terça-feira, 12 de abril de 2011

SOBRE FASHION KIDS, SOCIALITEZINHAS E INFÂNCIAS PERDIDAS


Era uma manhã ensolarada de domingo. O pequeno se divertia com seu campeonato de futebol de botão, a pequena desenhava animadamente. Eu aproveitava para ler com um pouco mais de calma os jornais do final de semana. Editoriais, cadernos de Política, Economia, Internacional, Esportes... Até que, como um dos destaques do "Metrópole" do "Estadão", me deparei com a matéria "Fashion Kids reúne 'socialitezinhas". Hesitei. Sigo na leitura? Fui em frente, ressabiado, temeroso. Compartilho com você trechos da matéria - são algumas falas de mães de garotas com entre 5 e 9 anos. As meninas desfilaram em um tal de Fashion Weekend Kids (que, assumo minha ignorância, desconhecia solenemente).


"A Carol, com 8 anos, já foi 4 vezes à Disney" (a roupa que a menina veste, segundo a mãe, custou 500 reais). 

"A minha filha quer óculos Chanel, Prada. A gente gosta de coisas boas, eles aprendem". 

"Sabe o que eu acho? Se a gente comprasse na C&A, na Riachuelo, elas não estariam tão antenadas. Eu não imagino minha filha colocando uma roupa da Renner nem para dormir".  

"Elas não querem mais bufê infantil. Querem ir para Paris".

"Fomos (para a Disney) com duas malas, voltamos com cinco".

"No ano passado, teve até uma polêmica (na escola). Quase todas as crianças tinham ido à Disney. Como fazer com as que não foram?". 

A essa altura, você deve estar se remexendo na cadeira, incomodada (o), com um leve aperto no peito e respirando de forma mais acelerada. Sou solidário. Foi exatamente assim que me senti ao terminar de ler a matéria. E imediatamente me lembrei da reportagem "Festinha de meio milhão", publicada pela Folha de São Paulo em março de 2008 (não disponível on-line). É disso mesmo que o texto tratava: festas infantis que chegavam a custar 500 mil reais. Em uma delas, dois 'monstros' decidem, em determinado momento, tirar as fantasias... Surpresa! Lá estavam Reynaldo Gianecchini e Marcelo Antony; outro casal fez da própria mansão no Morumbi um safári, com tigre, elefante, dromedário e macacos de verdade. O filho queria muito. Os pais atenderam o pedido. Numa terceira, a  menina, fã da Cinderela, passeou de carruagem puxada por um cavalo branco pela agitada noite de Moema. Para entrar na festa, passou por um castelo com cinco mil bexigas - que custaram quase três mil reais. "Queria que ela chegasse em grande estilo", disse a mãe à reportagem. 

Não raro, nas mais diferentes situações e rodas de conversa, quando mostro minha indignação e minha preocupação ao citar essas "comemorações efusivas", ouço como resposta: "o dinheiro é deles, fazem com a grana o que quiserem". Respiro fundo. E dou a réplica: vá lá, mesmo admitindo que tenham essa prerrogativa, será que deveriam, como pais, cuidadores e educadores, exemplos, referências e espelhos de comportamentos para os filhos, agir dessa maneira? O que estou a sugerir é uma reflexão mais cuidadosa, profunda e responsável, filosófica até, sobre o ser pai, o ser mãe.  

E antes que alguém grite "pare de querer posar de pai sabichão e perfeito", digo em alto e bom som que essa possibilidade nem passa pela minha cabeça. Descubro cotidianamente minhas fragilidades, erros e defeitos e procuro assumi-los e lidar com eles da melhor maneira possível. Ser pai é estar disposto a aprender, todos os dias. Mas posso afirmar, com tranquilidade: jamais passou pela minha cabeça, mas nem como remotíssima hipótese, incentivar que minha filha participasse do tal Fashion Kids. Ou estimular meu filho a convidar os coleguinhas para uma festa de meio milhão de reais. Sim, há acertos e erros, mas certamente são outros os pressupostos, valores e princípios que pautam a formação dos dois. 

A tensão é inevitável. Porque na contrapartida do que procuramos colocar em prática em casa, e apesar de obviamente conhecer inúmeros outros pais e mães que também rechaçam esse consumismo estapafúrdio e que pautam a educação de seus filhos por visões humanistas de mundo (respeitadas as diversidades), o que lamento profundamente é que muito provavelmente, como sociedade, no conjunto da obra, somos minoria, e estamos majoritariamente abrindo espaço para gerações que valorizam tremendamente o TER, mas que pouco preocupam-se com o SER. São crianças e jovens que, com o respaldo e conivência dos pais, engalfinham-se pelo celular de última geração, pelo carro do ano, pelas roupas de marca, pelas baladas da moda - e fecham os olhos para generosidades, solidariedades, combate aos preconceitos, respeito ao próximo, leituras, transformação social. Há egoísmos e individualismos incontidos.  

Em matéria disponível no site do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (SINPRO-RS), Alfredo Jerusalinsky, presidente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, afirma que "neste ambiente contraditório de constituição de identidade, a criança vê-se num vazio onde deve responder a um ideal adulto, ao mesmo tempo em que vive num cotidiano marcado por uma cultura extremamente individualista, onde a relação com o outro se mede em termos puramente lógico e produtivo quanto à eficácia material.” 

Na "Folha de Londrina", abril de 2007, a pedagoga Ana Lúcia Vilella, então presidente do Instituto Alana, que trabalha com consumo infantil, lembrou que "sob o argumento do filho, de não querer ser diferente dos colegas de escola, os pais cedem aos apelos insistentes. Assim, acabam reforçando a ideia de que todo dia é dia de ganhar presente. A criança brinca um pouco e depois deixa de lado o brinquedo novo, já pensando em outro. Com isso não vai formar vínculos afetivos na vida. Lidar com a frustração faz parte do desenvolvimento". Os resultados, segundo a especialista: apatia, passividade, individualismo, distanciamento das relações familiares. 

Em 2005, pesquisa realizada pela MTV, em parceria com o Instituto Datafolha, entrevistou 2,3 mil jovens brasileiros, com entre 15 e 30 anos, das classes A, B e C, em São Paulo (capital e cidades do interior), Salvador, Brasília, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro (apenas capital). Alguns resultados importantes, que dão pistas simbólicas sobre as gerações que estamos formando: "defrontados com uma lista de 16 adjetivos que poderiam caracterizar a sua geração, mais de um terço dos entrevistados (37%) optou pela palavra "vaidade". O "consumismo" veio em segundo lugar. Os jovens brasileiros, segundo o levantamento, preocupam-se com a forma (75% praticam esportes e 31% tentam consumir alimentos dietéticos ou com baixa quantidade de calorias), aprovam as cirurgias plásticas com finalidades estéticas (55%) e se esforçam para estar atualizados com a moda (41% já trocaram de aparelho celular de duas a três vezes). Outro dado impressionante: 60% concordam que "pessoas bonitas têm mais oportunidades na vida".

Não estou aqui a estabelecer cartilhas e modelos de educação - sequer tenho competência para tanto. Nem de longe tenho a pretensão de esgotar o assunto. Também não condeno e/ou demonizo as crianças, nem assumo avaliação de natureza determinista e lombrosiana, a apontar o dedo e determinar "eis os deslumbrados e os desajustados do futuro". A vida em sociedade é complexa, dinâmica, permeada por conflitos e contrapontos. E também por mudanças e reviravoltas. 

Mas penso ser urgente sugerir algumas indagações que, reconheço, me atormentam - e assustam: como se estabelecem nesse universo as brincadeiras, a sociabilidade e o lúdico? Quando essas crianças são crianças? Para elas, tudo é fácil, tudo é prazer, tudo se resolve num estalar de dedos? Saberão essas crianças 'adultizadas' que desfilam e vão a Paris conviver no futuro com a frustração, com o "não" e com os limites da vida em sociedade? Saberão aceitar com serenidade e civilizadamente que nem sempre poderão alcançar tudo o que desejam? Terão condições de equilibrar direitos e deveres? E quando faltar o dinheiro para a Disneylândia e para a festa de 500 mil reais? E quando a redoma de vidro em que vivem se quebrar, o que acontecerá? Ao contrário, e se a redoma não se romper e o dinheiro não faltar? Continuarão a usar milhões para conter frustrações e para contemplar desejos infinitos e ilimitados, como se a vida fosse eterno mar de rosas e um permanente conto de fadas, um constante e simples exercício do tudo pode? Se aos 5 anos exigem Paris, safáris, carruagens de verdade, o que exigirão aos 10, aos 15, aos 30 anos? Conseguirão compreender que, para além da vida privada de fantasias, há um conviver democraticamente com as diferenças, uma esfera pública a enfrentar, e que nem sempre nos é amigável (desemprego, violência, exclusões, medo, estresses...)? 

Sigo pensando...

6 comentários:

  1. Eu já cobri uma edição desse Fashion Kids. Não preciso explicar nada, né?!
    E mais, conversei aqui na redação com o autor do texto, o Paulo Sampaio. Isso aí foi só um "pouquinho" do que ele ouviu.
    Não sou mãe, mas nem é preciso pra se revoltar com tal postura.
    Nojo é pouco.
    Bjs, mestre.

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  2. É o que eu chamo frequentemente de "geração perdida" (ou seriam gerações?). O que esperar de uma criança que recebe de seus pais estes valores? Cada um educa seus filhos do jeito que bem entender. Mas, particularmente, prefiro ensinar o Leo a doar as roupas que não servem mais, a dar os brinquedos com os quais ele não brinca mais, e que ler um bom livrinho é muito melhor do que gastar dinheiro no Shopping Cidade Jardim. Ah, e que é ótimo pescar e andar à cavalo no hotel fazenda, e que, sim, um dia, se Deus quiser, ele irá conhecer Paris, mas com certeza será para CONHECER PARIS, e não para voltar com 5 malas.

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  3. Quando li a matéria "Fashion Kids reúne 'socialitezinhas" fiquei chocada com os requintes de futilidade e elitismo. Mas me tranquilizou pensar que minoria são eles, que, felizmente, essa não é a regra na educação da atual geração de crianças. Essas são as mães dos 5% insatifeitos com o país, que preferem Miame e Paris em qualquer situação. Contudo, concordo que a sociedade de consumo está vencendo a parada e colocando o ter acima do ser em todas as faixas etárias e classes sociais. É preocupante, precisamos refletir com essa maioria e não com esses exageros estapafúrdios ao alcance de uma minoria que até o Claudio Lembo ousou mandar abrir a bolsa para coisas mais importantes. Chegam a ser ridículos aos olhos da maioria.

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  4. Eu fico pensando aqui qual será o resultado, a longo prazo, desse tipo de criação em que ter é mais importante do que ser. Fico aqui imaginando se não esta-se criando adolescentes/adultos pouco humanistas e totalmente individualistas, capazes de cometer absurdos.

    Será que o resultado não será o mesmo de Festim Diabólico, que anda passando do Telecine Cult? Será que essas crianças, por ter mais que os outros, não se acharão seres superiores a ponto de menosprezar a vida dos que tem menos? Será que queimarão mendingos? Será que algum entrará em uma escola atirando em crianças indefesas?

    Excelente reflexão, como sempre, mestre.

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  5. A referência ao Festim Diabólico me parece perfeita. Não será por conta da celebração consumista que têm acontecido tantas desgraças por aí? O consumismo está em todas as classes sociais: os soldados do tráfico adoram exibir seus "Nikes", "Mizunos", etc. de $800.

    A valorização do TER em detrimento do SER desconhece fronteiras sociais.

    PS. Temo pelos meus filhos - que ainda estão por vir. Não é nada fácil vencer neste front!

    EXCELENTE TEXTO, CARO CHICO!

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  6. Adorei o texto,como sempre, mais uma ótima analise sobre o tema. É uma coisa que tenho observado também. Sou mãe, jovem, adoro informação de moda e não vou mentir gosto de grifes (pela qualidade, não pela ostentação, que fique claro). Mas, sempre tento manter a minha filha com os pés no chão, mostrando a realidade social e os valores mais importantes que um ser humano deve ter, como amor e respeito as pessoas. Sempre falo para ela, que é legal ter dinheiro para poder passear, comprar livros e até brinquedos, mas, isso não teria o menor sentido se não fosse por um bem mais precioso, estar acompanhada de pessoas e dividir com elas momentos coletivos. Além disso, acho péssimo as mães insentivarem suas filhas a serem minis "peruinhas".

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