Fotos de Elisa Marconi
Li "Che Guevara, uma biografia", do jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, em 1997, logo depois que a obra foi lançada no Brasil. Chamaram-me muito a atenção - na verdade, um encantamento imediato - a mais do que minuciosa e cuidadosa pesquisa desenvolvida pelo autor a respeito das andanças e dos ensinamentos do guerrilheiro argentino-cubano e a maestria com que costurava e articulava todas as entrevistas feitas e as informações apuradas. É um texto denso, profundo, reflexivo, intenso nos detalhes e nos diálogos, mas absolutamente acessível e agradável, sem grandes malabarismos ou arroubos de sofisticações estilísticas. Uma boa história, bem contada - era disso que se tratava. Vale dizer que o livro ocupa atualmente lugar de destaque em minha estante, na seção "obras Che".
Pois tive o privilégio de participar no último sábado, 21 de maio, de um encontro com Jon Lee (é assim que ele gosta de ser chamado) promovido pela Faculdade Cásper Líbero. Na ocasião, o jornalista contou que a vontade de escrever a biografia do Che nasceu depois de ter acompanhado e reportado, nos anos 1980, nos mais diferentes países do mundo, histórias de movimentos guerrilheiros, de guerras civis e de lutas por liberdades. "Che era sempre uma referência e inspiração, inclusive no Afeganistão, para os muçulmanos fundamentalistas. Não era um ídolo pop estampado em camisetas, mas um herói revolucionário fomentador de sonhos e de utopias", disse. "Era um idealista que achava que a única forma de mudar a sociedade era por meio da luta armada", completou.
O jornalista norte-americano não demorou muito a constatar que a bibliografia específica a respeito do médico guerrilheiro era escassa - além dos diários escritos na Bolívia, apenas alguns discursos compilados. Aquela história incrível ainda estava por ser contada, avaliou. Jon Lee abraçou o desafio. Foram várias as viagens para Cuba, até conquistar a confiança de pessoas que tinham convivido com Che e finalmente poder ter acesso a escritos inéditos do guerrilheiro, que pertenciam à viúva, Aleida. Fundamental foi também a viagem pela América Central feita em companhia de Alberto Granado, grande companheiro do Che, repetindo inclusive percurso que os dois inseparáveis camaradas já tinham feito no início dos anos 1950, quando jovens (e retratada no filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, 2004).
"Com essas andanças, conheci o Che jovem. Os diários me apresentaram ao pensamento político dele", revelou Jon Lee. Assim nasceu o livro, que consumiu cinco anos de trabalho e intensa dedicação do jornalista - e boa parte das economias dele. "Calculei que levaria dois anos no projeto. Foi mais que o dobro. Renegociei em três oportunidades os direitos com a editora. Houve um momento em que não podia mais pedir dinheiro, não tinha mais crédito. Só não vendi minha alma. Mas foi um privilégio poder me dedicar apenas ao livro".
Desde 1998 atuando como repórter da revista The New Yorker, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos, Jon Lee de certa forma acabou se especializando na arte de escrever perfis - Gabriel García Márquez, o rei Juan Carlos (Espanha) e o falecido ditador chileno Augusto Pinochet foram alguns dos personagens já retratados pelas letras sempre precisas do jornalista norte-americano. "Acabo me empolgando. Há sempre um editor a dizer chega, é preciso parar e cortar o texto, é revista, não é livro", admitiu. O perfil de Pinochet, disse, foi um dos mais marcantes.
Jon Lee contou que chegou a ouvir o filho do ditador divertir-se e revelar a um amigo, sem constrangimento algum, que havia roubado de um país africano um objeto que era verdadeira relíquia arqueológica, enquanto a esposa dele, com salto alto, corria atrás de um coelho no jardim - e a criada, uniformizada, cuidava dos filhos do casal. Em outro momento da apuração, Jon Lee teve de dirigir o carro da filha de Pinochet (o motorista estava de folga), com destino a uma estância de vinho nas imediações de Santiago, onde encontrariam outras fontes da reportagem. Jon Lee, claro, errou o caminho. A dupla se perdeu. E foi parar na entrada de uma favela chilena. A senhorita Pinochet ficou histérica e começou a berrar: "vamos sair daqui, aqui moram os homossexuais, os terroristas e os ladrões". Jon Lee guardou bem essa sequência: homossexuais, terroristas e ladrões.
Para o jornalista, aqueles dois episódios valeram mais do que muitas entrevistas. Eram representativos das mentalidades daquelas pessoas, das relações que estabeleciam com a sociedade, da superioridade e soberba que procuravam sustentar. "Apenas observei. E comecei a colocar carne em alguém que até então para mim era apenas um fantasma", lembrou.
Já a reportagem mais recente de Jon Lee foi feita na Líbia, entre fevereiro e abril. Segundo ele, foi uma história de luto, a tragédia da guerra civil narrada a partir do assassinato de um jovem rebelde pelas tropas do ditador Muamar Kadafi. O pai buscou o corpo do filho por três semanas, recusando-se a aceitar a morte. Quando encontrou, o corpo estava praticamente intacto, muito bem preservado. Para os muçulmanos, é sinal divino de santidade, de alguém que luta por aquilo que é justo. "É uma história de sacrifícios, dos impactos que a morte pode ter e de como as pessoas buscam explicações espirituais diante de fatos tão cruéis. Assim é a guerra. Essa foi minha história", afirmou.
Antes da Líbia, o jornalista tinha passado sete meses no Sri Lanka, país mergulhado durante quase 30 anos (1983-2009) em uma sangrenta guerra civil. E foi essa a história que Jon Lee foi buscar. Depois de derrotados pelo governo, os militantes rebeldes do grupo "Tigre do Tâmil", que lutavam por um Estado independente, foram dizimados - estima-se as mortes em mais de cem mil. Outros milhares foram encaminhados a campos de concentração. "E ninguém estava escrevendo sobre o que estava acontecendo por lá. Foi muito difícil investigar, andar pelo país. Fiz viagens clandestinas. Foi um de meus trabalhos mais importantes, certamente". A reportagem, com 20 páginas, foi recentemente publicada pela New Yorker.
"Escrevo em média quatro reportagens por ano. Cada uma delas me consome cerca de três meses de produção. Sim, sou muito privilegiado, pois tenho recursos da revista para trabalhar dessa forma e cerca de um milhão de assinantes e leitores que gostam de narrativas de fôlego", admite Jon Lee. Nessas coberturas de guerra, ele revela que uma das armadilhas é escorregar na divisão maniqueísta do mundo entre bons x maus. "Ser vítima não significa necessariamente ser do bem", sentencia. Para ele, a guerra torna todos perversos - e suscita vários dilemas morais.
"É bom ter dúvidas, para que a gente se fiscalize o tempo todo". Jon Lee recusa o rótulo de jornalista-ativista e diz que prefere criar caminhos para que os leitores pensem criticamente, por conta própria. "Prefiro contar histórias que capturem o leitor e o transportem para a narrativa", disse. Para ele, o jornalismo é uma missão pública, que exige forte compromisso social. Se, diante de tantas situações cruéis e trágicas, já pensou em desistir das reportagens? Jon Lee responde: "Sou como as mulheres. Dar à luz é extremamente doloroso. Mas quando terminam de amamentar, elas já começam a pensar em outro filho".
Excelente texto, Chico! O jornalista Jon Lee Anderson está certíssimo! É preciso uma apuração mais consistente sobre o que está acontecendo no Oriente Médio. Muitos jornalistas fazem suas críticas baseado no que viram por outras agências. Mas, para você realmente fazer uma crítica e ser conciso nela, acredito que é preciso uma maior participação no movimento que está ocorrendo no Oriente Médio para se ter um maior embasamento sobre os fatos. Ou seja, precisamos de mais matérias como as do Jon Lee para nos informarmos melhor e para apurarmos as nossas análises críticas.
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