quinta-feira, 12 de julho de 2012

QUANDO FALA PORTUGAL


(*) Elisa Marconi, radialista e professora universitária




Eu realmente acredito que deve ter havido uma reprogramação em cada uma das minhas células quando viajei a Portugal em setembro do ano passado. Curioso que as pessoas não reparem nisso. Será que não está marcado na minha cara, no meu jeito de falar, de me expressar? Ainda na noite da última terça-feira, falei a dois portugueses que minha estada em terras portuguesas tinha mudado minha vida e eles, os dois, me olharam com tamanho espanto. Não dá mesmo para ver?

Voltei embriagada da Livraria da Vila, louca para contar o que se passou lá. Não embriagada do vinhozinho branco que até tomei, mas extasiada pela troca intensa que aconteceu de novo e que tenho vivido com Portugal desde que se aventou a possibilidade de eu ir, há cerca de um ano. Já escrevi sobre isso neste mesmo blog, por isso poupo o leitor do detalhes. Mas o fato é que desde julho do ano passado venho tendo um caso de amor com a literatura portuguesa, com o pensamento português a respeito da comunicação e com o traço que mais admiro em tudo que é genuinamente marcado pelo espírito luso: o tanto que essa gente se leva a sério, crê em si e no que faz, bota fé nas pesquisas que realiza, e vende – com entusiasmo – os próprios projetos. Até o humor é sério, inteligente e me diverte mais que o inglês, ou o italiano.

A Flip do ano passado teve como expoente máximo o escritor valter hugo mãe, autor de “Máquina de fazer espanhóis”, que teve um sucesso arrebatador no Brasil, “O Remorso de Baltazar Serapião” (anterior à “Máquina”, mas lançado depois aqui) e “O filho de mil homens”, que ainda não li, mas era a grande novidade em Portugal em setembro passado. Uma convergência de fatores fez com que mãe fosse alçado a popstar. Não pude ver sua conferência em Paraty – porque estava tomando conta dos filhos –, mas fui vê-lo na pós-Flip, no cinema do Conjunto Nacional. Impressionou-me muito como por baixo de tanta tranquilidade, calma, placidez, existia um grande senso de humor, ironia fina, inteligente, cheia de boas referências. A tessitura da língua – tão nossa, mas ao mesmo tempo estrangeira – salta aos olhos (e aos ouvidos) como um bordado bem trabalhado, delicado e contundente, sem nós, sem remendos. 

Este ano, Dulce Maria Cardoso despontou como a estrela do sexo feminino da Festa Literária Internacional de Paraty. Do lado dos rapazes, Ian McEwan e Jonathan Franzen rivalizavam para ocupar o protagonismo da Festa. À mesa de Dulce, e também de Zuenir Ventura e João Carrascoza, no sábado à noite, adivinhem!, não pude ir. Novamente era minha vez de ficar com as crias. Mas, exatamente como no ano anterior, fui à conferência dela aqui em São Paulo, pós-Flip.  A alegria maior é que pertinho dela, no mesmo palco, figurava José Luis Peixoto, que não participou das mesas oficiais da Flip, mas de quem muito ouvi falar. Dulce tem olhos que sorriem, e a cada instante beiram o derramamento da emoção, e é autora de “Retorno”, o livro mais comentado da Festa. Quando veio a São Paulo, no ano passado, valter hugo mãe avisou: vem aí ao Brasil a Dulce. Prestem atenção nela. 

E eu prestei. Li tudo que saiu sobre ela, as resenhas, as entrevistas e me preparei para esse encontro. Vá lá, ainda não li o livro, mas foi de propósito. Estava cá humanizando a autora para chegar ao texto com um pouco mais de proximidade. Peixoto, que tem tatuagens e piercings, é de novo aquele mistério. Por trás de uma figura forte, presente, de voz firme – e veias que saltam no pescoço quando lê trechos de suas obras – mora uma candura, uma gentileza, e muito bom e inteligente humor. Ele é autor de “Livro”, que saiu recentemente no país, e de “Abraço”, esse sim muito muito comentado quando se fala em literatura portuguesa atual. Tem ainda outros dois romances e livros de poesia e peças de teatro. Parte publicado aqui, parte não.

Peguei a senha 51 para tentar disputar um espacinho no chão, já que no auditório da Livraria da Vila cabem só 40 seres humanos. Quando liberaram a entrada dos “sem cadeira”, corri para a frente do tablado, sentei no chão, empunhei a caneta e liguei os sensores todos. Quando Dulce entrou, duvidei por um momento que fosse a mesma escritora que vi de longe na Flip. Naquela noite, chegamos à tenda dos autores quando ela dava autógrafos e no exato momento em que a professora da minha filha estava pedindo seu autógrafo. Sinalizei à professora para que ela avisasse a Dulce que eu estava ali na multidão. A escritora me viu e acenou graciosamente. Contudo, por uma razão qualquer, vi uma senhora gordinha, de casacão vermelho, e um tanto entristecida. Coisa que não combinava em nada com a força e a sensibilidade que exalavam nas entrevistas e nas resenhas que eu havia sorvido antes. 

Mas quando ela subiu no tablado hoje, aí sim! Uma moça bonita, jovem, firme, bem interessante. Olhos sorridentes, riso largo e o velho bom humor português. A primeira fala foi, na verdade, uma gargalhada. E uma justificativa para o riso. Se decepcionara ao saber que – mais uma vez – o microfone funcionava perfeitamente de forma que – mais uma vez – ela não poderia realizar o sonho antigo de testar o som falando “1, 2, 3, testando”. A plateia vai a primeira vez ao riso.

O mediador começa perguntando se os autores sabem explicar por que Dulce, mais velha – com algo em torno dos 50 anos – tem menos livros publicados que Peixoto. Ela começa: “Não existe um ritmo certo para escrever. A escrita é uma profissão como outra qualquer, encaro assim esse ofício. E só escrevo quando tenho algo a dizer. E esses momentos não podem ser contados assim uma vez ao ano, ou a cada dois anos”. E completa começando a abrir caminho para os segredos de sua literatura: “escrever com datas marcadas é uma ideia contrária à literatura, ou à minha literatura. Esse romance agora é o quarto, trata de coisas que vivi na infância, mas só agora pude contar essa história, porque só agora tive algo a dizer”. 

José Luis Peixoto é muito menos econômico. Já tem dez livros e garante que o que tem publicado não é nem metade do que ele escreve. Escreve desesperadamente, afirmou. Tanto assim que tem poemas, peças de teatro, contos, romances e até “colaborações com fotógrafos e joalherias”, brinca, arrancando mais risos da audiência. “Para mim, o processo de escrever é muito intenso, quando estou me dedicando a isso, faço só isso, porque se não for assim, de verdade, eu não acredito. Curiosamente, essa entrega acontece mais ou menos a cada quatro anos, como os Jogos Olímpicos”, responde. Seja com tempo contado ou não, Peixoto revela uma faceta importante de toda a sua obra: “A gente só pode fazer um romance se se apaixona por ele, se acredita com todo o sangue. Só é possível dormir bem sabendo que eu fiz isso”. Para o escritor, o tempo é o bem mais precioso (chego a ouvir com o sotaque lisboeta ele dizer: “chega uma hora que a pessoa vai perceber que o carro não é importante, a casa não é importante. Importante é o tempo que se tinha e o que se fez, ou se pode fazer com ele”, coisa mais linda) para todos nós. 

E escrever um romance é, de alguma maneira, interferir no tempo do leitor, propor uma forma para a pessoa usar esse tempo. “O que não deixa de ser uma tremenda ousadia”. Dulce concorda. “Acho que toda proposta artística é uma grande arrogância, porque vai mexer com a vida de alguém, que se entrega à obra que o artista produziu”. E, também para a autora, o tempo que vale a pena é aquele em que há entrega a um projeto, o artista se entrega todo e o público também frui com muita verdade.

Infinitas vezes indagada sobre se esse romance “O retorno” é autobiográfico, Dulce nunca cansa de dizer que não, embora garanta que quem pergunta não acredita e fica procurando brechas na narrativa e na fala da escritora para provar que é sim uma autobiografia. Ela ri, e ensina: “Ficcionar parte do que vivemos, claro. Mas às vezes é preciso mentir para contar uma história, porque a verdade às vezes não serve”. Claro que há elementos em comum entre Dulce e seu personagem Rui, um adolescente de 15 anos que encara a ruína do império português depois da Revolução dos Cravos, em 1974. “Eu não sou Rui. Aliás o Rui existiu de verdade, era meu amigo e perdi o contato com ele. O nome é uma homenagem a esse amigo, mas também – e eu só percebi isso no decorrer da escrita – é o imperativo do verbo ruir. Incrível, né? Essas coisas só acontecem nessa entrega”. 

Posso ver os olhos marejados da autora. O tema principal do romance é, segundo a autora, a perda. Perda que ela viveu, que Rui viveu, mas que quase todo mundo vive um dia. José Luis Peixoto emenda: “As histórias são sempre nossas e nunca são nossas, ao mesmo tempo”. Em “Livro”, o romance mais recente, Peixoto trata de uma fase da história portuguesa que, embora esteja presente na memória oral, em poemas e em canções, nunca teve um romance inteiro dedicado a ela. “Entre 1960 e 1975, calcula-se que cerca de 1,5 milhão de portugueses – 15% de toda a população – foram viver na França para fugir da ditadura de Salazar. Aldeias inteiras como Trás dos Montes e Valdez ficaram esvaziadas. Foram em situação ruim, fugidos, viviam – no mais das vezes – em situação muito pior que em Portugal, e ainda doi muito, tanto que Portugal não quer falar disso”. 

Tudo isso se deu antes do escritor nascer e seus pais fizeram parte dessa geração que emigrou para a França e voltou depois. “Eu não vivi, porque nasci depois que meus pais voltaram a Portugal, poucos meses depois do 25 de abril de 1974. Então, embora não seja a minha história é, de alguma maneira, minha também. E eu precisei contar uma história que não vivi para contar a minha história”. Tempo em suspensão. A plateia nem respira. “Gosto muito de um senhor chamado Faulkner (William Faulkner, um dos principais escritores estadunidenses) que diz que o passado não é nem sequer passado. E eu acredito nisso, o passado é um tanto a apreciação, a afeição que temos por ele”, propõe Peixoto. Quem passou por essa fase ainda fala dessa história em carne viva, por isso o autor foi conhecer algo alheio para saber mais de si mesmo.

Certa vez escrevi que ir a Portugal era, para mim, como fechar a ponta de um triângulo (Portugal – Brasil – África) que, até então, estava incompleto. Sou muito brasileira, cresci na Bahia, onde havia África por todos os poros, mas ainda não tinha visto a ponta branca de perto, sentido seu cheiro, tocado sua pele. Daí porque a saudade de uma terra que nem é minha por herança familiar. E, assim, ouvir os escritores portugueses contando suas histórias – que nem são deles, mas são um tanto minhas –, apontando onde Portugal lhes doi e trabalhando tudo isso em forma de arte é tão transformador. 

4 comentários:

  1. Aos Caríssimos Chico e Elisa,


    A primeira imagem/som que me veio a cabeça ao falar de vocês, motivado pelo texto de ambos foi o velho Chico, Rio São Francisco, de águas plácidas e ao mesmo tempo, fortes, revoltas e caudalosos , mas que tem a impressionante capacidade de atravessar um sertão inteiro. Do encantador som das águas correndo entre as pedras de seu leito, o encanto musical da belíssima música de Beethovem, Pour Elise, e por favor, música linda, cheia de significados, nuances e melodias fantásticas, antes, muito antes de ser detonada pela musiquinha do caminhão de gás. Portanto, apaguem o caminhão de gás de suas memórias , e fiquem apenas com a declaração musical de Beethoven, a paixão fluida por Elise.
    Mas essa imagem musical só emergiu ao consciente, por já ter muito coisa sedimentada por esses dois lá nas profundezas do sub, o tal do subconsciente, que recolhe pequenas e desapercebidas notas do cotidiano. Embora sejam pequeninas, isso não é serem menores que outras, mas sim por serem muito densas, concentradas, pois agregam muitos signos, significados, sentidos e sentimentos, e por tanto, vão fundo, entre almas, algas bailarinas no âmagos e correntes de nosso aleitado ser.
    Pois é assim que me sinto ao ler o texto desses dois. Aliás, tudo isso entrou em ebulição ao ler uns três textos do Chico na sequência sobre a FLIP e logo depois o texto da Elisa, sobre o país e a língua portuguesa. Não ficarei chovendo no molhado aqui elogiando a impecabilidade de cada um, pois isso para quem os conhece e admira como eu, já é fato, mas sim, a explosão causada desse encontro entre duas pessoas fantásticas, que por sinal, não guardam essa energia toda pra eles, mas pelo contrário, fazem questão de dividir e compartilhar com o mundo. São presentes que não precisam de um momento ou data para chegar, mas simplesmente, afloram, por uma necessidade natural e consequentemente, realçam, embelezam, questionam, cutucam, fomentam, refletem enfim, presenteiam a todos nós, leitores.
    Nesse curso, é prazeroso brincar de observar no texto as características de cada um. A imagem trazida aqui no início acho que já trás bastante coisa, mas os detalhes do texto, o esculpir e o escolher da palavra de cada um, o fluir das orações, as onomatopéias e aliterações das palavras, os encadeamentos ora racionais, ora perceptivos das idéias ou seriam degustativos? Tudo no texto desses autores remetem a uma oração, não no sentido religioso, mas uma ode à comunicação, numa sinfonia tão artística quanto informacional, um prazer e energia inesgotável (talvez por ser retro-alimentável) tendo a paixão pelo jornalismo como grande maestro. É bom tê-los como amigos, mestres e companheiros dessa paixão. Obrigado e Parabéns.

    Ricardo

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  2. O que dizer depois de ler e ouvir Dulce em Paraty; de estar tão perto daquela força, daquela doçura, daquele bom humor, sensibilidade; de relembrar valter hugo mae e sua declaração de amizade pelos brasileiros; de ler esse texto apaixonante?
    Acho que estou precisando "vi-ver" Portugal de perto, cultura-terra-povo que tanto aprecio...
    Beijos!!

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  3. Elisa, com atraso, leio seu texto. Problemas: me arrependi de não ter lido antes e, pior do que isso, de não conhecer dois dos autores portugueses que você menciona. A boa notícia é que vou atrás deles, agora, graças à sua boa recomendação. E primeiro vou ler o José Luis Peixoto (pois a menção ao Faulkner é excelente!)

    Abraços,
    Fabio

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  4. Sem nenhum sexismo, acho que é a melhor escolha. Homens combinam mais com o Peixoto mesmo. Tem uma dor ali que é mais universal. Tanto assim que o autógrafo do livro dele pedi para mim e para o Chico. O da Dulce pedi só para mim. Porque algo ali na dor dela - ainda que seu personagem seja um rapazinho - é um fiar de comadres, sabe? Vou começar por ela e trocamos figurinhas no final. Obrigada pelas palavras bonitas!

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