Figueiredo (camisa azul) e Dantas (camisa branca) : engajamento e sectarismo. Foto - Divulgação FLIP |
É possível - ou
desejável - que os textos literários mantenham-se alheios e indiferentes às
contradições sociais, apenas tangenciando, assepticamente, temas como
violências, marginalidades e exclusões? Foi esse um dos faróis a iluminar a
mesa "A imaginação engajada", que aconteceu no final da manhã de domingo, 8 de
julho, último dia da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). O debate, tão
elegante quanto divertido, reuniu os escritores carioca Rubens Figueiredo,
autor do premiadíssimo "Passageiro do fim do dia", e o sergipano
Francisco Dantas, que escreveu "Os desvalidos" e "Cadernos de
ruminações". O encontro foi mediado por João Cesar de Castro Rocha,
professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Em sua apresentação, Castro Rocha foi categórico ao afirmar que
tomar partido não é um problema - desde que essa postura contemple a
diversidade e não negue partidos diferentes. "Quando essa negação
acontece, enveredamos pelos monólogos e pelas acusações", alertou. Ele
elogiou o cenário atual da literatura brasileira, marcada, segundo o professor,
pela pluralidade e variedade de escolhas estéticas e pelo reconhecimento do
diálogo possível com o outro, divergente. Segundo Costa Rocha, tanto Figueiredo
quanto Dantas são legítimos representantes dessa tendência democrática, porque
capazes de lançar olhares críticos sobre o real. "As obras deles
constituem-se a partir de exercícios rigorosos de linguagem e de confronto
sempre presente de ideias e histórias", reforçou.
Figueiredo confirmou que essa avaliação faz mesmo
sentido ao logo em seguida narrar o processo de escrita de
"Passageiro...", que tem como personagem principal um jovem chamado
Pedro, que todas as sextas-feiras, no final da tarde, pega um ônibus lotado e enfrenta o trânsito caótico da cidade do Rio de Janeiro para visitar a namorada
que mora num bairro periférico da capital, onde pobreza e precariedade são
acentuadas. É uma história que aos poucos, e profundamente, vai revelando a
multiplicidade de ambientes, sujeitos, semblantes, afetos, estranhamentos e condições humanas que
habitam a cidade.
O autor acabou por reconhecer que muito do que
está contado no livro surgiu a partir da própria vivência dele - Figueiredo é
professor da rede estadual de ensino, lecionando à noite, para alunos que vivem
em condições de pobreza, exploração e opressão. Durante 25 anos, usou dois
ônibus para ir e dois ônibus para voltar da escola onde dava aulas
(recentemente, trocou o transporte coletivo pela bicicleta). Apesar da longa
trajetória no magistério, descobriu a certa altura da vida - e ficou incomodado
- que havia uma barreira que o afastava dos estudantes. "Era um mecanismo
social, que nos leva a tratar o pobre como não igual, ao mesmo tempo em que nos
empurra a perceber a situação de vida dessas pessoas e os dramas sociais como
algo natural. Mais ainda, construímos justificativas para legitimar as
desigualdades". Para ele, o abismo social é tão grande que dificulta a
percepção e a compreensão de cenários banais e elementares - a gente até vê,
mas não entende. E acaba por conviver. Ou esquecer.
"Passei a questionar a maneira como a
literatura e a ficção muitas vezes lidam com essas questões, construindo anéis
mágicos, como se, para escrever, fosse impositivo ficar isento, distante das experiências
sociais e dos processos históricos". Desse questionamento, consolidou-se
no autor a convicção de que a literatura é uma possibilidade de conhecer com
mais profundidade as experiências humanas mais imediatas. "E o romance é
capaz de dar essa contribuição, a partir da apresentação de visões críticas.
Foi com essa noção que fiz esse livro".
Dantas dedicou-se, em sua exposição, a
diferenciar devaneio de imaginação - o primeiro seria um fenômeno mais livre,
entrando até pela loucura; já o segundo conceito está ligado a uma ação
disciplinadora, a um papel ordenador, para dar o resultado em palavras, no caso
da literatura. Sobre engajamento, observou que essa palavra sempre foi fatídica
para a literatura e lembrou que, na primeira metade do século XX, a imensa
maioria dos escritores brasileiros - ele citou Jorge Amado, Graciliano Ramos e
Raquel de Queiroz - registrava em suas obras a presença muito marcante da luta
de classes. Tal paradigma teria sido quebrado pela obra de João Guimarães Rosa,
com suas narrativas rurais, ambientadas em pequenas comunidades, sem conflitos
entre fazendeiros e trabalhadores.
"Foi uma reviravolta. Guimarães veio para
nos emancipar. A partir dele, não era mais necessário ter a carteirinha do
partido para escrever". Dantas citou ainda uma fala do escritor
estadunidense William Faulkner para reforçar o que pensa sobre engajamento:
"há uma passagem em que ele diz que, se alguém estiver queimando ao lado
dele, mas ele não se sentir incomodado com o cheiro ruim, que o sujeito que
queima vá para o inferno, pois ele, Faulkner, vai continuar a escrever".
As reflexões de Dantas, no entanto, não devem ser
confundidas com insensibilidade ou neutralidade. O que ele parece rejeitar - ao
menos foi essa minha percepção - é o engajamento partidário, sectário,
excludente; valoriza, no entanto, assim como Figueiredo, o engajamento do
escritor que seja construído a partir dos compromissos com seu entorno, com as
relações sociais e o próprio sentido de existência digna da humanidade. Para resumir: engajamento é diferente de sectarismo. "Também
fico incomodado com as desigualdades sociais. Não vivo num limbo, mas
mergulhado em uma sociedade. Escrevo para questionar ou transformar ou manter
esses contextos, às vezes recorrendo inclusive a caricaturas. Mas um romance
não pode ser nunca maniqueísta", alertou, finalizando.
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