segunda-feira, 2 de julho de 2012

A TRAGÉDIA DA COPA DE 82. E A MONOTONIA DA CAMPEÃ ESPANHA




Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Junior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder, com Telê Santana como técnico. Podem cravar: foi a melhor e mais encantadora e fantástica equipe de futebol que vi jogar. Tínhamos um craque para cada posição (está bem, vá lá, aceito que o adjetivo talvez não caiba para o Serginho, artilheiro nato, mas não um craque. É a única concessão que me permito fazer. Não insistam, por favor). E foi essa seleção brasileira de 1982 também a responsável por me fazer chorar pela primeira vez por conta do futebol, naquela tarde ensolarada (lá e cá), tragicamente triste e traiçoeira de 05 de julho de 1982, há exatos trinta anos, no estádio Sarriá, em Barcelona, na Copa do Mundo da Espanha.

Eu era um menino, pernas ainda mais finas, também ainda mais magro (sim, é isso mesmo), começando a disputar os primeiros campeonatos oficiais pela escola, já contaminado pelo implacável vírus do fascínio pelo futebol e que encontrara nos comandados de Telê a essência do esporte. Que maravilha! Como era bonito e gostoso ver aquele time jogar! Tenho certeza que em várias das preleções o Mestre dizia "às favas, meus jogadores, com o toque de lado, o bico para a arquibancada, o carrinho e a retranca de resultados. Claro, os títulos são importantes, mas estes obviamente devem ser consequências de futebol bem jogado, de espetáculos alegres. Não vamos decepcionar a torcida". 

E ali, com os onze de Telê, a bola era artisticamente conduzida e plasticamente bem tocada, com precisão e objetividade, de pé em pé, sem firulas, vorazmente em direção ao ataque, procurando os gols e as vitórias, sempre, de forma obstinada. Fizemos um? Queremos mais um. E outro. Foi por essa razão que encantamos o mundo. É por isso que aquela equipe é até hoje referência, paradigma - foi também a ela que o monstro Pep Guardiola referiu-se como exemplo de futebol arte, logo depois da aula magna que o Barcelona ministrou ao Santos, na final do Mundial de clubes e encerramento da temporada 2011.

A diversão começou com o Mundialito de 1981, no Uruguai, quando na primeira fase empatamos com a Argentina (1 x 1) e goleamos a poderosa Alemanha (4 x 1), que ficou perdidinha e foi nocauteada, não viu a cor da bola; eliminamos por tabela os hermanos (o que é sempre bom; a única exceção permitida se dá quando o Corinthians está na final da Libertadores) e garantimos a classificação para a final, quando fomos derrotados pelos uruguaios (1 x 2). Perdemos, e ali começaram a grudar no Telê o injusto e estapafúrdio rótulo de "pé frio"; mas foi também naquele torneio que ele começou a anunciar escancaradamente ao mundo o que seria a Seleção de 82. 

Vieram a excursão à Europa e os desafios contra a Inglaterra (vencemos no mítico estádio de Wembley, 1 x 0), a França (atropelamos, 3 x 1) e a Alemanha (mais um triunfo, desta feita por 2 x 1), quando Valdir Peres, chamado a partir de então pelo narrador Silvio Luiz de "o monstro de Stuttgart", defendeu dois pênaltis batidos por ninguém menos que Paul Breitner. Eu estava naquilo que se chamava de quarta série e estudava à tarde, horário dos jogos. Sem televisão, portanto. Fazer o quê? Sentar então no páteo da escola, na hora do recreio, numa roda de amigos, e tirar da mochila o radinho de pilhas para ouvir as partidas. 

Quando a Copa chegou, não passava pela minha cabeça de criança qualquer outra coisa que não fosse o título. Era só uma questão de tempo. Na minha ainda infantil percepção de mundo, era uma trajetória linear, com começo, meio e fim - e final feliz, óbvio. Aquela seleção não perdia. E as três vitórias na fase de grupos (começo duro contra a União Soviética, partida resolvida com gols que foram verdadeiras pinturas de Sócrates e de Éder; passeios e goleadas contra Escócia e Nova Zelândia, além de triunfo categórico e pedagógico sobre a Argentina de Maradona na segunda fase, quando o máximo que o craque argentino fez foi ser expulso por ter dado um pontapé criminoso na barriga de Batista) só fizeram confirmar o que se revelava inexorável: seríamos campeões.

Mas havia uma Itália (e que timaço também era aquele de Dino Zofi, Gaetano Scirea, Giancarlo Antognoni, Marco Tardelli e Bruno Conti) no nosso caminho. Fiquei ressabiado com o primeiro gol de Paolo Rossi, mas soltei o grito depois de ver o passe em profundidade do Sócrates, o giro desconcertante do Zico em cima do Gentili, o passe no bico da área de volta para o Doutor, que colocou a bola no único lugar possível - rasteira, cortante, entre a perna do goleiro italiano e a trave esquerda. Comecei a achar que algo não ia bem quando o Cerezo cruzou a bola na frente da área brasileira e deu de presente para o Rossi o segundo gol. Veio o segundo tempo. O gol de empate não saia. Comecei a chorar copiosamente, meu pai me tirou da sala e me levou para a cozinha para tomar Maracujina, meus irmãos também choravam. O caos. A gente chutava a geladeira, tamanha a raiva, tão grande era o desespero. E só ouvimos minha mãe gritar o gol do Falcão. 

Corremos então de volta para a sala, num atropelo geral. Pulamos e caímos todos no chão, num emaranhado de pernas e de braços, gritos e urros, abraço coletivo de alívio. Catarse. Tudo voltava ao normal. Seríamos campeões. Ponto pacífico. Respirei. Mas aí o maldito Paolo Rossi resolveu empurrar mais uma bola manhosa para o fundo do nosso gol. Terminei o jogo novamente na cozinha, castigando a geladeira e desferindo nela mais alguns chutes. Meu pai insistia "pare, a geladeira não tem culpa". Mas, caramba, era preciso extravasar a raiva. Alguém tinha que pagar por aquela tragédia. Estavam roubando de mim o grito de campeão! Só muito tempo depois fui ver a cabeçada do Oscar no último minuto do jogo, que o Zofi parou com a ponta dos dedos, em cima da linha. Até hoje, toda vez que vejo o lance, fico torcendo para a bola entrar, para restabelecer a justiça histórica e futebolística. 

A derrota da Seleção de 82 foi não só um trauma pessoal, mas um marco na história do futebol. A partir dali, o pragmatismo tornou-se hegemônico, salvas de palmas para o futebol de resultados, sem preocupações com a estética do jogo. Viva o bicão, a canelada! "Parabéns, Telê fez o Brasil encantar o mundo, foi fiel às raízes e às tradições do futebol brasileiro, e daí? Perdeu. E de que adianta jogar bonito e perder? Queremos títulos". 

Por coincidência, trinta anos depois, o mundo do futebol nos presenteia com a Espanha, que tira esse discurso resignado da zona de conforto e escreve em letras garrafais: é possível combinar futebol arte com resultados e conquistas. Sim, a Espanha que realizou a Copa que me fez sofrer, e que ontem detonou a Itália que me fez chorar, é hoje a seleção que me encanta, me deixa hipnotizado, sem piscar ou tirar os olhos da telinha. Não é melhor que a máquina brasileira de 82, até porque, como diria o poeta português Fernando Pessoa, é uma belíssima seleção, mas não é a minha seleção. E qual não é minha surpresa ao constatar que tentam agora grudar na Fúria outro rótulo, tão injusto quanto aquele que tentaram colar no mestre Telê: "ah, mas esse futebol praticado pela Espanha é muito chato, chatíssimo. Chega a dar sono".

Títulos da Eurocopa de 2008 e 2012, Copa do Mundo de 2010, passes curtos e longos, todos precisos, triangulações, viradas de jogo, contra-ataques rápidos e mortais, posse de bola, passagens dos laterais, apenas um gol tomado no último torneio, jogadas em profundidade, defesa sólida, volantes que pensam o jogo e que sabem jogar, um dos melhores goleiros do mundo, marcação sob pressão no campo do adversário, dribles desconcertantes de Iniesta, 85% de acertos nos passes dados pelo maestro Xavi, goleada incontestável na final, estilo de jogo definido (treinabilidade, como diria Tite)...  Como bem resumiu Juca Kfouri, "a Espanha homenageia o jogo reverentemente e diverte ao ganhar com graça e talento de quem apareça pela frente, a ponto de dominar o mundo desde 2010 e a Europa desde 2008". Eita futebol chato, enfadonho, sem sal, cansativo, chocho, burocrático! Melhor mudar de canal. Está dando sono. 

A Espanha que se cuide. Os inconformados corvos e secadores de plantão estão à solta, a desejar fracassos, apenas para fazer fechar o teorema: "futebol chato e fogo de palha. Durou pouco. Foi nuvem passageira". E a Fúria terá de treinar muito mesmo, se esforçar ao extremo para confirmar sua condição de favorita ao bicampeonato mundial, na Copa que será disputada no Brasil. Porque com esse futebolzinho chato, fortemente inspirado na seleção de 82 do Telê, sei não...

3 comentários:

  1. Gostei muito do texto, vou deixar o meu que escrevi tb..

    abraços,



    http://www.viomundo.com.br/falatorio/adilson-filho-em-defesa-do-futebol-chato.html

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  2. Sou espanhol é aqui sempre se fala do antigo futebol-arte do Brasil como uma das inspiraçôes da atual seleçâo. Olha uma manchete do jornal esportivo mais vendido do pais de fevereiro de 2009 depois de um jogo contra a Inglaterra:
    "El Brasil de Europa"
    http://www.marca.com/multimedia/primeras/09/02/0212.html

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  3. Vou comentar só agora, porque só agora consegui ler o texto. Na semana passada, devido aos acontecimentos da quarta-feira, preferi dar um tempo no futebol. Ah, seleção de 82. Que time era aquele? Que futebol era aquele? Isso porque perdemos o Careca às vésperas da Copa, machucado, e o Reinaldo, cracaço que vivia com problema de joelho. Faltei na escola para ver o famoso amistoso contra a Inglaterra, no mítico estádio de Wembley (o antigo), com um golaço do Zico. Fiquei escutando pelo radinho Brasil x Alemanha e não via a hora de chegar em casa para ver os lances, as defesas do Valdir Peres, os gols. Durante a Copa, cada jogo era uma festa. Saía mais cedo da escola. Vestia a camiseta canarinho (que ainda tinha o símbolo do café...). E me encantava. Era um show. O jogo contra a Argentina terminou 3x1, mas o resultado mais justo seria 6 ou 7x0 (o gol do Ramon Diaz, no finalzinho, foi absolutamente acidental). Veio a Itália. Como poderíamos perder de uma seleção que tinha empatado três vezes na primeira fase e que só tinha se classificado por ter feito um mísero gol a mais do que a seleção de Camarões? Tínhamos Zico, tínhamos o Dr. Sócrates. Tínhamos as bombas de Éder, que estava na melhor fase de sua carreira 100% explosiva. Tínhamos os dois melhores laterais do mundo, Leandro e Junior, que tinham ajudado o Flamengo, no final de 1981, a trucidar o Liverpool. Tinhamos o peladeiro Cerezo, que, em uma época de predomínio do tradicional "cabeça de área", marcava e saía para jogar com uma qualidade absurda. Tinhamos Oscar e Luizinho, dois baita zagueiros. Tinhamos o trombador Serginho Chulapa, de pouca técnica, mas um fazedor de gols nato. Mas, naquele jogo, acima de tudo, tinhamos o Rei de Roma Falcão, craque do campeonato italiano e recém escolhido melhor jogador do, à época, melhor e mais disputado campeonato europeu. Como podíamos perder com um time desse? Perdemos. O roteiro do jogo foi esse mesmo. A Itália, apesar da classificação com a corda no pescoço, tinha um belo time também. E, jogou uma partida espetacular. Além dos 3 gols, teve várias outras chances. Jogou muito. Marcou muito. E o diabo do Paolo Rossi fez três gols. Me lembro que, alguns dias depois, algum maluco lançou o boato que o Rossi teria jogado dopado contra o Brasil e que a partida seria anulada, com a vitória do Brasil e consequente eliminação da Itália. Lenda, é claro. Mas, chorei muito. Desesperadamente. Aquele time, repito, não podia perder. Depois disso, vieram as decepções em 86, em 90, até o título chorado de 94, o vice estranho de 98, o penta em 02 e novas decepções em 06 e 10. Mas, nada irá superar o que foi esse 05 de julho de 82. Um golzinho. Faltou um golzinho. Já sonhei com a cabeçada do Oscar, defendida pelo Zoff, sabe-se lá como, em cima da linha. Os jogadores brasileiros, desesperados, levantando as mãos e reclamando que a bola teria entrado, pedindo, assim, a validação do gol. E o Zoff, com a bola embaixo do braço, fazendo "não" com a mão. Tinha 7 anos. Para mim, aquela bola tinha entrado. Xinguei o juiz (acho que era um israelense...) de tudo quanto é nome. Acho que foi a primeira (de muitas) vezes que falei palavrões na frente de meus pais. Pois é. Não deu. Ainda bem que existiu o Barcelona de Pep Guardiola para me fazer lembrar um pouco desse tempo e para me trazer à mente que futebol de verdade era aquele e não esse pseudo futebol praticado por Chelsea e Corinthians. Quanto à Espanha, para mim, falta alguma coisa. É, sem dúvida, o melhor futebol da atualidade. Mas, falta um Messi...
    Ps: Chiquilito, eu estava na sala do apartamento da Lisboa e vi o gol do Falcão. Você e o Guto choravam, chutavam a geladeira e tomavam maracujina.

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