Aos que estão acompanhando o julgamento do chamado mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), recomendo fortemente que corram já à banca de jornal mais próxima para comprar a edição de agosto da revista Piauí, que traz como destaque de capa o "Mensalão à mineira". Sem pretender inventar a roda, e colocando em prática a tradição da grande reportagem (contar bem uma boa história, com antecedentes e contextos), a repórter Daniela Pinheiro (a mesma autora dos perfis mais que recomendados de Ricardo Teixeira e Silas Malafaia, também publicados pela Piauí) dedica-se a costurar uma narrativa de fôlego que remonta às origens do esquema idealizado e operado por Marcos Valério em Minas Gerais, em favor do PSDB daquele estado, numa espécie de "saiba como tudo começou". Sem adjetivos, atendo-se às informações, a reportagem se impõe por sua qualidade jornalística, estabelecendo-se como um oásis de explicações, num deserto escaldante e seco de fragmentos e condenações. É leitura obrigatória.
Daniela conta como a SMP&B, já em 1996, havia alcançado o status de mais importante agência de publicidade de Minas Gerais, com contratos firmados com estatais importantes, como a Usiminas; ainda assim, pessimamente administrada, acumulava dívidas de doze milhões de reais. A alternativa talvez fosse decretar a falência, caso um dos donos da empresa, Cristiano Paz, não tivesse sido procurado no escritório por um figura desconhecido, mas articulado, convincente e cheio de ideias - Marcos Valério de Souza, que até acumulava passagens tão obscuras quanto estranhas pelo Banco do Estado de Minas Gerais (BEMGE) e pelo mercado financeiro. Ele garantia conhecer os caminhos das pedras para tirar a agência do buraco.
"Enquanto esperava (a resposta dos donos), Marcos Valério agiu. À Justiça, ele disse ter conhecido o então presidente da Confederação Nacional do Transporte, Clésio Andrade, quando ambos faziam cooper na lagoa da Pampulha. Abordou o empresário, apresentou-se como representante dos donos da SMP&B e revelou ter uma proposta irrecusável: Andrade entraria como sócio da massa falida da empresa, que se recuperaria em breve". A oferta era inusitada, para dizer o mínimo. No entanto, talvez porque ambos, em silêncio e solitariamente, já vislumbrassem caminhos futuros, Clésio Andrade resolveu assumir a direção do negócio e tornou-se sócio majoritário da agência. Marcos Valério, como lembra a reportagem, ficou com 10% das ações e, muito melhor, o cargo de diretor-financeiro da empresa, viabilizando uma manobra que seria fundamental para seus planos vindouros.
Como narra Daniela, "a estratégia de Valério foi declarar a morte da SMP&B Publicidade - e assim enterrar suas dívidas - e fazer nascer das cinzas a SMP&B Comunicação, de ficha limpíssima. Estariam assim credenciados para prosseguir no mercado e principalmente se embrenhar em uma nova seara - a de campanhas políticas". À repórter, o deputado estadual Sávio Souza Cruz (PMDB/MG) reforçou que "a grande sacada de Marcos Valério foi vislumbrar o que ele podia fazer com uma agência de publicidade na mão, a dois anos de uma eleição. (...) A agência já tinha credibilidade, já tinha contratos com o governo e com as empresas do estado, que eram suas maiores clientes. Bastou ele amarrar o pacote".
Saía assim de cena o financiamento de campanhas políticas via caixas dois viabilizados por contas fantasmas, como havia ficado escrachado durante a passagem de Fernando Collor de Melo pela Presidência da República, e já bastante visado e desgastado, apesar de não totalmente abandonado. O propósito era conduzir as falcatruas por meio da agência, o que "parecia representar uma novidade insuspeita nas relações promíscuas entre a política e o poder privado". Em pouco tempo, o hábil e sedutor Valério transitava com tranquilidade também pelos corredores do governo federal, não sem antes ter comprado, em Minas, seu principal concorrente, a DNA Publicidade. Continuemos juntando as pontas: dois anos depois, em 98, Clésio de Andrade deixou a agência para se candidatar a vice na chapa do tucano Eduardo Azeredo, candidato à reeleição ao governo do estado. Resultado imediato: as contas de publicidade de Valério foram dobradas. E ganha um doce quem adivinhar quem assumiu a área de comunicação da campanha do PSDB.
Foi quando o esquema começou a funcionar de fato. A SMP&B já tinha, havia dez anos, a conta do Enduro Internacional da Independência (prova de motociclismo). Por ordem do governo de Azeredo, três estatais (a mineradora Comig; Copasa, de saneamento; e o Bemge) foram obrigadas a assumir cotas de patrocínio do evento, irrigando os cofres de Marcos Valério com uma bolada de três milhões e meio de reais. Verbas públicas. Lembra Daniela que "de acordo com o Ministério Público Federal, os diretores das estatais eram amigos pessoais de Azeredo ou participaram de sua campanha eleitoral. (...) Na mesma época, o tesoureiro da campanha (à reeleição), Claudio Mourão, com quem Azeredo mantinha uma relação de amizade havia mais de uma década, bateu às portas da agência de Marcos Valério".
Começavam também os empréstimos (que mais tarde se tornariam famosos) tomados dos bancos Rural e BMG para dar conta de despesas de campanha. "O primeiro empréstimo foi de dois milhões de reais. Dias depois, houve outro, de nove milhões de reais. Como garantia, a empresa de Valério apresentava notas promissórias e contratos com o governo de Minas Gerais - o que, segundo a denúncia (processo que corre na Justiça), só seria possível com o aval das autoridades estaduais". A estratégia: confundir para escapar da fiscalização. E de punições.
Continua a reportagem: "Segundo o ministro Joaquim Barbosa, o modus operandi adotado por Marcos Valério ao se envolver com petistas e tucanos foi misturar dinheiro limpo com dinheiro sujo em suas contas. Funcionava assim: a SMP&B pegava um empréstimo junto ao Banco Rural e, ao mesmo tempo, era paga por serviços de publicidade que seriam feitos para estatais mineiras. O dinheiro entrava nas contas, misturava-se com a contabilidade normal da empresa e era usado para quitar os empréstimos". Ficavam todos felizes, com as mais diferentes demandas atendidas: o dinheiro público que saía das estatais ajudava a pagar campanhas e financiava os negócios promissores de Marcos Valério; fontes de empréstimos camaradas, os bancos se "qualificavam" para concretizar negócios privilegiados com o Estado - perdiam aqui para recuperar, com extras, acolá.
Até que o ex-presidente Itamar Franco venceu Azeredo nas eleições de 98, em segundo turno. O esquema ruiu? Nem tanto. "Ainda assim, a SMP&B se manteve em alta. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a agência ganhou as contas dos ministérios do Trabalho e dos Esportes, além da estatal Eletronorte. Também foi contratada por prefeituras do PSDB e pelo governo de Goiás, sob a batuta do tucano Marconi Perillo. (...) A empresa voltaria a ter as principais contas do governo de Minas Gerais em 2002, com a eleição de Aécio Neves".
Também em 2002, Lula foi eleito para a Presidência da República. Disposto a não perder negócios - e com experiência acumulada para dar e vender - Marcos Valério manteve-se sempre por perto do governo federal, a distribuir afagos e carinhos, como a dizer 'estou por aqui'. Conta a reportagem que foi "no ano seguinte que Marcos Valério foi apresentado a Delúbio Soares pelo deputado do PT mineiro Virgílio Guimarães, de quem era amigo de infância. Esse encontro mudou definitivamente os rumos de sua até então profícua carreira como operador de campanhas eleitorais", escreve Daniela.
Em 2003, o PT acumulava dívidas de campanha que chegavam a 60 milhões de reais. Delúbio, tesoureiro do partido, era pressionado a dar um jeito. Qualquer jeito. O PT tinha um problemão; Marcos Valério, a solução. Começava ali o "era uma vez o esquema operado pelo Partido dos Trabalhadores...", agora julgado no STF. Daniela cita ainda na reportagem o ex-procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, para quem a "experiência mineira foi a origem e o laboratório do mensalão, e Azeredo teria sido um dos principais mentores e o principal beneficiário do esquema".
Como já ensina a Lei de Lavoisier, "na natureza nada se cria, nada se perde; tudo se transforma". Que bom que ainda existem jornalistas como Daniela Pinheiro, sempre disposta a reportar essas transformações.
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