segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O TRIUNFO DA REVOLUÇÃO NO EGITO

Cheguei a trocar com amigos algumas mensagens por celular e nas redes sociais comemorando a queda do presidente egípcio Hosni Mubarak, no final da tarde da última quinta-feira, 10 de fevereiro. A festa foi bem mais do que breve e, atônitos e incomodados, fomos dormir poucas horas depois com a amarga sensação de decepção e de História interrompida - num anti-clímax tresloucado, o tirano havia decidido por seu dia do "fico". Por aqui, nas nossas rodas de conversas, ficamos perguntando: 'O que vai acontecer agora?'. 

A resposta das ruas no Cairo, em Suez, em Alexandria e em tantas outras cidades do Egito foi contundente e imediata - ainda mais pressão e mobilização, nenhuma disposição para recuar - e não deixou outra alternativa ao ditador a não ser finalmente dar adeus à presidência, no início da tarde da sexta-feira. Passei o restante do dia com os olhos marejados grudados na transmissão da Al Jazeera, reverenciando e agradecendo o povo corajoso e revolucionário do Egito. Quem foi mesmo que disse que a História tinha acabado?

É curioso notar como, naquele momento, por laços de solidariedade e admiração, por sentimentos revolucionários comuns, estávamos conectados aos cantos, buzinas e gritos que vinham da Praça Tahrir. De certa forma, pedíamos licença aos camaradas egípcios para participar, de forma muito limitada e respeitosa, apenas como personagens secundários, da vitória imensa que haviam alcançado. De casa, na frente da televisão (que loucura!), eu gritava: "adeus, Mubarak! Já vai tarde! Viva a revolução do povo do Egito!". E sorria, sem conseguir conter a emoção. Ao mesmo tempo, aquela mesma inevitável pergunta voltava à tona: "e o que vai acontecer agora?". 


A beleza da História, a Revolução em marcha
Nesse momento, é preciso admitir que reflexões sobre o futuro do Egito representam uma tarefa extremamente complicada e desafiadora; o risco é escorregar em exercícios de adivinhação. Além do mais, como já registrei no primeiro texto postado no blog sobre o tema, estou longe de ser especialista no assunto. Mais uma vez, meu objetivo é identificar algumas cartas que estão sendo colocadas à mesa, alguns horizontes que começam a ser desbravados e considerados como cenários possíveis, costurando uma rede de análises relevantes para a compreensão mais aprofundada do processo. 

Dito isto, parece não haver muitas dúvidas sobre o significado das transformações profundas que estão sendo vividas pelo Egito (a revolução não chegou ao fim, continua em marcha). "O grande feito da revolução foi quebrar a barreira do medo e mostrar a capacidade de organização espontânea da população. Os protestos foram comandados por jovens pedindo democracia clássica. O regime caiu de forma pacífica", avaliou Mamede Mustafá Jarouche, professor de Letras da Universidade de São Paulo (USP), na Globonews

Ao portal Terra, Márcio Scarlécio, professor do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), reforçou que estamos falando de uma vitória sensacional. "É um presidente baseado num regime autoritário que está sendo derrubado pelas ruas. É importante para caramba". O linguista norte-americano Noam Chomsky é outro que não contém o entusiasmo. "O que está ocorrendo é espetacular. A coragem, a determinação e o compromisso dos manifestantes são destacáveis. Independentemente dos resultados, estes momentos, que sem dúvida não vamos esquecer, seguramente terão consequências. Eles enfrentaram a polícia, tomaram a Praça Tahrir e se mantiveram ali, apesar dos grupos mafiosos de Mubarak", afirmou, em entrevista reproduzida pela Agência Petroleira de Notícias. 

Incansável e preciso narrador da revolução egípcia, consagrando a máxima que diz que reportagem se faz é na rua mesmo, pisando no barro, no meio do povo, o jornalista britânico Robert Fisk escreveu, em texto reproduzido pela Agência Carta Maior, que "para sempre se conhecerá a Revolução Egípcia de 25 de janeiro - o dia em que começou a revolta - e para sempre será a história do povo que ressuscitou". Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos definiu: "É a queda do Muro de Berlim do mundo árabe". 


A derrota dos Estados Unidos
Se a vitória do povo do Egito é cantada em verso e prosa como grandiosa, há também um consenso em relação ao principal derrotado dessa história (além, claro, de Mubarak e seu regime sanguinário): o Império norte-americano. Nesse episódio, o democrata Barack Obama seguiu à risca a cartilha conservadora e agiu como teriam agido os falcões republicanos: negou a relevância das agitações, tentou mostrar que o "regime era estável", lavou as mãos tal qual Pilatos, sugeriu uma "transição gradual e sem movimentos bruscos", para somente abandonar o barco quando o triunfo da revolução já se anunciava como inevitável, num suspiro final desesperado e a tentativa de não passar para a História como o principal fiador da ditadura. Como Obama pretende agora discursar a favor de liberdades e direitos humanos? A máscara caiu. A esperança ficou perdida pelo caminho. A memória coletiva já registra: Obama não foi apenas omisso, mas medroso e conivente.

"Os Estados Unidos têm uma imensa lista de pecados no Oriente Médio. Em primeiro lugar, os americanos tradicionalmente apoiam todos esses regimes pavorosos", disse o professor Scarlécio, na entrevista já citada. Para Chomsky, também no mesmo texto indicado acima, "os EUA seguiram o manual costumeiro. Ocorre como uma rotina padrão: seguir apoiando o ditador o tempo todo, enquanto for possível; quando se torna insustentável - especialmente se o exército muda de lado -, dá uma volta de 180 graus e diz que sempre estiveram do lado das pessoas, para apagar o passado e depois fazer todas as manobras necessárias para restaurar o velho sistema, mas com um novo nome".

Segundo Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC/SP, em artigo publicado na Carta Maior, "Obama inicialmente preferiu ficar ao lado de seu “aliado leal”, contra um movimento que levou a fundo a retórica dos direitos humanos presente em seu discurso no Cairo em 2009. Diga-se, é verdade, que esses momentos revelam a essência da decisão na política externa dos EUA, que vai muito além da órbita do presidente da república. Apesar da celebração ritual da sociedade civil, autoridades dos EUA (militares, agências de inteligência e lobbies no congresso) sempre mantiveram fortes ligações com regimes repressivos e nunca mantiveram qualquer tipo de contato com os principais grupos oposicionistas". 

Em matéria publicada pelo jornal espanhol El País, Antonio Caño cita Nicholas Burns, professor de Harvard, para quem "os EUA não terão mais alternativa a não ser aceitar o resultado de futuras eleições no Egito, gostando ou não gostando; não há outra saída". Para Caño, o povo egípcio deu uma lição aos Estados Unidos sobre como construir suas alianças. "A velha doutrina que diz que qualquer tirano é válido desde que cumpra as ordens de Washington foi varrida", sentencia. 

Por tabela, a derrota fragorosa dos Estados Unidos representa ainda um tremendo abalo nos interesses e nas posições até aqui consolidadas de Israel no Oriente Médio. Sai de cena o principal aliado árabe às pretensões expansionistas e colonialistas do Estado israelense, que teme agora que a reviravolta faça do Egito mais uma pedra em seu sapato. O que as duas nações (Estados Unidos e Israel) não querem compreender é que regimes democráticos seriam muito mais benéficos para a garantia de estabilidade na região, como destacam Reginaldo Nasser e Mohamed Habib, pró-reitor de extensão e assuntos comunitários da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe, no programa "Entre Aspas" transmitido na quinta-feira, 10/02, pela Globonews.

Como apresentei em texto postado no blog na sexta-feira passada, ainda antes do triunfo da revolução, para o Império e seu fiel escudeiro, assimilado o fracasso e digerida a contragosto a queda de Mubarak, o mundo dos sonhos seria então uma transição controlada pelos militares egípcios, até chegar a um regime parecido com o da Turquia, onde as forças armadas funcionam como um grilo falante da política local, a voz da consciência coletiva que esvazia e monitora a perspectiva de hegemonia de radicalismos islâmicos. 


Um risco chamado Forças Armadas?
A essa altura, com o antigo regime apodrecido e derrotado e o novo ainda sendo gestado, a partir da diversidade das forças de oposição e das diferentes vozes e propostas que nasceram dos protestos nas ruas, os militares parecem mesmo representar a única força social e institucional com capacidade para ocupar esse vácuo de poder e conduzir a transição. É perigoso? Claro que sim. Pode acontecer um golpe de Estado branco e disfarçado, simplesmente responsável por transferir o controle do país a novos candidatos a ditadores? É um risco. O exército vai abrir mão de seus lucrativos negócios (controla cerca de 30% da economia nacional), em nome do interesse coletivo e da reconstrução do país? Há controvérsias.

Robert Fisk, no texto citado, alerta que "embora tenham se desligado do presidente, o alto comando do exército está formado por homens da velha ordem. A maioria dos oficiais de patente mais alta do exército foi absorvida pelo núcleo do poder do regime. Durante o último governo de Mubarak, o vice-presidente era um general, o primeiro ministro era um general, o vice-primeiro ministro era um general, o ministro da Defesa era um general e o ministro do Interior era um general. O próprio Mubarak era comandante da força aérea. O exército levou Nasser ao poder e apoiou o general Anwar Sadat. Apoiou o general Mubarak. O exército introduziu a ditadura em 1952 e, agora, os manifestantes acreditam que se converterá na agência da democracia. Haja esperança! Portanto – tristemente – o Egito é o exército e o exército é o Egito".

A questão que se coloca é: estaria o povo do Egito disposto a se resignar, voltar para casa e aceitar passivamente a simples substituição do ditador de plantão, depois de tanta luta e de ver concretizada a mudança que tanto almejava? Para Emilio Platti, do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo, "os jovens da Praça Tahrir já estão impregnados desses valores (liberdade de expressão, direitos humanos). Não querem o modelo militar, como não querem o modelo islâmico nos moldes do Irã. Cansaram-se de ser abordados pela polícia nas ruas e detidos para interrogatórios, prática tão comum no Egito". 

As primeiras medidas parecem caminhar em sintonia com a vontade das ruas: a Junta Militar que assumiu o país dissolveu o Parlamento que apoiava Mubarak, abandonou o texto constitucional que legitimava a ditadura e confirmou eleições para o mês de agosto. Mas, nesse momento, qualquer julgamento é precipitado. É preciso aguardar. O cenário é ainda nebuloso e confuso.


Marcha da Vitória
É honesto dizer portanto que, embora o exercício de reflexão seja imprescindível, é difícil vislumbrar com exatidão quais serão os caminhos da revolução a partir de agora; mas arrisco dizer que o Egito - e o Oriente Médio - jamais serão os mesmos. "Não é possível prever se haverá contágio (dos demais países árabes), mas é um efeito possível. Mas depois esses países vão passar por um período de crise até reorganizarem suas economias, suas sociedades e sua política. Espero que resulte na emergência de novos partidos, com forte presença dos movimentos sociais", diz Boaventura, na entrevista citada. 

Em conversa com a Agência Carta Maior, Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, avalia que "uma mudança política no Egito terá certamente um impacto em toda região, podendo inclusive provocar uma mudança de relacionamento com países como Israel e Síria. Mas isso dependerá da evolução dos acontecimentos". E para o jornalista Luiz Carlos Azenha, no blog Vi o Mundo, "o fato é que a queda de Mubarak transformará o mundo árabe, a política externa dos Estados Unidos e de Israel e deixará clara a hipocrisia dos que acreditam que os direitos humanos dos iranianos, por exemplo, importam mais que os direitos humanos dos egípcios ou sauditas". 

Sem abandonar as ruas, onde de fato a revolução aconteceu, os egípcios já convocaram a Marcha da Vitória para a próxima sexta-feira, 18 de fevereiro. Será mais um dia em que não será possível tirar os olhos das telinhas de televisão ou computador. Pedindo novamente permissão aos camaradas do Egito, fica aqui o convite: temos mais um encontro marcado com a Revolução. 

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