto. Lamentavelmente, o que se anuncia é
mais um show midiático, sofisticadamente tecido por interesses políticos (disputas eleitorais e de poder) e econômicos (audiências) nem tão escusos
assim. Um dos mais complexos episódios de nossa história recente acabou se transformando em pílulas simplistas e fragmentadas, supostamente informativas, oferecidas em doses homeopáticas, no café da manhã ou nos finais de noite, de maneira a não construir conjunto harmônico de significados. Pouca explicação, muita excitação e histeria coletiva - eis a diretriz a
pautar até aqui a cobertura do acontecimento. E, assim como se deu em crimes e processos
judiciais anteriores - alguém consegue esquecer o folhetim policialesco "casal
Nardoni"? -, o veredito midiático já foi estabelecido, muito antes mesmo
de os ministros togados proferirem os votos deles.
Caso os culpados já sentenciados pelo jornalismo não sejam todos,
todinhos punidos pela Corte com penas máximas, a tendência é que se consolide
na opinião pública a percepção (ou seria convicção?) senso comum de que
"somos mesmo o país da impunidade, da farta distribuição de pizzas, dos
acordos espúrios e do vale tudo. Só aqui mesmo. O Brasil não é sério". Em função do consenso
forjado pelas narrativas midiáticas reverberadas até aqui, o único resultado
possível e aceitável será a condenação ampla, geral e irrestrita, de todos os
réus. A partir daí, atira-se o STF numa panela de pressão, em fogo altíssimo. E o Supremo terá portanto sido omisso
e covarde, conivente, se não der conta do clamor popular. O roteiro está sendo escrito antes de o documentário ter sido gravado.
É fato que as leis e a justiça não estão divorciadas de tensas e
intensas relações estalecidas com contextos históricos, com diferentes forças
sociais, não acontecem para além da vida cotidiana, não constituem universo sem conexões com tantos outros. Mas parece evidente também
que os ministros não podem entrar no plenário do STF com as facas nos dentes, a prometer sangue, guiados pelas narrativas e constrangimentos da mídia, dispostos em primeira
instância a dar satisfações aos urros que ecoam nas ruas, apenas para ficar bem
na fita, com as popularidades em alta. Ou estaríamos então ainda vivendo sob os auspícios do pão e circo do Coliseu romano,
com os césares na tribuna a erguer ou indicar polegares para baixo, a partir das catarses,
palmas e excitações da platéia ensandecida nas arquibancadas.
Em artigo publicado na Folha de São Paulo desta terça-feira, 31 de
julho, o jornalista Jânio de Freitas (anos-luz de ser um esquerdinha radical ou
governista de carteirinha) avalia que "o julgamento do mensalão no Supremo
Tribunal Federal é desnecessário. Entre a insinuação mal disfarçada e a
condenação explícita, a massa de reportagens e comentários lançados agora,
sobre o mensalão, contém uma evidência condenatória que equivale à dispensa dos
magistrados e das leis que devem servir os seus saberes. Os trabalhos
jornalísticos com esforço de equilíbrio estão em minoria quase comovente".
Manifesto em alto e bom som, antes que uma voz acusatória se
levante para também me condenar por ser conivente com caixa dois, desvio
de recursos públicos, financiamentos irregulares de campanhas (mensalão também
foi nome fantasia incentivado pela mídia, a grudar no imaginário popular): não defendo a impunidade.
Mas também não sou partidário da execração antecipada e do massacre público
anunciados. Entre as duas pontas, há várias situações - e sentenças -
intermediárias plausíveis e possíveis. É por esses meandros que o STF e o
jornalismo deveriam transitar.
Não cobro a objetividade perfeita, técnica e isenta. Essa falsa
proposição de neutralidade coloca-se para além da condição humana. O que espero
dos ministros, talvez ingenuamente, é que possam julgar com sensatez, responsabilidade e
equilíbrio, dispostos a ouvir os argumentos e a considerar os contraditórios.
Esse mesmo equilíbrio transparente e honesto deveria pautar (aqui, sou mais uma
vez inocente) a cobertura jornalística, sempre em busca de versões plurais, bem apuradas, rigorosamente checadas e documentadas, a dar espaço a vozes
dissonantes (sem monólogos agressivos e autoritários), com intuito de articular falas e de
costurar sujeitos capazes de contextualizar e de explicar, e não de
confundir, estilhaçar e esconder (quando então torna-se mais fácil sustentar teses previamente
concebidas). Para garantir o direito à informação, seria preciso escapar dos debates viciados e investir em balões renovados de oxigênio de compreensão.
Gostaria de ser otimista. A realidade, no entanto, é nada
alvissareira. Minha sensação é que o show espetacularizado e as narrativas
instrumentalizadas e enviesadas prevalecerão.
A propósito, uma honesta
provocação: mesmo com a avalanche de matérias até aqui publicadas sobre o tema,
quem consegue, com detalhes e precisão, explicar o que foi o mensalão, como se
construiu e funcionou o esquema, como atuaram seus operadores? A narrativa faz
sentido? Tem coesão e coerência? Há começo, meio e fim? Engasgou? Pois então...
Que comece (ou continue) o espetáculo.
Quando a elegância encontra a lucidez.
ResponderExcluirSó de ver os seus "sites companheiros" (carta maior, luis nassif, paulo henrique amorim, revista carta capital etc.) já dá para vislumbrar seu viés: por trás da sua máscara isentista, esconde-se, na verdade, um militante petista. Que descaradinho, não?
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