McEwan (esq.) e Jennifer falaram sobre construção de personagens e a relevância da pesquisa. A mediação foi de Arthur Dapieve (dir.) Foto - Divulgação FLIP |
Dois dos mais importantes autores em língua inglesa de nosso tempo,
porque recorrem às múltiplas vozes narrativas para lidar, com singularidades,
com uma agonia ancestral e universal, a incomodar o ser humano desde que nos
reconhecemos como tal: a passagem rápida e provocante do tempo, sempre a nos
desafiar e nos confrontar com nossa própria finitude, sem que jamais possamos
controlar essa dimensão. Foi recorrendo a esses atributos literários que o jornalista e
crítico musical de "O Globo", Arthur Dapieve, apresentou os
escritores Ian McEwan, nascido na Inglaterra e autor de obras como
"Reparação" e "Serena", que acaba de ser lançado no Brasil,
e Jennifer Egan, estadunidense autora de "A visita cruel do tempo",
que venceu o Pulitzer de Ficção de 2011. Os dois participaram da mesa
"Pelos olhos do outro", no início da tarde deste sábado, 7 de julho,
na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Travaram um diálogo
inteligente, instigante e sedutor sobre processos criativos e a respeito da importância do
romance em tempos de virtualidades e redes sociais.
Provocados pelo mediador, começaram contando como
constroem seus personagens. Ian revelou que suas escolhas não são conscientes.
Ele disse que embarca como um sonâmbulo na história, como se estivesse a pintar
um primeiro traço do rosto, depois outro, mais um - e quanto mais avança no
desenho do corpo e das expressões, mais se obriga a buscar traços cada vez mais
coerentes e harmônicos. "Quando começo, não faço a menor ideia de como
ficarão meus personagens, não consigo imaginá-los em definitivo. Eles simplesmente
vão aparecendo", contou. Jennifer observou que procura sempre partir de uma atmosfera, de um espaço-tempo estabelecido, e garantiu que não escreve sobre a própria
vida, nem se inspira em pessoas que conhece. "O que busco são as
contradições e tento me imaginar nas cabeças de outras pessoas".
Os dois concordaram com aquilo que consideram ser
uma característica absolutamente fundamental e definidora do romance: nessa dinâmica criativa, é preciso
encarnar outra pessoa, outra voz narrativa. "Deixar-se absorver e abrir-se
a outras mentes. Estamos sempre e invariavelmente nos apoiando nos
outros", marcou Ian, insistindo nessa palavra: outros. "Somos
inventivos, ousados", completou Jennifer. Para eles, revelar as histórias
a partir dos olhares e das percepções de mundo de alguém que não é exatamente o
autor é uma das razões que confere força e atrativos ao gênero e que impede o romance de morrer.
Ao falar sobre esforço de pesquisa na construção
da obra, a escritora estadunidense chegou a surpreender ao reconhecer que, para
escrever "Torreão", livro recentemente lançado no Brasil, tentou
inicialmente escapar desse esforço de apuração. "Achei que não havia
necessidade, que a história não exigia. Foi desculpa para minha preguiça",
continuou. Por conta dessa postura, ela admitiu que em diversos momentos da
história, enquanto escrevia, sentia certa falta de autoridade nas descrições.
"Não sabia por exemplo qual era o cheiro de uma prisão". Percebeu que
era preciso, ainda que minimamente, preencher essas lacunas - visitou então um
presídio, onde passou oito horas, atenta aos mínimos detalhes. "Fez uma enorme
diferença. A leitura tornou-se mais viva e iluminada".
Ian usou o exemplo do livro "Sábado", de 2005, que tem como protagonista um neurocirurgião, para detalhar o mergulho de
compreensão que procura desenvolver quando está escrevendo. Ele lembrou que
passou um bom tempo usando jaleco branco, em hospitais, acompanhando cirurgias. Aproveitou
para contar uma passagem divertidíssima: estava certa vez no centro cirúrgico
quando alunas de Medicina se dirigiram a ele para solicitar autorização para
acompanhar uma operação de aneurisma. Ele foi extremamente gentil e disse que ficassem à vontade - e foi
relatando o passo a passo da cirurgia, com pormenores. Ao final do
procedimento, as estudantes agradeceram a paciência dele. "Fico me
perguntando como elas se saíram nas provas, já que foram instruídas não por um
neuro, mas por um romancista", completou, arrancando gargalhadas da
plateia.
Quando solicitado pelo mediador a destacar as
virtudes que encontra nas obras de Ian, Jennifer não hesitou em apontar o fato
de serem histórias convincentes e empolgantes, marcadas por tensão e beleza nas
palavras, com cores e ritmos sedutores, além de os livros dele tratarem de uma
diversidade ampla de temas, personagens e pontos de vista. Já o inglês definiu
a obra da colega estadunidense como "permeada por realismos e descrições
competentes e minuciosas, com rigorosa articulação e concatenação de
ideias".
Instigado também a refletir sobre romances de
espionagem - "Serena" escancara essa trama de suspense -, Ian
arriscou dizer que muito provavelmente todos os romances de alguma maneira
buscam inspiração no trabalho dos espiões, "se considerarmos que temos a
consciência de que não podemos revelar tudo de uma só vez, que o trabalho do
romancista consiste exatamente em reter informações, para vazá-las lentamente,
aos pouquinhos, e nos momentos certos". Sobre essa estratégia, Jennifer
disse que as narrativas de espionagem são arquétipos que conseguem captar a
experiência da modernidade. "Temos sempre a sensação de que temos
informações secretas, só nossas, e que somos mais importante do que realmente
somos".
Ao comentar ainda o sucesso e a atração provocados pelos romances de
espionagem, que transitam o tempo inteiro pelo mundo dos segredos, em tempos de
superexposição midiática e de rompimento de fronteiras entre público e privado
graças às redes sociais, a autora estadunidense lembrou de um texto que
escreveu para o New York Times sobre a vida on-line de um grupo de adolescentes
homossexuais que não tinham se assumido como tal. Aqueles jovens consideravam
que o mundo virtual era para eles a vida real, pois era naquele momento e
plataforma que podiam ser eles mesmos, sem máscaras. No entanto, eram apenas
aparências e representações, simulações, já que na virtualidade também
precisavam mentir, eram adultos que se passavam por crianças, homens que se
diziam mulheres. Era um paradoxo impressionante. "Para os adolescentes,
era mesmo um universo de abertura e de liberdade. Mas tudo aquilo era falso. O
grupo criou uma série de personagens. Tínhamos algo muito próximo do
romance", recordou Jennifer.
Já no final do debate, alguém na plateia perguntou se os autores
tinham prazer em manipular seus leitores - as idas e vindas nas narrativas dos
dois são uma constante. "Claro, com certeza, é o maior prazer que tenho na
vida. Mas não é um prazer sádico. Pensem em quando estamos pescando trutas.
Quando conseguimos segurá-las, é comum fazer cócegas nas guelras delas, quando
elas entram numa espécie de transe, e a pesca se concretiza. Essa é uma
analogia possível para a relação que estabeleço com meus leitores", respondeu
Ian. Para Jennifer, todo bom romancista é, por definição e recusando o sentido
pejorativo da palavra, um manipulador. "Você vai conduzindo o leitor pela mão. A
questão é: com que objetivo? Se for para oferecer uma surpresa fantástica ao
final, vale a pena. É aceitável. Desejável. As surpresas são maravilhosas. Eu
as adoro".
Houve ainda tempo para que o mediador perguntasse sobre a
expectativa dos autores em relação ao Prêmio Nobel. Jennifer soltou uma sonora
gargalhada e disse que está bastante satisfeita, mesmo sem o reconhecimento da
Academia Sueca. Ian disse que é preciso lembrar de outros autores que também
não ganharam o Nobel, como James Joyce e Franz Kafka. "Estamos muito bem
acompanhados", finalizou.
Manipulações literárias!!!!!!
ResponderExcluirSer conduzida pelas palavras de Ian McEwan e de Jennifer Egan é entregar-se a uma aventura fantástica, aceitável e desejável, como ressaltou a escritora.
Assisti a essa mesa, que foi leve, inteligente e divertida...