terça-feira, 31 de julho de 2012

NO MENSALÃO, JORNALISMO CONDENA. MAS NÃO EXPLICA.





Na disciplina "Teorias do Jornalismo", procuro desenvolver com os alunos, durante o semestre, um percurso intelectual e conceitual que estabelece o diálogo com vários pensadores e autores da área, convergindo para a elaboração de uma possível definição sobre essa forma específica de conhecimento. Tal linha de raciocínio nos permite compreender o jornalismo como uma narrativa, o principal contador de histórias da contemporaneidade, que tem na singularidade (traduzida por meio de olhares específicos e da diversidade de interpretações e de visões de mundo) o seu mais representativo patrimônio, devendo, em sociedades democráticas, estabelecer relações estreitas com a cidadania, de forma a construir a melhor versão possível da realidade, para finalmente garantir o direito à informação. 

O conceito não é, obviamente, definição única, absoluta, a esgotar o assunto, simples de ser transportada para a prática cotidiana - nem nasce ao acaso, por geração espontânea. Consolida-se a partir de reflexões como as do professor Ciro Marcondes Filho, que no livro "Ser jornalista" (editora Paulus, 2009) escreve que "para chegar de fato a ser jornalista, no sentido estrito, (o sujeito) terá, um dia, atingido a consciência de que seu trabalho é pequenino, como o de um varredor de rua, de um entregador de gás, de um cobrador de ônibus. E que não há trabalhos grandes, apenas trabalhos honestos. E sinceros. E repassar aquilo que se viu, ouviu é de especial delicadeza se o outro, aquele que recebeu, pôde se emocionar, se sensibilizar, se entristecer ou se animar, em suma, se a mensagem proferida teve a qualidade de ver o outro como um ser humano, tão digno de atenção e respeito como ele mesmo, que tanta porrada teve que tomar na vida para aprender esta singela lição. Que não há nada mais importante que o anonimato de um trabalho decente". 

Faz sentido também resgatar contribuições da professora Liriam Sponholz, na obra "Jornalismo, conhecimento e objetividade" (editora Insular, 2009), em que a autora sugere que "o que está em jogo é o papel do jornalismo como mediador da realidade. Objetividade diz respeito à correlação entre a realidade social e a realidade midiática. Ou seja, se aquilo que está nos jornais tem a ver com o que aconteceu, pode-se falar de objetividade. Se jornalistas quiserem produzir notícias e reportagens que estejam em concordância com a realidade, eles precisam observá-la. Trocando em miúdos: quem quer noticiar de forma objetiva precisa investigar. Mais do que isso: a sua observação tem que obedecer regras que ajudem a evitar uma percepção falsa. A investigação precisa seguir normas profissionais que tenham como objetivo a produção de notícias e reportagens com um alto grau de correlação com a realidade social".

Avançando um pouco mais, temos em "Teoria do Jornalismo" (editora Contexto, 2005), de Felipe Pena, severas críticas ao denuncismo que contamina nossa produção noticiosa. Lembra com propriedade o autor que "na busca incessante pelo furo, repórteres antecipam-se ao trabalho do judiciário e acabam produzindo julgamentos públicos. Isso não é jornalismo investigativo. Na maioria das vezes, as reportagens apenas reproduzem declarações de pessoas interessadas nas denúncias e se escondem em uma pretensa objetividade, ouvindo a defesa dos acusados. Só que a denúncia toma corpo e, mesmo que as investigações revelem que ela é mentirosa, a informação continua no imaginário do público. Por isso, é bom deixar bem claro: jornalismo investigativo não se baseia em denúncias, apenas começa com elas. A base mesmo é uma sólida pesquisa por parte do repórter". 

Quem dera nossos principais nobres veículos jornalísticos, os ditos "de referência", estivessem minimamente dispostos a observar tais preceitos - e a colocá-los em prática durante o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), que começa nesta quinta-feira, 02 de agosto. Lamentavelmente, o que se anuncia é mais um show midiático, sofisticadamente tecido por interesses políticos (disputas eleitorais e de poder) e econômicos (audiências) nem tão escusos assim. Um dos mais complexos episódios de nossa história recente acabou se transformando em pílulas simplistas e fragmentadas, supostamente informativas, oferecidas em doses homeopáticas, no café da manhã ou nos finais de noite, de maneira a não construir conjunto harmônico de significados. Pouca explicação, muita excitação e histeria coletiva - eis a diretriz a pautar até aqui a cobertura do acontecimento. E, assim como se deu em crimes e processos judiciais anteriores - alguém consegue esquecer o folhetim policialesco "casal Nardoni"? -, o veredito midiático já foi estabelecido, muito antes mesmo de os ministros togados proferirem os votos deles. 

Caso os culpados já sentenciados pelo jornalismo não sejam todos, todinhos punidos pela Corte com penas máximas, a tendência é que se consolide na opinião pública a percepção (ou seria convicção?) senso comum de que "somos mesmo o país da impunidade, da farta distribuição de pizzas, dos acordos espúrios e do vale tudo. Só aqui mesmo. O Brasil não é sério". Em função do consenso forjado pelas narrativas midiáticas reverberadas até aqui, o único resultado possível e aceitável será a condenação ampla, geral e irrestrita, de todos os réus. A partir daí, atira-se o STF numa panela de pressão, em fogo altíssimo. E o Supremo terá portanto sido omisso e covarde, conivente, se não der conta do clamor popular. O roteiro está sendo escrito antes de o documentário ter sido gravado.

É fato que as leis e a justiça não estão divorciadas de tensas e intensas relações estalecidas com contextos históricos, com diferentes forças sociais, não acontecem para além da vida cotidiana, não constituem universo sem conexões com tantos outros. Mas parece evidente também que os ministros não podem entrar no plenário do STF com as facas nos dentes, a prometer sangue, guiados pelas narrativas e constrangimentos da mídia, dispostos em primeira instância a dar satisfações aos urros que ecoam nas ruas, apenas para ficar bem na fita, com as popularidades em alta. Ou estaríamos então ainda vivendo sob os auspícios do pão e circo do Coliseu romano, com os césares na tribuna a erguer ou indicar polegares para baixo, a partir das catarses, palmas e excitações da platéia ensandecida nas arquibancadas. 

Em artigo publicado na Folha de São Paulo desta terça-feira, 31 de julho, o jornalista Jânio de Freitas (anos-luz de ser um esquerdinha radical ou governista de carteirinha) avalia que "o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal é desnecessário. Entre a insinuação mal disfarçada e a condenação explícita, a massa de reportagens e comentários lançados agora, sobre o mensalão, contém uma evidência condenatória que equivale à dispensa dos magistrados e das leis que devem servir os seus saberes. Os trabalhos jornalísticos com esforço de equilíbrio estão em minoria quase comovente".

Manifesto em alto e bom som, antes que uma voz acusatória se levante para também me condenar por ser conivente com  caixa dois, desvio de recursos públicos, financiamentos irregulares de campanhas (mensalão também foi nome fantasia incentivado pela mídia, a grudar no imaginário popular): não defendo a impunidade. Mas também não sou partidário da execração antecipada e do massacre público anunciados. Entre as duas pontas, há várias situações - e sentenças - intermediárias plausíveis e possíveis. É por esses meandros que o STF e o jornalismo deveriam transitar. 

Não cobro a objetividade perfeita, técnica e isenta. Essa falsa proposição de neutralidade coloca-se para além da condição humana. O que espero dos ministros, talvez ingenuamente, é que possam julgar com sensatez, responsabilidade e equilíbrio, dispostos a ouvir os argumentos e a considerar os contraditórios. Esse mesmo equilíbrio transparente e honesto deveria pautar (aqui, sou mais uma vez inocente) a cobertura jornalística, sempre em busca de versões plurais, bem apuradas, rigorosamente checadas e documentadas, a dar espaço a vozes dissonantes (sem monólogos agressivos e autoritários), com intuito de articular falas e de costurar sujeitos capazes de contextualizar e de explicar, e não de confundir, estilhaçar e esconder (quando então torna-se mais fácil sustentar teses previamente concebidas). Para garantir o direito à informação, seria preciso escapar dos debates viciados e investir em balões renovados de oxigênio de compreensão.

Gostaria de ser otimista. A realidade, no entanto, é nada alvissareira. Minha sensação é que o show espetacularizado e as narrativas instrumentalizadas e enviesadas prevalecerão. 

A propósito, uma honesta provocação: mesmo com a avalanche de matérias até aqui publicadas sobre o tema, quem consegue, com detalhes e precisão, explicar o que foi o mensalão, como se construiu e funcionou o esquema, como atuaram seus operadores? A narrativa faz sentido? Tem coesão e coerência? Há começo, meio e fim? Engasgou? Pois então...

Que comece (ou continue) o espetáculo.

domingo, 22 de julho de 2012

SERRA E HADDAD DEVEM ESTAR PREOCUPADOS...


As eleições municipais serão tema recorrente neste Blog. Para começar a aquecer o debate político, vale a pena dedicar algumas linhas de reflexão à pesquisa divulgada neste sábado, 21 de julho, pelo Instituto Datafolha, que traz as intenções de voto para a Prefeitura de São Paulo. 

De acordo com o levantamento, que ouviu 1.075 pessoas nos dias 19 e 20 de julho, José Serra (PSDB) lidera a disputa com 30%, tendo oscilado negativamente um ponto percentual em relação ao cenário anterior (dados de 25 e 26 de junho). É seguido bem de perto pelo candidato do PRB, Celso Russomano, que subiu dois pontos - de 24% para 26%, embolando a corrida pela liderança e configurando uma situação de empate técnico, já que a margem de erro da pesquisa é de três pontos percentuais, para mais ou para menos. Os demais candidatos estão bem distantes: Fernando Haddad (PT) vai de 6% para 7%, exatamente o mesmo movimento feito por Soninha Francine (PPS). Gabriel Chalita (PMDB) mantém os 6%, e Paulinho da Força cresce de 3% para 5%. Carlos Giannazi (PSOL) repete o 1%.  

Os quartéis-generais das campanhas tucana e petista muito provavelmente tiveram acesso a esses números já na noite de sexta-feira. E, aposto, José Serra e Fernando Haddad, que agem desde sempre para forçar a polarização da disputa, foram dormir deveras preocupados e passaram o final de semana com um gosto amargo na boca, embora continuem aparecendo para o público com o discurso do "tudo vai bem, mantemos o otimismo cauteloso" - nem poderia ser diferente.

Mesmo sendo inegavelmente figura pública de envergadura nacional, ex-prefeito da principal cidade do país e ex-governador do estado mais rico, além de candidato a presidente em 2010, quando alcançou inclusive o segundo turno, José Serra patina na faixa dos 30% desde que seu nome passou a ser incluído nos levantamentos. Parece objetivamente ter atingido seu teto eleitoral. E aquele que era anunciado como imbatível, para quem a eleição paulistana eram favas contadas, pode não apenas não ser o vencedor - começa também a correr risco de ficar de fora de um eventual segundo turno na capital paulista. Imagino que, nos bastidores, sem deixar vazar para o público, o cenário possível (e terrível) já esteja sendo considerado pelos marqueteiros e coordenadores da campanha tucana, todos arrepiados e com cabelos em pé. 

Certamente as lideranças do PSDB avaliam ainda outros números significativos da mais recente pesquisa Datafolha. Serra já é conhecido por 99% do eleitorado - ou seja, praticamente o grau absoluto (e, destes, 78% afirmam que o conhecem "muito bem"). Não tem mais para quem "ser apresentado". A taxa de rejeição do tucano, mais uma variável fundamental, chega a 37%  (era de 35% em junho), a maior desde o início da série de pesquisas. A história é bastante perspicaz em mostrar que, com essa imagem negativa estratosférica, dificilmente um candidato consegue sair vitorioso. O exemplo mais recente, no universo paulistano, é o da ex-prefeita Marta Suplicy. Para fechar o calvário serrista, o tucano alcança modestíssimos 9% na pesquisa espontânea, quando não são mostrados para o eleitor os nomes dos candidatos. Em junho, Serra tinha 13% na espontânea - em um mês, perdeu quatro pontos percentuais. O índice atual dele é ligeiramente superior ao de Russomano, que chega a 7% nesse cenário.

As pedras no caminho do PSDB estariam sendo efusivamente comemoradas no comitê petista, caso os estrategistas da campanha de Haddad não precisassem se preocupar com as próprias fraquezas. O fato que me parece incontestável é que, até aqui, a candidatura de Haddad não emplacou. E decepciona. Mesmo depois da entrada mais firme de Lula na campanha, da convenção partidária, das aparições em programetes gratuitos de TV em junho, das participações em programas populares como o do "Ratinho" (com Lula a tiracolo), das incursões pelas periferias da cidade e do apoio de Paulo Maluf, Haddad escorrega nos 7% de votos. É verdade, tem índice baixo de rejeição (12%) e, entre os favoritos, é o menos conhecido (55% sabem quem ele é). Há espaço para crescimento. Mas, para efeito de comparação, e guardadas as singularidades e contextos, vale lembrar que Dilma Rousseff, que também tinha sido ministra de Estado e foi alçada à condição de candidata a presidente por vontade de Lula, atingia, na pesquisa Datafolha de 23 de julho de 2010 (antes, portanto, do início do horário eleitoral gratuito), 36% das intenções de voto, contra 37% de Serra. Marina Silva tinha 10%. Bem diferente, me parece.

Sobre Celso Russomano, cumpre destacar que a trajetória dele nas pesquisas é ascendente: 16% em dezembro do ano passado, 17% em janeiro, 19% em março, 21% em meados de junho, 24% no final de junho, para finalmente alcançar 26% na pesquisa mais recente. Há certamente uma parcela dessas intenções que se manifesta por conta do "recall", da lembrança próxima, da visibilidade do postulante. Russomano foi candidato a governador de São Paulo em 2010. Até o final de junho, apresentava o quadro "Patrulha do Consumidor", na TV Record, com audiência bastante razoável e cativa. Mas já faz quase um mês que não participa mais do tal programa, por conta da legislação eleitoral. Ainda assim, subiu. Eu colocaria à mesa também para reflexão portanto o fato de São Paulo ser uma cidade historicamente conservadora, mas já não mais suportar José Serra (quase 40% de rejeição), fortemente identificado com o prefeito Gilberto Kassab (PSD), que é por sua vez pessimamente avaliado pela população (nota 4,4, de acordo com o Datafolha, numa escala de zero a dez). Assim, minha hipótese é que uma parte desses votos conservadores estaria escorregando para a candidatura Russomano, o "fato novo" a ser sustentado. Já não seriam votos tão voláteis assim.

Os staffs das duas campanhas (Serra e Haddad) vão recorrer a partir de agora a todos os chavões, a justificar os cenários angustiantes: "é a fotografia do momento, a pesquisa que vale é a das urnas, o jogo ainda não começou, o paulistano só vai se preocupar com a eleição depois da Olimpíada, Lula e Dilma serão decisivos, Alckmin será fator diferencial, quem vai resolver mesmo será o horário eleitoral gratuito...". Reconheço que estamos falando de algo provisório, de conjunturas suscetíveis a mudanças e flutuações, mais ou menos profundas. Mas o fato concreto é que o ponto de partida para os candidatos tucano e petista para a reta final da campanha, por razões distintas, é muito ruim. 

Talvez esteja aqui a grande novidade sugerida pela pesquisa Datafolha: pode não acontecer a tão sonhada "mãe de todas as batalhas", anunciada com entusiasmo e cantada em verso e prosa por representativa parcela do exército lulo-petista, ansioso por fincar a bandeira com a estrela na capital paulista, que é considerada um dos últimos bastiões (o outro seria o estado de São Paulo) da oposição no país. 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

"LA DOCE" - COMO ATUA UMA TORCIDA ORGANIZADA MAFIOSA


Foto: Debate na Livraria Cultura sobre 'La Doce', a torcida-máfia do Boca, com o jornalista argentino Gustavo Grabia e PVC.
Na Livraria Cultura, ao lado de Paulo Vinicius Coelho,
Gustavo Grabia define La Doce: "É máfia, Estado paralelo". 






































É bastante comum ouvir em papos de boleiros que "ninguém torce como a torcida do Boca". Trata-se de evidente manifestação de reverência e admiração pelos xeneizes, como são também conhecidos os apaixonados boquenses, que durante os jogos da equipe não param de pular e de cantar nem por um minuto, exibindo orgulhosamente suas camisas e faixas azuis e amarelas, em festas com foguetórios e papel picado, além da tradicional "avalanche", quando os torcedores descem correndo as arquibancadas, em movimentos sincronizados, para comemorar os gols. De fato, é um espetáculo futebolístico marcante. Para os brasileiros que visitam Buenos Aires, a capital argentina, o estádio de La Bombonera, no famoso bairro de La Boca, é ponto turístico, parada obrigatória.

É gigantescamente diferente, no entanto, a torcida do Boca Juniors - ou pelo menos uma parcela bastante representativa dela, a organizada La Doce, a principal do clube - revelada pelas investigações feitas pelo jornalista portenho Gustavo Grabia, do diário esportivo "Olé". Para além do futebol, La Doce surge como uma poderosa, temida e muito bem organizada instituição mafiosa. Promove brigas e roubos nos estádios, envolve-se com assassinatos, cobra pelo estacionamento de carros nas imediações do campo, vende ingressos irregularmente, ameaça jogadores, jornalistas e dirigentes, dá sustentação para candidatos em campanhas políticas e dispõe de uma fundação, com atuação legal, para lavar grana do narcotráfico. De acordo com a pesquisa de Grabia, arrecada cerca de 500 mil dólares por mês - ou algo em torno de cinco a seis milhões de dólares ao ano. 

"É uma facção criminosa, que tem relações muito próximas com a polícia, e que atua como tropa de choque e braço armado de muitos políticos", afirmou o jornalista argentino, em conversa que aconteceu na noite de terça-feira, 17 de julho, na Livraria Cultura do Shopping Bourbon Pompeia, e que contou também com as presenças de Paulo Vinícius Coelho (O Estado de São Paulo e ESPN), Wagner Bordin (globoesporte.com), José Renato Santiago (autor de "Os distintivos de futebol mais curiosos do mundo") e Joza Novalis (site futebolportenho.com.br). 

Grabia esteve por aqui para vários eventos de lançamento do livro "La Doce - A explosiva história da torcida organizada mais temida do mundo", que traz os detalhes da pesquisa feita por ele e escancara as relações perigosas mantidas pela facção e os crimes cometidos por dirigentes e associados da torcida. No bate-papo na Cultura, ele traçou um resumo da obra. Contou várias histórias. Todas estarrecedoras. Citou episódio em que um representante da unidade de polícia desportiva encarregado de fiscalizar a torcida do Boca foi levado a julgamento exatamente por desempenhar função oposta: acusado de ser o responsável por fazer chegar armas aos torcedores que entravam no estádio, sem que precisassem passar pela fiscalização e "gerais" na entrada. 

Lembrou de várias situações em que policiais, mesmo com ordens judiciais, se recusavam a entrar nas tribunas reservadas à Doce para efetuar as prisões. Tinham medo. Em outro episódio emblemático citado pelo jornalista, alguns policiais foram forçados pelo sistema judiciário a atuar de acordo com a lei e, depois de passar por carrancas, caras feias e bloqueios e corredores e cordões de proteção de torcedores, conseguiram chegar às arquibancadas. Foram violentamente atacados pelos xeneizes da Doce e tiveram suas armas roubadas. "Saíram vivos de lá por milagre. No estádio, a lei é deles, há um Estado paralelo", disse Grabia. E completou: "Dirigentes da Doce acabam sendo mais idolatrados e respeitados do que craques como Palermo ou Riquelme". Ele revelou que, na Argentina, líderes de torcidas são vistos como pop stars, verdadeiras celebridades. "Em conquistas de títulos, fotos e pôsteres dos chefes organizados carregando jogadores nos ombros são dos artigos mais procurados e desejados pelos torcedores. Vendem aos milhares". 

O jornalista recordou também indignado dos 250 torcedores organizados boquenses que viajaram para a Copa do Mundo da África do Sul, com regalias e todas as despesas pagas pela Associação de Futebol Argentina (AFA), no mesmo avião que transportou a seleção nacional. "Foram junto com Messi, Tévez, Higuaín... uma locura!". No Mundial, os barra bravas fizeram arruaças, envolveram-se em brigas e alguns acabaram sendo deportados do país. "Passamos vergonha", lamentou Grabia. Segundo ele, naquele momento as relações com a cúpula do futebol argentino tornaram-se ainda mais estreitas por conta do fato de o técnico da seleção ter sido Diego Maradona, ídolo do clube. "E Maradona tem a capacidade de se aliar com o que há de pior. Foi assim na Itália, em Nápoles, quando matinha contatos com a Camorra". 

É justamente por conta do enraizamento dessa atuação mafiosa que a violência patrocinada pelas torcidas organizadas na Argentina pode ser dividida em dois momentos distintos. Até 2002, as mortes aconteciam por conta do enfrentamento entre gangues rivais - Boca Juniors x River Plate, por exemplo. A partir daquele ano, com a profissionalização dos negócios, os confrontos passam a acontecer dentro das próprias torcidas. "As facções rivais se digladiam para ver quem vai administrar as fortunas que são arrecadadas. E há gerações de mafiosos que vão se sucedendo".

No livro, Grabia reconstrói essa genealogia. Nos anos 1960, o capo era Enrique Ocampo, também conhecido como "El Carnicero" (dispensa explicações). Foi sucedido nos anos 80 por José Barrita, o "Abuelo", sujeito truculento e autoritário e que andava sempre acompanhado por um revólver calibre 38. O reinado chegou ao fim com a prisão do líder, em meados dos 90, quando subiu ao trono Rafael Di Zeo, que sempre se gabou de "ter os telefones dos poderosos" e casou-se com a secretária particular do então governador da província de Buenos Aires, Felipe Solá, além de ser homem de confiança de Mauricio Macri, atual governador de Buenos Aires e ex-presidente do Boca.

Di Zeo acabou preso em 2007 e foi sucedido por Mauro Martín, atual líder da Doce. Solto no final do ano passado, Di Zeo foi protagonista de mais uma história tenebrosa contada por Grabia, um dos capítulos mais tristes da história recente do Boca. No final de semana seguinte à conquista da liberdade, Di Zeo foi a La Bombonera acompanhado de seus seguidores fiéis, disposto a recuperar o poder perdido. Instalaram-se nas arquibancadas de visitantes. A facção comandada por Martín também estava lá, na arquibancada oposta. O mesmo clube, duas torcidas se ameaçando e se olhando com raiva, e um clima de terror que assustou jornalistas e autoridades públicas.

Sobre a relação com políticos, Grabia lembrou que as organizadas são pagas (verdadeiras fortunas) para atuar a favor de determinadas candidaturas. Obviamente, depois cobram a fatura, na forma de proteção e privilégios, vistas grossas para os crimes que cometem. Com os jogadores, a conexão envolve o pagamento de espécie de pedágio - para não correr riscos e escapar de críticas e ataques, os atletas do clube se submetem a participar de gigantescas festas patrocinadas pela Doce, que chegam a reunir 500 mil pessoas, e onde a torcida coloca em prática mais um mecanismo para ajudar a encher seus cofres, cobrando por autógrafos e fotos com os ídolos. "É uma maneira de os jogadores tentarem viver em paz", disse o jornalista do Olé. 

Sossego, aliás, que o próprio Grabia viu ameaçado em várias situações, por conta das investigações que faz e das reportagens que publica. A torcida, obviamente, não gosta. "Mas tenho ainda mais medo da polícia que dos torcedores. Os policiais têm informação privilegiada, o respaldo do setor público. Já cheguei a receber telefonemas deles dizendo que sabem onde moro, que conhecem minha rotina, que sabem onde meus filhos estudam. Não tenho muito como me defender, é a polícia! Só me restou recorrer à chefia do jornal Clarín, o mais importante do país e responsável pelo Olé, que rebateu e disse que, se algo acontecesse a mim, o jornal publicaria denúncias pesadíssimas contra a corporação". 

Sobre o futuro, Grabia é pessimista. Para ele, acabar com as organizadas mafiosas exige vontade política. Mas o governo, beneficiado pelo estado das coisas, não atua para promover mudanças. E a degradação social vivida nos últimos anos pela Argentina só faz aumentar a procura pelas organizadas, principalmente por parte dos jovens. Os chefes das facções, de acordo com Grabia, são das classes mais abastadas; os mais pobres tocam a rotina e o serviço sujo. "Há uma fratura social também nas organizadas, divisão de tarefas. Há os que mandam e os que agem". Além disso, ele diz que o futebol é atualmente a única instituição ainda respeitada no país vizinho, que oferece identidade, reconhecimento e coesão. "Por conta disso, os jovens são facilmente recrutados. Outras utopias se foram", lamentou. 

terça-feira, 17 de julho de 2012

AIDS - O REMÉDIO LIBERADO PELOS EUA NÃO É UMA VACINA

É destaque e manchete em todos os jornais de hoje, depois de ter estourado nas rádios, nos telejornais, nos portais e nas redes sociais ontem: o governo dos Estados Unidos liberou, pela primeira vez, que o medicamento Truvada possa ser usado de forma preventiva, ou seja, com intuito de impedir que seres humanos acabem infectados pelo HIV, o vírus da Aids. A notícia é certamente promissora, mas deve ser também encarada com responsabilidade e cautela. Pode representar mais uma etapa relevante na definição de estratégias múltiplas de combate à doença que atinge, oficialmente, 34 milhões de pessoas em todo o planeta, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas a medida está longe, bem longe de significar a cura definitiva da Aids.

Como resultado de quase três décadas de investigações e avanços, o Truvada já é um medicamento antirretroviral que faz parte do popular coquetel usado no tratamento da doença, sendo ministrado depois que a Aids foi constatada e diagnosticada; o que os testes feitos recentemente nos Estados Unidos agora sugerem é que a droga foi efetivamente eficiente também em reduzir, em média em 70%, o risco de alguém ser infectado pelo vírus. Essa é a novidade.

Esse cenário, no entanto, talvez possa criar euforia desmedida e consolidar falsas expectativas na opinião pública. Alguém poderá considerar "ah, então chegamos finalmente a encontrar uma vacina contra a Aids!". Cuidado. Muito longe disso, ao menos por enquanto. Porque, de forma bem simples, o que uma vacina faz é carregar consigo informações genéticas atenuadas e inofensivas de agentes invasores nocivos e causadores de doenças; por isso, quando é ministrada, uma vacina imediatamente estimula o nosso sistema imunológico a ficar alerta e ligado, capaz de produzir anticorpos. Se e quando o organismo for efetivamente infectado por um vírus, por exemplo, os anticorpos, já estimulados, irão reconhecer aquela invasão não desejada e imediatamente se deslocarão para atacar o destruir o vírus, garantindo segurança e proteção. Podemos dizer que essa é uma estratégia ofensiva, colocada em prática pela seleção da Espanha, que acua o adversário no campo dele e atua de forma incisiva e protagonista para derrotá-lo.

O desafio gigantesco que desde o início da epidemia está colocado para pesquisadores e autoridades de saúde pública que estudam e tratam a Aids reside nas artimanhas que o HIV conseguiu desenvolver, como estratégia evolutiva e de sobrevivência, e que coloca em prática ao atacar o ser humano. Como tem apenas RNA (sem DNA), o HIV precisa necessariamente se grudar às nossas células de defesa, para se apropriar do material genético delas e garantir reprodução. O vírus da Aids é inteligente e ardiloso, traiçoeiro, e tem ao menos outras três peculiaridades e vantagens comparativas: replica-se de forma acelerada, é mutante (tem várias "caras" moleculares) e é recombinante (os diferentes subtipos podem se misturar).  

Por conta dessas singularidades do HIV, portanto, uma estratégia ativa e ofensiva, via vacina, e até onde as pesquisas hoje conseguem alcançar, acaba sendo suicida: o vírus leva sempre vantagem em relação aos anticorpos, destrói os linfócitos e deixa o nosso sistema de defesa absolutamente atordoado e aparvalhado, sem saber ao certo que resposta oferecer à invasão do elemento estranho, e terreno fértil e aberto para a instalação das infecções oportunistas e da consequente manifestação da Aids.

De forma tão inteligente quanto eficaz, e novamente tentando simplificar a explicação de um mecanismo que é extremamente complexo, o que os medicamentos antirretrovirais fazem é evitar esse enfrentamento desvantajoso, criando uma espécie de barreira ou escudo de proteção, que impede que o HIV consiga chegar a destruir as células de defesa. Assim, por conta do próprio ciclo de vida do vírus (nasce, cresce, reproduz-se e morre), e sem ter acesso à matéria-prima que garante sua replicação (DNA), a carga do HIV no organismo acaba sendo reduzida de forma drástica, quando é possível afirmar que a doença foi controlada, embora a pessoa não tenha sido curada. Para usar a mesma analogia, é uma tática usada por equipes como o Chelsea e o Corinthians, que organizam eficientes sistemas de marcação e de defesa e não permitem que os adversários se aproximem das áreas deles. 

A contrapartida - são vários os antirretrovirais que precisam ser tomados, dependendo da gravidade e do estágio da doença (por conta das várias faces do vírus), em horários extremamente rígidos (para dar conta do ciclo de vida do HIV e evitar resistência ao tratamento), com custos financeiros elevados e nem sempre acessíveis à maioria da população (o que exige a atuação do Estado como definidor de políticas públicas) e com efeitos colaterais bastante desagradáveis. O portador do HIV deverá ainda tomar tais medicamentos durante toda a vida. Se não é mais sentença de morte, a Aids é sim uma doença crônica.

O que as autoridades estadunidenses agora permitem é que o Truvada, já usado no controle, seja ministrado também para tentar impedir a infecção. O que se faz é antecipar o uso dessa droga, oferecendo-a a uma pessoa sadia, mas com comportamento de risco. Aí entram as discussões: vale a pena?

Porque, repetindo, a pessoa é sadia, e provavelmente passará a conviver com náuseas, tonturas, diarréias, problemas renais e propensão ampliada para osteoporose - efeitos colaterais provocados especificamente pelo Truvada. O custo do tratamento é elevado e estimado em aproximadamente 20 mil reais por ano, por paciente. As próprias autoridades estadunidenses recomendam que a droga seja ministrada preferencialmente aos que mantêm comportamentos de risco (me parece que seria mesmo uma insanidade disponibilizar o medicamento para quem quisesse ficar seguro) e alertam ainda que o Truvada não substitui a camisinha como mais importante medida para evitar a transmissão do HIV.

No UOLo diretor do departamento de HIV/Aids da Organização Mundial da Saúde, Gottfried Hirnschall, afirmou que "os remédios antirretrovirais podem reduzir o risco de que as pessoas infectadas transmitam o vírus e evitar que as pessoas saudáveis sejam infectadas através de relações sexuais com parceiros com HIV, apesar dessas novas possibilidades gerarem controvérsia".

Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo (versão impressa), David Uip, infectologista e diretor do Hospital Emílio Ribas, afirmou ser completamente contra a adoção do Truvada como estratégia de saúde pública, pois "há métodos mais eficazes de enfrentar a doença". Também na Folha, o infectologista Caio Rosenthal completou: "se o uso do medicamento não for adequado, aumenta o risco de o vírus desenvolver resistência contra o remédio".

Assim é a ciência - uma sucessão de verdades provisórias, uma narrativa de mundo onde uma descoberta gera otimismo e deve ser comemorada, mas pode ser refutada cientificamente. Por isso a ciência é fascinante, pois lida diretamente com as habilidades humanas, e também com nossas limitações. Cada avanço ou resposta suscita tantas outras questões e dúvidas, e assim sucessivamente. 

No caso da Aids, portanto, sem desconsiderar as novidades promissoras, a recomendação permanece: informação (sem tabus ou preconceitos), comportamento sexual responsável e o uso de preservativos continuam sendo as medidas mais adequadas para evitar a doença.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

JORNALISMO E GUERRILHA DO ARAGUAIA


Desembarcou nas livrarias, no mês de junho, o livro "Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia", escrito pelo jornalista Leonencio Nossa, repórter do jornal O Estado de São Paulo. Trata-se de um exemplo muito bem acabado de reportagem que reúne rigor de pesquisa com competência narrativa. A obra resgata um dos episódios mais relevantes - e pouco conhecidos - da nossa história recente, o foco guerrilheiro instalado pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B) na região central do país, no final dos anos 1960 e início dos 70, quando a ditadura militar viu-se obrigada a mobilizar tropas e a enviar cerca de treze mil soldados para a área, com intuito declarado de literalmente exterminar os jovens que desejavam acabar com o regime de repressão. A pesquisa de Leonencio revela datas e  detalhes das condições em que foram assassinados, depois de capturados e presos, 41 guerrilheiros (o número total de resistentes é controverso), ajudando a desmontar o discurso oficial do "necessário enfrentamento com subversivos perigosos ocorrido no coração do Brasil". Ali foram cometidos crimes de guerra, patrocinados pelo Estado brasileiro.

Em palestra realizada no Sétimo Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e realizado na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, Leonencio contou que o interesse pelo Araguaia foi despertado em 1997, quando ele leu num jornal de Vitória (Espírito Santo), sua cidade natal, uma notinha a respeito da trajetória de Áurea Valadão, que estudava Física no Rio de Janeiro (UFRJ) e participou da guerrilha. "Algo me incomodou, mexeu comigo. E aquela matéria ficou martelando na minha cabeça".

Foi apenas em 2002, cinco anos depois, que o jornalista conseguiu visitar pela primeira vez a cidade de Curionópolis, fundada por prostitutas à época da explosão do ouro no garimpo de Serra Pelada e cujo nome presta homenagem evidente a Sebastião Curió, major responsável por comandar as operações de combate à guerrilha e que mais tarde administraria o município por quase dois mandatos (foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral ao final do segundo, em 2008, por compra de votos e abuso de poder econômico). Curió já tinha ameaçado, em várias oportunidades, escrever um livro em que prometia escancarar todas as suas memórias - e os arquivos que tinha guardado. Era justamente esse o livro que Leonencio desejava escrever. O jornalista viu-se diante do desafio de inverter a mão de direção e de convencer o militar a falar - para ele. "Faltava na bibliografia sobre o Araguaia um perfil do major Curió, que pudesse contemplar também as percepções e os depoimentos das pessoas simples, os anônimos da região amazônica, que nunca tinham sido ouvidos".

Na tentativa de conquistar a confiança do militar, foram várias as viagens feitas à região, horas e horas de conversas gravadas - e outras tantas colhidas em lugares barulhentos, para que não pudessem ser registradas, ou até mesmo passadas por meio de bilhetinhos em pedaços de papel -, além de experiências inusitadas. Leonencio chegou a exibir três filmes para Curió, para sensibilizá-lo, nesta ordem: "Nascido para matar", de Stanley Kubrick (que Curió achou fraco); "Platoon", de Oliver Stone (o militar adorou as armas exibidas); e "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola - que finalmente tocou o coração do major. "Para convencer uma fonte, não há passe de mágica. Foi um processo, há um jogo que se estabelece entre biógrafo e biografado. Ele via que eu não ia desistir, sabia que eu ia publicar o livro. E parece ter entendido a importância de participar, até para ficar menos vilão nessa narrativa", contou o jornalista. 

Segundo Leonencio, a relação exigiu exercício diário de distanciamento, para não virar amigo da fonte. "Quando você passa a gostar de ou a odiar uma figura, fica contaminado e perde de alcance os melhores momentos da trajetória que tenta narrar". Para ele, essa postura de transparência e honestidade e o fato de ter deixado muito claro para Curió qual é a razão de ser de um trabalho jornalístico - construir a melhor versão possível da realidade - foram determinantes para finalmente cativar o militar. "Ele sabia com exatidão o que eu estava fazendo", lembra. Ao final, Curió acabou cedendo e oferecendo ao repórter acesso privilegiado aos arquivos que até então eram mantidos trancafiados a sete chaves - anotações pessoais, relatórios, fotos e mapas que foram preciosíssimos na tarefa de colaborar para costurar o enredo. "É um tanto quanto subjetivo, reconheço, mas acho que chega um momento em que a gente não aguenta mais, é preciso contar os segredos que conhecemos, por mais terríveis que eles sejam. Penso que foi assim que se deu com Curió", afirmou Leonencio. "Foi ainda um sinal evidente de que os arquivos produzidos pelos órgãos de inteligência da repressão existem e precisam ser tornados públicos", completou.        

Para não ficar refém da fala de Curió, ele teve disposição e paciência para ouvir - algo raro em tempos de celebridades, quando muitos só querem falar e se expor - outras 150 pessoas, principalmente moradores humildes e desconhecidos da região do Araguaia, além de familiares dos guerrilheiros assassinados. "A diversidade é um preceito básico do jornalismo, que nos aproxima da história real", confirmou. Leonencio contou também que o processo de escrita andou junto com a apuração - "não esperei encerrar um para começar outro". A percepção de que o trabalho havia chegado ao fim deu-se a partir de três episódios: quando conseguiu entrevistar o sujeito que havia prendido Áurea Valadão; depois que pôde confirmar detalhes sobre barbaridades cometidas pelos militares, que deceparam cabeças de muitos guerrilheiros, como espécies de troféus; e quando esteve em um tradicional colégio da cidade de Vitória para procurar os boletins de dois militantes do PC do B que atuaram no Araguaia e acabou se deparando com sua própria ficha escolar. "Pensei: estou ficando maluco, é hora de publicar o livro".

Em 2007, concluiu um catatau que tinha aproximadamente 800 páginas. Mostrou os originais a um amigo que conhece bem a história do país. Educadamente, o colega disse que "não dava, não ia virar". O jornalista jogou tudo fora e recomeçou do zero. Em maio de 2009, frio na barriga: Leonencio ficou sabendo que um colega do "Jornal Nacional", da Rede Globo, havia procurado o major Curió e tentado convencer o militar a abrir os arquivos em uma matéria que seria produzida e veiculada pela emissora carioca. "Se aquilo tudo viesse à tona naquele momento, todo meu trabalho e o livro perderiam sentido", avaliou. A solução foi usar um truque jornalístico: Leonencio publicou, no "Estadão", uma reportagem especial sobre a guerrilha, dando conta conta especificamente das execuções e do número de mortos, desnudando algumas informações, mas preservando outras. No jargão da profissão, a Globo tinha sido "furada". E acabou perdendo o interesse por Curió. Leonencio pôode concluir a pesquisa e encerrar a escrita do livro, sem concorrentes. 

"É uma história com forte viés humanista, que procura compreender os sentimentos e a entrega daqueles jovens idealistas que foram para o Araguaia lutar contra a ditadura, e que não aceita os crimes de guerra cometidos pela repressão. Mas não sou irresponsável de dizer que é o relato definitivo. Que outros sejam escritos". 

No limite, o que a obra faz elegantemente é revelar as possibilidades e os limites de uma reportagem, justamente o tema da palestra de Leonencio no Congresso da Abraji. 

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Leia também entrevista com Leonencio Nossa publicada pela revista Giz, do Sindicato dos Professores de São Paulo

QUANDO FALA PORTUGAL


(*) Elisa Marconi, radialista e professora universitária




Eu realmente acredito que deve ter havido uma reprogramação em cada uma das minhas células quando viajei a Portugal em setembro do ano passado. Curioso que as pessoas não reparem nisso. Será que não está marcado na minha cara, no meu jeito de falar, de me expressar? Ainda na noite da última terça-feira, falei a dois portugueses que minha estada em terras portuguesas tinha mudado minha vida e eles, os dois, me olharam com tamanho espanto. Não dá mesmo para ver?

Voltei embriagada da Livraria da Vila, louca para contar o que se passou lá. Não embriagada do vinhozinho branco que até tomei, mas extasiada pela troca intensa que aconteceu de novo e que tenho vivido com Portugal desde que se aventou a possibilidade de eu ir, há cerca de um ano. Já escrevi sobre isso neste mesmo blog, por isso poupo o leitor do detalhes. Mas o fato é que desde julho do ano passado venho tendo um caso de amor com a literatura portuguesa, com o pensamento português a respeito da comunicação e com o traço que mais admiro em tudo que é genuinamente marcado pelo espírito luso: o tanto que essa gente se leva a sério, crê em si e no que faz, bota fé nas pesquisas que realiza, e vende – com entusiasmo – os próprios projetos. Até o humor é sério, inteligente e me diverte mais que o inglês, ou o italiano.

A Flip do ano passado teve como expoente máximo o escritor valter hugo mãe, autor de “Máquina de fazer espanhóis”, que teve um sucesso arrebatador no Brasil, “O Remorso de Baltazar Serapião” (anterior à “Máquina”, mas lançado depois aqui) e “O filho de mil homens”, que ainda não li, mas era a grande novidade em Portugal em setembro passado. Uma convergência de fatores fez com que mãe fosse alçado a popstar. Não pude ver sua conferência em Paraty – porque estava tomando conta dos filhos –, mas fui vê-lo na pós-Flip, no cinema do Conjunto Nacional. Impressionou-me muito como por baixo de tanta tranquilidade, calma, placidez, existia um grande senso de humor, ironia fina, inteligente, cheia de boas referências. A tessitura da língua – tão nossa, mas ao mesmo tempo estrangeira – salta aos olhos (e aos ouvidos) como um bordado bem trabalhado, delicado e contundente, sem nós, sem remendos. 

Este ano, Dulce Maria Cardoso despontou como a estrela do sexo feminino da Festa Literária Internacional de Paraty. Do lado dos rapazes, Ian McEwan e Jonathan Franzen rivalizavam para ocupar o protagonismo da Festa. À mesa de Dulce, e também de Zuenir Ventura e João Carrascoza, no sábado à noite, adivinhem!, não pude ir. Novamente era minha vez de ficar com as crias. Mas, exatamente como no ano anterior, fui à conferência dela aqui em São Paulo, pós-Flip.  A alegria maior é que pertinho dela, no mesmo palco, figurava José Luis Peixoto, que não participou das mesas oficiais da Flip, mas de quem muito ouvi falar. Dulce tem olhos que sorriem, e a cada instante beiram o derramamento da emoção, e é autora de “Retorno”, o livro mais comentado da Festa. Quando veio a São Paulo, no ano passado, valter hugo mãe avisou: vem aí ao Brasil a Dulce. Prestem atenção nela. 

E eu prestei. Li tudo que saiu sobre ela, as resenhas, as entrevistas e me preparei para esse encontro. Vá lá, ainda não li o livro, mas foi de propósito. Estava cá humanizando a autora para chegar ao texto com um pouco mais de proximidade. Peixoto, que tem tatuagens e piercings, é de novo aquele mistério. Por trás de uma figura forte, presente, de voz firme – e veias que saltam no pescoço quando lê trechos de suas obras – mora uma candura, uma gentileza, e muito bom e inteligente humor. Ele é autor de “Livro”, que saiu recentemente no país, e de “Abraço”, esse sim muito muito comentado quando se fala em literatura portuguesa atual. Tem ainda outros dois romances e livros de poesia e peças de teatro. Parte publicado aqui, parte não.

Peguei a senha 51 para tentar disputar um espacinho no chão, já que no auditório da Livraria da Vila cabem só 40 seres humanos. Quando liberaram a entrada dos “sem cadeira”, corri para a frente do tablado, sentei no chão, empunhei a caneta e liguei os sensores todos. Quando Dulce entrou, duvidei por um momento que fosse a mesma escritora que vi de longe na Flip. Naquela noite, chegamos à tenda dos autores quando ela dava autógrafos e no exato momento em que a professora da minha filha estava pedindo seu autógrafo. Sinalizei à professora para que ela avisasse a Dulce que eu estava ali na multidão. A escritora me viu e acenou graciosamente. Contudo, por uma razão qualquer, vi uma senhora gordinha, de casacão vermelho, e um tanto entristecida. Coisa que não combinava em nada com a força e a sensibilidade que exalavam nas entrevistas e nas resenhas que eu havia sorvido antes. 

Mas quando ela subiu no tablado hoje, aí sim! Uma moça bonita, jovem, firme, bem interessante. Olhos sorridentes, riso largo e o velho bom humor português. A primeira fala foi, na verdade, uma gargalhada. E uma justificativa para o riso. Se decepcionara ao saber que – mais uma vez – o microfone funcionava perfeitamente de forma que – mais uma vez – ela não poderia realizar o sonho antigo de testar o som falando “1, 2, 3, testando”. A plateia vai a primeira vez ao riso.

O mediador começa perguntando se os autores sabem explicar por que Dulce, mais velha – com algo em torno dos 50 anos – tem menos livros publicados que Peixoto. Ela começa: “Não existe um ritmo certo para escrever. A escrita é uma profissão como outra qualquer, encaro assim esse ofício. E só escrevo quando tenho algo a dizer. E esses momentos não podem ser contados assim uma vez ao ano, ou a cada dois anos”. E completa começando a abrir caminho para os segredos de sua literatura: “escrever com datas marcadas é uma ideia contrária à literatura, ou à minha literatura. Esse romance agora é o quarto, trata de coisas que vivi na infância, mas só agora pude contar essa história, porque só agora tive algo a dizer”. 

José Luis Peixoto é muito menos econômico. Já tem dez livros e garante que o que tem publicado não é nem metade do que ele escreve. Escreve desesperadamente, afirmou. Tanto assim que tem poemas, peças de teatro, contos, romances e até “colaborações com fotógrafos e joalherias”, brinca, arrancando mais risos da audiência. “Para mim, o processo de escrever é muito intenso, quando estou me dedicando a isso, faço só isso, porque se não for assim, de verdade, eu não acredito. Curiosamente, essa entrega acontece mais ou menos a cada quatro anos, como os Jogos Olímpicos”, responde. Seja com tempo contado ou não, Peixoto revela uma faceta importante de toda a sua obra: “A gente só pode fazer um romance se se apaixona por ele, se acredita com todo o sangue. Só é possível dormir bem sabendo que eu fiz isso”. Para o escritor, o tempo é o bem mais precioso (chego a ouvir com o sotaque lisboeta ele dizer: “chega uma hora que a pessoa vai perceber que o carro não é importante, a casa não é importante. Importante é o tempo que se tinha e o que se fez, ou se pode fazer com ele”, coisa mais linda) para todos nós. 

E escrever um romance é, de alguma maneira, interferir no tempo do leitor, propor uma forma para a pessoa usar esse tempo. “O que não deixa de ser uma tremenda ousadia”. Dulce concorda. “Acho que toda proposta artística é uma grande arrogância, porque vai mexer com a vida de alguém, que se entrega à obra que o artista produziu”. E, também para a autora, o tempo que vale a pena é aquele em que há entrega a um projeto, o artista se entrega todo e o público também frui com muita verdade.

Infinitas vezes indagada sobre se esse romance “O retorno” é autobiográfico, Dulce nunca cansa de dizer que não, embora garanta que quem pergunta não acredita e fica procurando brechas na narrativa e na fala da escritora para provar que é sim uma autobiografia. Ela ri, e ensina: “Ficcionar parte do que vivemos, claro. Mas às vezes é preciso mentir para contar uma história, porque a verdade às vezes não serve”. Claro que há elementos em comum entre Dulce e seu personagem Rui, um adolescente de 15 anos que encara a ruína do império português depois da Revolução dos Cravos, em 1974. “Eu não sou Rui. Aliás o Rui existiu de verdade, era meu amigo e perdi o contato com ele. O nome é uma homenagem a esse amigo, mas também – e eu só percebi isso no decorrer da escrita – é o imperativo do verbo ruir. Incrível, né? Essas coisas só acontecem nessa entrega”. 

Posso ver os olhos marejados da autora. O tema principal do romance é, segundo a autora, a perda. Perda que ela viveu, que Rui viveu, mas que quase todo mundo vive um dia. José Luis Peixoto emenda: “As histórias são sempre nossas e nunca são nossas, ao mesmo tempo”. Em “Livro”, o romance mais recente, Peixoto trata de uma fase da história portuguesa que, embora esteja presente na memória oral, em poemas e em canções, nunca teve um romance inteiro dedicado a ela. “Entre 1960 e 1975, calcula-se que cerca de 1,5 milhão de portugueses – 15% de toda a população – foram viver na França para fugir da ditadura de Salazar. Aldeias inteiras como Trás dos Montes e Valdez ficaram esvaziadas. Foram em situação ruim, fugidos, viviam – no mais das vezes – em situação muito pior que em Portugal, e ainda doi muito, tanto que Portugal não quer falar disso”. 

Tudo isso se deu antes do escritor nascer e seus pais fizeram parte dessa geração que emigrou para a França e voltou depois. “Eu não vivi, porque nasci depois que meus pais voltaram a Portugal, poucos meses depois do 25 de abril de 1974. Então, embora não seja a minha história é, de alguma maneira, minha também. E eu precisei contar uma história que não vivi para contar a minha história”. Tempo em suspensão. A plateia nem respira. “Gosto muito de um senhor chamado Faulkner (William Faulkner, um dos principais escritores estadunidenses) que diz que o passado não é nem sequer passado. E eu acredito nisso, o passado é um tanto a apreciação, a afeição que temos por ele”, propõe Peixoto. Quem passou por essa fase ainda fala dessa história em carne viva, por isso o autor foi conhecer algo alheio para saber mais de si mesmo.

Certa vez escrevi que ir a Portugal era, para mim, como fechar a ponta de um triângulo (Portugal – Brasil – África) que, até então, estava incompleto. Sou muito brasileira, cresci na Bahia, onde havia África por todos os poros, mas ainda não tinha visto a ponta branca de perto, sentido seu cheiro, tocado sua pele. Daí porque a saudade de uma terra que nem é minha por herança familiar. E, assim, ouvir os escritores portugueses contando suas histórias – que nem são deles, mas são um tanto minhas –, apontando onde Portugal lhes doi e trabalhando tudo isso em forma de arte é tão transformador. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A MATEMÁTICA BURRA DE PH GANSO



Fonte - Blog do Milton Neves
Crédito imagem -  @CowboySl

Não vou aqui nem de longe enveredar pela discussão a respeito do "beijo no escudo" ou sobre "as juras eternas de amor e fidelidade, na saúde ou na doença, a este ou àquele clube". Vou tratar de negócios, de mercado, de imagens, de patrocínios, de empresários, de contratos, de potencial de venda/consumo. Foi nisso tudo, afinal, em que se transformou o cantado em verso e prosa "futebol moderno". Nesse campo onde o esporte também acontece, verde não pela grama, mas pela grana que movimenta, os jogadores são protagonistas, assessorados por novos oráculos, os empresários. E, se essas são as variáveis a considerar, lamento, mas os fatos me obrigam a concluir que Paulo Henrique Ganso e seu staff de empresários (a DIS, do grupo Sonda) parecem não saber fazer contas elementares.

A novela da renovação do contrato do meia com o Santos - e a tal da "valorização", tão cobrada pelo atleta - começou no início do segundo semestre de 2010, quando o time paulista já tinha se sagrado campeão paulista e da Copa do Brasil. Mas Ganso machucou seriamente o joelho numa partida contra o Grêmio, em agosto daquele ano, pelo Brasileirão. Ficaria quase sete meses afastado (o retorno aconteceu em 12 de março de 2011, contra o Botafogo de Ribeirão Preto, na Vila Belmiro, pelo Campeonato Paulista). As conversas esfriaram. 

O Santos retomou as investidas, com força, em abril de 2011, quando Ganso voltou a disputar a Taça Libertadores da América, mais especificamente às vésperas da partida decisiva contra o Cerro Porteño, no Paraguai, ainda pela fase de grupos (dia 14 de abril). Especula-se que, naquela ocasião, o Santos fez oferta de cerca de 500 mil reais mensais ao camisa 10, mais porcentagem significativa nos direitos de imagem/contratos publicitários, além de equipe profissional para assessorar a carreira do jogador, como acontece atualmente com Neymar. 

Admitamos que a oferta tenha sido de "apenas" 400 mil reais/mês (salário próximo ao de Elano, oferta bastante razoável para a época). Coloquemos ainda como hipótese que, ao aceitar, Ganso receberia esse valor já a partir de maio do ano passado. Àquela altura, a remuneração dele era (e ainda é) de 160 mil reais/mês - a diferença entre o "velho e o novo" alcançaria assim 240 mil reais/mês. Mas Ganso fez birrinha e biquinho, foi tolinho, blefou (ameaçou até jogar no Corinthians, lembram?), vazou ofertas que nunca chegaram ao Santos (Milan, Internazionale...) e recusou a oferta santista, o que voltou a fazer no final do ano passado, antes e depois do Mundial de Clubes.

Resultado inteligentíssimo - entre maio de 2011 e julho de 2012 (período de quinze meses), Ganso deixou de arrecadar uma quantia bastante modesta: três milhões e seiscentos mil reais (240 mil vezes 15 meses). E, notem, estou somando apenas salários "normais" (sem férias, décimo terceiro...), e não estou contando também contratos publicitários possíveis. Já ouvi comentaristas da rádio Estadão/ESPN citarem especialistas e consultores no negócio futebol para garantir que, nesse período, Ganso deixou de embolsar cinco milhões de reais. Só.

Pois bem. Recentemente, relações aparentemente restabelecidas, o Santos entusiasmou-se a novamente procurar o jogador e apresentou a ele nova proposta de renovação. Notem bem, é importante: o Santos está amparado e resguardado, pois o atleta tem contrato até 2015, com multa rescisória fixada em 50 milhões de euros, para o mercado internacional. Ou seja, o Santos, em tese, sequer precisaria reajustar os valores pagos ao meia. Ainda assim, colocou à mesa, ao final da Libertadores/2012, uma oferta de 400 mil reais/mês (salário), mais 70% de participação nos contratos publicitários fechados a partir de então. Ganso disse... "NÃO"! Biquinho e birrinha, de novo. 

O caldo entornou. Porque o Santos, que não tem coisa alguma a perder, disse "então, dane-se. Chega". A DIS veio a público para anunciar que "PH Ganso não mais vestiria a camisa do Santos". Com o mercado internacional ressabiado, para dizer o mínimo (o futebol de Ganso anda bem pequenino, as lesões e cirurgias são frequentes, há boatos de mais uma operação no joelho depois da Olimpíada...), a crônica esportiva anuncia que o atleta deve ter como destino o Internacional de Porto Alegre, que parece estar se especializando em receber jogadores que arrumam encrencas em outros clubes e saem deles pelas portas dos fundos. 

De acordo com informação divulgada pelo Painel FC, do jornal Folha de São Paulo, nesta quarta-feira, 11 de julho, o clube gaúcho ofereceu (e Ganso já teria aceitado) salário de 350 mil reais/mês, mais 50% de publicidade - menos do que foi portanto oferecido pelo Santos. Vamos considerar hipoteticamente que Ganso assine - e cumpra - um contrato até dezembro de 2015, a contar de agosto de 2012. Seriam cinco meses neste ano e outros 36 meses (três anos) de vencimentos, totalizando 41 meses. A diferença entre o Santos e o Inter é de 50 mil/mês, pró alvinegro. Jogando no clube gaúcho, Ganso perderia mais dois milhões de reais, para arredondar (41 vezes 50 mil). Somando esse valor ao que já foi perdido no ano que passou (os três milhões e seiscentos mil já citados), chegamos a cinco milhões e 600 mil reais (repito, sem medo de ser chato: estou sendo conservador e contando só os salários). 

Imaginemos em seguida que Ganso resolva cumprir apenas um ano (é o que vem sendo ventilado) do contrato com o Inter (agosto 2012-agosto 2013), usando o clube colorado como trampolim para a Europa, aproveitando-se da janela de transferências do meio do ano que vem. Acumularia, em doze meses, prejuízo de mais 600 mil reais (50 mil vezes doze). 

Para resumir: no cenário mais otimista, Ganso contabilizaria um baque de pelo menos quatro milhões e 200 mil reais; na situação mais periclitante, a perda seria de cinco milhões e 600 mil. São valores que resolveriam - e com folga - a vida de muita gente, não? Eu daria pulos de alegria se pudesse ganhar qualquer uma dessas boladas. Para efeito de comparação, estamos falando de algo em torno de nove mil ou de seis mil e setecentos salários-mínimos, a depender do cenário considerado.

Que prejuízo, que bobagem, hein, Ganso? Quanta tolice! E, se futebol é negócio sério, profissionalizado, penso que chegou a hora, PH, de você demitir e mandar às favas os caras que "administram" sua carreira. Porque eles são simplesmente muito ruins com os números. 

domingo, 8 de julho de 2012

ENGAJAMENTO, PALAVRA MALDITA NA LITERATURA?

ESPECIAL FLIP


Figueiredo (camisa azul) e Dantas (camisa branca) : engajamento e sectarismo.
Foto - Divulgação FLIP



É possível - ou desejável - que os textos literários mantenham-se alheios e indiferentes às contradições sociais, apenas tangenciando, assepticamente, temas como violências, marginalidades e exclusões? Foi esse um dos faróis a iluminar a mesa "A imaginação engajada", que aconteceu no final da manhã de domingo, 8 de julho, último dia da Festa Literária  Internacional de Paraty (FLIP). O debate, tão elegante quanto divertido, reuniu os escritores carioca Rubens Figueiredo, autor do premiadíssimo "Passageiro do fim do dia", e o sergipano Francisco Dantas, que escreveu "Os desvalidos" e "Cadernos de ruminações". O encontro foi mediado por João Cesar de Castro Rocha, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Em sua apresentação, Castro Rocha foi categórico ao afirmar que tomar partido não é um problema - desde que essa postura contemple a diversidade e não negue partidos diferentes. "Quando essa negação acontece, enveredamos pelos monólogos e pelas acusações", alertou. Ele elogiou o cenário atual da literatura brasileira, marcada, segundo o professor, pela pluralidade e variedade de escolhas estéticas e pelo reconhecimento do diálogo possível com o outro, divergente. Segundo Costa Rocha, tanto Figueiredo quanto Dantas são legítimos representantes dessa tendência democrática, porque capazes de lançar olhares críticos sobre o real. "As obras deles constituem-se a partir de exercícios rigorosos de linguagem e de confronto sempre presente de ideias e histórias", reforçou.

Figueiredo confirmou que essa avaliação faz mesmo sentido ao logo em seguida narrar o processo de escrita de "Passageiro...", que tem como personagem principal um jovem chamado Pedro, que todas as sextas-feiras, no final da tarde, pega um ônibus lotado e enfrenta o trânsito caótico da cidade do Rio de Janeiro para visitar a namorada que mora num bairro periférico da capital, onde pobreza e precariedade são acentuadas. É uma história que aos poucos, e profundamente, vai revelando a multiplicidade de ambientes, sujeitos, semblantes, afetos, estranhamentos e condições humanas que habitam a cidade. 

O autor acabou por reconhecer que muito do que está contado no livro surgiu a partir da própria vivência dele - Figueiredo é professor da rede estadual de ensino, lecionando à noite, para alunos que vivem em condições de pobreza, exploração e opressão. Durante 25 anos, usou dois ônibus para ir e dois ônibus para voltar da escola onde dava aulas (recentemente, trocou o transporte coletivo pela bicicleta). Apesar da longa trajetória no magistério, descobriu a certa altura da vida - e ficou incomodado - que havia uma barreira que o afastava dos estudantes. "Era um mecanismo social, que nos leva a tratar o pobre como não igual, ao mesmo tempo em que nos empurra a perceber a situação de vida dessas pessoas e os dramas sociais como algo natural. Mais ainda, construímos justificativas para legitimar as desigualdades". Para ele, o abismo social é tão grande que dificulta a percepção e a compreensão de cenários banais e elementares - a gente até vê, mas não entende. E acaba por conviver. Ou esquecer.

"Passei a questionar a maneira como a literatura e a ficção muitas vezes lidam com essas questões, construindo anéis mágicos, como se, para escrever, fosse impositivo ficar isento, distante das experiências sociais e dos processos históricos". Desse questionamento, consolidou-se no autor a convicção de que a literatura é uma possibilidade de conhecer com mais profundidade as experiências humanas mais imediatas. "E o romance é capaz de dar essa contribuição, a partir da apresentação de visões críticas. Foi com essa noção que fiz esse livro". 

Dantas dedicou-se, em sua exposição, a diferenciar devaneio de imaginação - o primeiro seria um fenômeno mais livre, entrando até pela loucura; já o segundo conceito está ligado a uma ação disciplinadora, a um papel ordenador, para dar o resultado em palavras, no caso da literatura. Sobre engajamento, observou que essa palavra sempre foi fatídica para a literatura e lembrou que, na primeira metade do século XX, a imensa maioria dos escritores brasileiros - ele citou Jorge Amado, Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz - registrava em suas obras a presença muito marcante da luta de classes. Tal paradigma teria sido quebrado pela obra de João Guimarães Rosa, com suas narrativas rurais, ambientadas em pequenas comunidades, sem conflitos entre fazendeiros e trabalhadores. 

"Foi uma reviravolta. Guimarães veio para nos emancipar. A partir dele, não era mais necessário ter a carteirinha do partido para escrever". Dantas citou ainda uma fala do escritor estadunidense William Faulkner para reforçar o que pensa sobre engajamento: "há uma passagem em que ele diz que, se alguém estiver queimando ao lado dele, mas ele não se sentir incomodado com o cheiro ruim, que o sujeito que queima vá para o inferno, pois ele, Faulkner, vai continuar a escrever".

As reflexões de Dantas, no entanto, não devem ser confundidas com insensibilidade ou neutralidade. O que ele parece rejeitar - ao menos foi essa minha percepção - é o engajamento partidário, sectário, excludente; valoriza, no entanto, assim como Figueiredo, o engajamento do escritor que seja construído a partir dos compromissos com seu entorno, com as relações sociais e o próprio sentido de existência digna da humanidade. Para resumir: engajamento é diferente de sectarismo. "Também fico incomodado com as desigualdades sociais. Não vivo num limbo, mas mergulhado em uma sociedade. Escrevo para questionar ou transformar ou manter esses contextos, às vezes recorrendo inclusive a caricaturas. Mas um romance não pode ser nunca maniqueísta", alertou, finalizando. 

sábado, 7 de julho de 2012

O BOM ROMANCISTA É, POR DEFINIÇÃO, UM MANIPULADOR

ESPECIAL FLIP

McEwan (esq.) e Jennifer falaram sobre construção de personagens e
a relevância da pesquisa. A mediação foi de Arthur Dapieve (dir.)
Foto - Divulgação FLIP


Dois dos mais importantes autores em língua inglesa de nosso tempo, porque recorrem às múltiplas vozes narrativas para lidar, com singularidades, com uma agonia ancestral e universal, a incomodar o ser humano desde que nos reconhecemos como tal: a passagem rápida e provocante do tempo, sempre a nos desafiar e nos confrontar com nossa própria finitude, sem que jamais possamos controlar essa dimensão. Foi recorrendo a esses atributos literários que o jornalista e crítico musical de "O Globo", Arthur Dapieve, apresentou os escritores Ian McEwan, nascido na Inglaterra e autor de obras como "Reparação" e "Serena", que acaba de ser lançado no Brasil, e Jennifer Egan, estadunidense autora de "A visita cruel do tempo", que venceu o Pulitzer de Ficção de 2011. Os dois participaram da mesa "Pelos olhos do outro", no início da tarde deste sábado, 7 de julho, na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Travaram um diálogo inteligente, instigante e sedutor sobre processos criativos e a respeito da importância do romance em tempos de virtualidades e redes sociais.

Provocados pelo mediador, começaram contando como constroem seus personagens. Ian revelou que suas escolhas não são conscientes. Ele disse que embarca como um sonâmbulo na história, como se estivesse a pintar um primeiro traço do rosto, depois outro, mais um - e quanto mais avança no desenho do corpo e das expressões, mais se obriga a buscar traços cada vez mais coerentes e harmônicos. "Quando começo, não faço a menor ideia de como ficarão meus personagens, não consigo imaginá-los em definitivo. Eles simplesmente vão aparecendo", contou. Jennifer observou que procura sempre partir de uma atmosfera, de um espaço-tempo estabelecido, e garantiu que não escreve sobre a própria vida, nem se inspira em pessoas que conhece. "O que busco são as contradições e tento me imaginar nas cabeças de outras pessoas". 

Os dois concordaram com aquilo que consideram ser uma característica absolutamente fundamental e definidora do romance: nessa dinâmica criativa, é preciso encarnar outra pessoa, outra voz narrativa. "Deixar-se absorver e abrir-se a outras mentes. Estamos sempre e invariavelmente nos apoiando nos outros", marcou Ian, insistindo nessa palavra: outros. "Somos inventivos, ousados", completou Jennifer. Para eles, revelar as histórias a partir dos olhares e das percepções de mundo de alguém que não é exatamente o autor é uma das razões que confere força e atrativos ao gênero e que impede o romance de morrer.

Ao falar sobre esforço de pesquisa na construção da obra, a escritora estadunidense chegou a surpreender ao reconhecer que, para escrever "Torreão", livro recentemente lançado no Brasil, tentou inicialmente escapar desse esforço de apuração. "Achei que não havia necessidade, que a história não exigia. Foi desculpa para minha preguiça", continuou. Por conta dessa postura, ela admitiu que em diversos momentos da história, enquanto escrevia, sentia certa falta de autoridade nas descrições. "Não sabia por exemplo qual era o cheiro de uma prisão". Percebeu que era preciso, ainda que minimamente, preencher essas lacunas - visitou então um presídio, onde passou oito horas, atenta aos mínimos detalhes. "Fez uma enorme diferença. A leitura tornou-se mais viva e iluminada".

Ian usou o exemplo do livro "Sábado", de 2005, que tem como protagonista um neurocirurgião, para detalhar o mergulho de compreensão que procura desenvolver quando está escrevendo. Ele lembrou que passou um bom tempo usando jaleco branco, em hospitais, acompanhando cirurgias. Aproveitou para contar uma passagem divertidíssima: estava certa vez no centro cirúrgico quando alunas de Medicina se dirigiram a ele para solicitar autorização para acompanhar uma operação de aneurisma. Ele foi extremamente gentil e disse que ficassem à vontade - e foi relatando o passo a passo da cirurgia, com pormenores. Ao final do procedimento, as estudantes agradeceram a paciência dele. "Fico me perguntando como elas se saíram nas provas, já que foram instruídas não por um neuro, mas por um romancista", completou, arrancando gargalhadas da plateia.

Quando solicitado pelo mediador a destacar as virtudes que encontra nas obras de Ian, Jennifer não hesitou em apontar o fato de serem histórias convincentes e empolgantes, marcadas por tensão e beleza nas palavras, com cores e ritmos sedutores, além de os livros dele tratarem de uma diversidade ampla de temas, personagens e pontos de vista. Já o inglês definiu a obra da colega estadunidense como "permeada por realismos e descrições competentes e minuciosas, com rigorosa articulação e concatenação de ideias".

Instigado também a refletir sobre romances de espionagem - "Serena" escancara essa trama de suspense -, Ian arriscou dizer que muito provavelmente todos os romances de alguma maneira buscam inspiração no trabalho dos espiões, "se considerarmos que temos a consciência de que não podemos revelar tudo de uma só vez, que o trabalho do romancista consiste exatamente em reter informações, para vazá-las lentamente, aos pouquinhos, e nos momentos certos". Sobre essa estratégia, Jennifer disse que as narrativas de espionagem são arquétipos que conseguem captar a experiência da modernidade. "Temos sempre a sensação de que temos informações secretas, só nossas, e que somos mais importante do que realmente somos". 

Ao comentar ainda o sucesso e a atração provocados pelos romances de espionagem, que transitam o tempo inteiro pelo mundo dos segredos, em tempos de superexposição midiática e de rompimento de fronteiras entre público e privado graças às redes sociais, a autora estadunidense lembrou de um texto que escreveu para o New York Times sobre a vida on-line de um grupo de adolescentes homossexuais que não tinham se assumido como tal. Aqueles jovens consideravam que o mundo virtual era para eles a vida real, pois era naquele momento e plataforma que podiam ser eles mesmos, sem máscaras. No entanto, eram apenas aparências e representações, simulações, já que na virtualidade também precisavam mentir, eram adultos que se passavam por crianças, homens que se diziam mulheres. Era um paradoxo impressionante. "Para os adolescentes, era mesmo um universo de abertura e de liberdade. Mas tudo aquilo era falso. O grupo criou uma série de personagens. Tínhamos algo muito próximo do romance", recordou Jennifer. 

Já no final do debate, alguém na plateia perguntou se os autores tinham prazer em manipular seus leitores - as idas e vindas nas narrativas dos dois são uma constante. "Claro, com certeza, é o maior prazer que tenho na vida. Mas não é um prazer sádico. Pensem em quando estamos pescando trutas. Quando conseguimos segurá-las, é comum fazer cócegas nas guelras delas, quando elas entram numa espécie de transe, e a pesca se concretiza. Essa é uma analogia possível para a relação que estabeleço com meus leitores", respondeu Ian. Para Jennifer, todo bom romancista é, por definição e recusando o sentido pejorativo da palavra, um manipulador. "Você vai conduzindo o leitor pela mão. A questão é: com que objetivo? Se for para oferecer uma surpresa fantástica ao final, vale a pena. É aceitável. Desejável. As surpresas são maravilhosas. Eu as adoro". 

Houve ainda tempo para que o mediador perguntasse sobre a expectativa dos autores em relação ao Prêmio Nobel. Jennifer soltou uma sonora gargalhada e disse que está bastante satisfeita, mesmo sem o reconhecimento da Academia Sueca. Ian disse que é preciso lembrar de outros autores que também não ganharam o Nobel, como James Joyce e Franz Kafka. "Estamos muito bem acompanhados", finalizou.