terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

POR QUE MUBARAK AINDA NÃO CAIU?

Após mais de dez dias de gigantescas manifestações de rua, com a Praça Tahrir tomada pela população egípcia, tendo à frente jovens desempregados e sem perspectivas de futuro que se organizaram principalmente por meio das redes sociais, o ditador Hosni Mubarak assumiu a condição de um zumbi político, um sujeito que já morreu, mas que se recusa a ser enterrado. Não tem legitimidade ou condição institucional alguma de representar a sociedade e de manter-se como líder da nação, que aliás, ao contrário, o considera carta fora do baralho; no entanto, agarra-se a todos os galhos possíveis e imagináveis e insiste em permanecer no cargo, ainda que como mera figura decorativa. Alega ser personagem imprescindível para a transição e que, sem ele, "o Egito conhecerá o caos". 

Diante do impasse, a pergunta que começou a ser feita como sussurro mas que já alcançou decibéis indignados e mais elevados é: afinal, como Mubarak consegue resistir e manter-se como presidente e por que ainda não caiu, se a pressão popular é tão intensa? Longe de esgotar o assunto, e a partir das leituras que consegui fazer até aqui, penso que é possível listar pelo menos cinco razões que ajudam a compreender esse delicado e complexo cenário - e que de certa forma servem como respostas para a questão colocada. 

É preciso lembrar, antes de mais nada, que revoluções ou transformações profundas de estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais não acontecem num passe de mágica, da noite para o dia. Há um processo de acúmulo de insatisfações e de consolidação das forças de reação e resistência, até que a pressão faça a panela estourar. Como dizia Karl Marx, as condições subjetivas precisam encontrar maduras as condições objetivas. Não bastam desejo e disposição, ideias e vontade para mudar; é preciso construir bases materiais, as variáveis cotidianas concretas e lidar com as oportunidades históricas. E esse movimento de combinação  e sintonia leva tempo. 

As sementes da Revolução Russa, apenas para citar um exemplo, começaram a se anunciar ainda no final do século XIX, quando 80% da população do país vivia no campo, passava fome e trabalhava em regime de escravidão, cenário que levou em 1898 à criação do Partido Operário Social-Democrata Russo, que rapidamente sofreria um racha, dando origem aos mencheviques e aos bolcheviques - estes últimos, os comunistas liderados por Vladimir Lênin. Nuances revolucionárias mais contundentes surgiram em 1905, quando as principais cidades russas foram tomadas por passeatas, greves e levantes populares, duramente reprimidos pelo governo do czar Nicolau II, mas que obrigaram o governo a ceder e a adotar reformas liberais, como as eleições para a Duma (parlamento) e a elaboração de uma Constituição. E foi apenas em outubro de 1917, depois do movimento reformista de fevereiro daquele ano, que os ventos revolucionários finalmente levaram os bolcheviques ao poder. Mesmo após a tomada do Palácio de Inverno, símbolo do czarismo, ainda foi preciso enfrentar o exército branco contra-revolucionário.


Ganhar tempo + Forças Armadas + apoio dos EUA
Um segundo aspecto diz respeito à estratégia política adotada pelo tirano Mubarak: dividir as oposições, cansar as massas sublevadas e esvaziar as praças, arriscando empurrar a História com a barriga, na tentativa de chegar às eleições de setembro. Não por acaso, a perspectiva de sedução se dá por etapas, a conta-gotas: nomeia um vice-presidente; anuncia que desistiu de concorrer a novo mandato; promete suspender a censura aos meios de comunicação; garante que vai encerrar o estado de exceção; convida a Irmandade Muçulmana para negociar; oficializa aumentos para as aposentadorias e os salários dos funcionários públicos; cria comissão para elaborar nova Constituição e assim sucessivamente. Está claro: o objetivo é ganhar tempo, vencer pelo desgaste, apostando na desmobilização e quebrando ânimos de resistência. 


Cá entre nós, o tirano não está inventando a roda e faz prevalecer a máxima maquiavélica do "dividir para governar". Oferece migalhas, na ânsia de cooptar ao menos alguns setores ou representantes importantes das oposições. E vamos combinar que, depois de quase duas semanas, não é fácil, mesmo para os mais aguerridos, deixar todo o resto de lado e colocar o cotidiano em segundo plano, sem ter a mais tênue dimensão de quando as exigências das ruas serão atendidas, sem saber ao certo quanto tempo ainda terão de permanecer na praça. É estafante, estressante mesmo. A disposição de luta dos egípcios é admirável. Mas Mubarak aposta no desânimo, na resignação.


Como alerta Mohamed Habib, pró-reitor de extensão e assuntos comunitários da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em artigo publicado na Folha de São Paulo (disponível para assinantes), "a opinião pública internacional deve estar atenta às manobras do ditador Mubarak para se manter no poder, com o apoio dos EUA e de Israel, sob o pretexto de que ele é fundamental para defender os seus interesses no Oriente Médio".  

Outro fator fundamental a considerar é a postura das Forças Armadas, que até aqui insistem em manter a legalidade, nas duas pontas: não atacam nem reprimem a população nas ruas, mas também não quebram a hierarquia para derrubar Mubarak (que é também um militar). "Os militares têm sido uma força fundamental para manter a calma e a estabilidade nessa crise e espera-se que cumpram um papel crucial na transição que se anuncia", escreve Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em texto publicado pela Agência Carta Maior. 

Além disso, lembra o especialista, os militares agem não apenas para defender a ordem e a disciplina, mas pensando com muito carinho nos bolsos, nos negócios lucrativos que conquistaram. Nas últimas três décadas, calcula-se que as forças armadas egípcias tenham recebido algo em torno de trinta bilhões de dólares dos Estados Unidos. "Sim, é verdade que os militares querem a estabilidade, mas a desejam, principalmente, porque não querem perder os privilégios de que desfrutam devido ao papel único que desempenham na economia egípcia", continua Nasser. A lista de "atividades", segundo o pesquisador, é considerável: montagem de automóveis, distribuição de gás, empreendimentos turísticos e muitas otras cositas...   

A quarta razão já foi discutida aqui no blog e dispensa comentários mais aprofundados: a tendência é que, enquanto houver apoio dos Estados Unidos, ainda que velado, haverá ditadura de Mubarak. Até aqui (e não há motivos efetivos para vislumbrar tom mais crítico ou acentuado), as declarações do presidente Obama foram extremamente tímidas, decepcionantes e medrosas, valorizando sempre os interesses norte-americanos no Oriente Médio, em detrimento dos desejos de liberdade, de progresso econômico e de democracia reverberados pela população do Egito nas ruas. "Uma coisa é certa: esperávamos muito mais de Obama no Oriente Médio. E ele falhou", avalia Ahmad Moussalli, professor da Universidade Americana de Beirute, em entrevista publicada pela revista Carta Capital (versão impressa, não disponível na internet). 


Negociar com quem?
Por fim, Mubarak comemora e se aproveita de um movimento de contestação que nasceu de forma espontânea, livre, descentralizada, sem lideranças anunciadas. E o que é uma virtude especial pode ser também uma fraqueza a ser trabalhada pelo ditador: com quem negociar a transição, se não há clareza do projeto político a ser viabilizado no pós-Mubarak? Quem são os líderes legitimados pelas massas? Em linhas gerais, a população sabe muito bem o que não quer mais e tem também muitas expectativas, mas que ainda não foram canalizadas ou transformadas em nova força organizada institucional. 


"Foi o sofrimento que, no dia 25 de janeiro, revoltou o povo do Egito, num levante popular pacífico e espontâneo, sem planejamento e sem organização, com centenas de milhares de universitários concentrando-se na Praça da Libertação", escreve o pró-reitor da Unicamp, no artigo já citado. Ele completa: "nos 30 anos de ditadura de Mubarak, eliminaram-se todas as organizações oposicionistas. No Egito, não existe um verdadeiro partido de oposição ideológica, incluindo a Irmandade Muçulmana".

A História mais uma vez nos ensina - e recorro novamente, por coerência, à Revolução Russa: foi preciso que o Partido Bolchevique canalizasse e representasse as insatisfações crescentes da população para que o czar e o antigo regime pudessem finalmente ser depostos. "O feito extraordinário de Lênin foi transformar uma incontrolável onda anárquica popular em poder bolchevique", escreve o historiador inglês Eric Hobsbawm, no clássico "A Era dos Extremos". 

A depender de nossas vontades e torcidas, Mubarak já teria sido há muito derrubado. O que nos agonia é que o tempo da História é outro, mais lento. Temos a sensação de que a coisa emperrou, nada mais acontece. No entanto, "mesmo sem a renúncia imediata de Mubarak, é impossível desprezar a extraordinária conquista dos manifestantes até aqui. Ao forçar o ditador a abrir mão de mais um mandato presidencial (o sexto), obtiveram algo quase inimaginável há apenas duas semanas", contrapõe o jornalista Marcelo Ninio, na Folha de São Paulo (também disponível apenas para assinantes).

Eis mais um recado singelo soprado pelos ventos das manifestações no Egito: há momentos estratégicos em que persistência e paciência transformam-se em virtudes revolucionárias fundamentais.               

2 comentários:

  1. Torçamos para que esses ventos venham cada vez mais fortes e batendo em nossos rostos para nos acordar para a vida e nos mostrar que se perde, se frustra, se cansa, mas também se ganha e que quando ganhamos, por menor que seja a batalha, sempre é um grande passo para um todo.

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