domingo, 6 de julho de 2014

6 DE JULHO - IRA DIVINA

Deu forrobodó dos mais brabos nas alturas divinas do Himalaia. Briga feia. A ata veredito das quartas-de-final foi divulgada, tornada pública. Tive acesso ao documento. Tomo a liberdade de transcrever os trechos mais relevantes, aqueles que representam as vontades ecumênicas dos deuses do futebol. Vamos lá. "Declaro aberto o encontro. Tomem todos seus lugares, por gentileza. Sejamos breves e objetivos, sem papinhos furados. Passemos à ordem do dia. Comecemos pela partida que resgata ancestrais e explosivas rivalidades. Os meios de campo são equilibradíssimos. Os dois melhores da Copa. A Alemanha é mais encorpada, mais cascuda. Vem de um vice-campeonato e de duas eliminações seguidas em semifinais, uma delas atuando diante da própria torcida. A França é ainda jovem, caminhando começando, tem gordura para queimar. Está usando o Mundial como laboratório para a Euro de 2016, que vai sediar. O técnico francês já reconheceu que o lugar dos Bleus é entre os oito melhores. Se ele está falando... que se cumpra a vontade de Didier Deschamps. Ponto dois da pauta. O clássico sul-americano. Bem, a Colômbia já cumpriu campanha lindíssima. Histórica. Está nos anais. Anunciou para o mundo o craque James Rodríguez. Mas futebol é também história. Embora os dois times joguem de amarelo, a camisa do Brasil é mais pesada. O escrete de Felipão também flertou muito de perto com o inferno. Sobreviveu. Renasceu. Muito mais forte. David Luiz, o gigante da cabeleira dos cachos esvoaçantes, é até aqui o melhor boleiro da Copa. Registrem aí: marcará um golaço de falta. Dos mais estupendos do torneio. Por merecimento, James deixará sua marca de artilheiro. Thiago Silva dará contornos finais ao placar. Para enterrar de uma vez por todas essa tolice do desequilíbrio emocional e para confirmar que o choro é humano - e que o futebol que o capitão brasileiro joga é manjar dos deuses. Fechamos a sexta-feira, certo? Tópico terceiro. Perfeitamente. Argentina e Bélgica. Os hermanos vão atuar como vêm fazendo desde o início da Copa - de forma fria a calculista, pragmática, robótica, sem arroubos de encantamento. Estão obcecados pela ideia de ultrapassar as quartas, depois de longuíssimos e doloridos vinte e quatro anos. A pressão é enorme. Ficam satisfeitos com a contagem mínima. E não reclamem, meus nobres conselheiros - a Espanha, com a nossa proteção, foi campeã em 2010 exatamente fazendo valer esse raciocínio. Um a zero era goleada. E tome tic-taca. Dessa vez, Messi aparecerá pouco. Vai até perder gol feito, no final da peleja. Para que fique bem claro qual é o lugar que cabe a ele nesse latifúndio terreno dos gramados. É gênio. Craque. Dos gigantes da história. Mas não é deus. E como humano, erra. Já Higuaín vai desencantar. Os brasileiros ficarão felizes, achando que Fred talvez também consiga dizer a que veio na Copa. O centroavante argentino será responsável ainda por uma quase queda do técnico da seleção celeste e branca, depois de uma bola que morrerá no travessão. A Bélgica não fará por merecer. Chegou anunciada por clarins e tubas dos especialistas, confetes e serpentinas, como a zebra capaz de assustar os bichos papões. Tudo o que conseguiu fazer, no entanto, foi ficar alçando bolas na área, para grandalhões cabecearem. Muito pouco. Além do mais, sejamos sensatos, chega um momento numa Copa em que só os gigantes sobrevivem. Os pequenos, os mais fracos? Lembrem-se: a justiça futebolística é diferente de outras justiças divinas. Às vezes, os não favoritos até vencem. Mas só às vezes. Não agora. Argentina segue, um a zero. Peço só mais um instante de paciência. Estamos terminando. Notem, acho que a mesma lógica subjetiva que acabamos de estabelecer deve ser aplicada à Holanda e Costa Rica. Os laranjas estão batendo na trave faz tempo. Refugam na última pernada. Três vice-campeonatos. Derradeira chance. Sim, concordamos todos, o técnico deles é um arrogante dos infernos. Perdão pela palavra demoníaca. Só que o sujeito é mega competente, tipo assim, está muito longe de ser um looser. Onde aprendi essas palavras moderninhas? Ando navegando com mais frequência pelas redes sociais dos céus. Tudo bem, prometo controlar meu vocabulário. Formalidades da linguagem. Voltemos ao ponto principal. Foco. A Holanda vai se lançar ao ataque. Mas os empolgados e bravos Ticos da Costa Rica merecem mais que os apáticos e resignados belgas. Levarão a disputa para a decisão por pênaltis. O goleiro Keylor Navas vai ser mais uma vez a estrela da festa, defesas monumentais, que serão incluídas depois nos melhores lances da Copa. Nas penalidades, a artimanha do professor holandês dará contornos finais à disputa. Ele usará a terceira substituição para colocar em campo, aos 14 minutos do segundo tempo extra, o goleiro reserva do Carrossel. O segundo arqueiro será protagonista da festa laranja. Os costarriquenhos vão fazer festa também. Muita alegria. Serão aplaudidos pelos empolgados torcedores, com muita justiça. Voltarão para casa como heróis de uma nação que, vale lembrar, não tem exército. Não gostam de guerras. Tudo certo. Ah, sim, por favor, há uma recomendação final que preciso passar a todos. É muito importante. Nas oitavas, abençoamos as traves. Nas quartas, dedicaremos atenções especiais aos craques. Protejam os tornozelos, as canelas, os joelhos e as lombares deles. Nada de contusões. Essa Copa, tão sensacional, não merece ficar sem suas estrelas de primeira grandeza, em sua fase derradeira. Messi, Robben, Neymar e Schweinsteiger estarão em campo nas semifinais. Redobrem, tripliquem as atenções. Dediquem-se a acompanhar especialmente os quatro citados. Estamos acertados? (fez-se silêncio.  Conselheiros imóveis. O chefinho entendeu como concordância). Pois bem. Ficamos por aqui. Bom retorno para todos. E que as deliberações aqui adotadas sejam rigorosamente cumpridas. Conto com o empenho de todos". A ata foi novamente assinada por todos os presentes e devidamente registrada no cartório dos céus. Detalhe não menos relevante: as decisões foram todas tomadas por consenso. Unanimidade. No sábado, seis horas e quarenta minutos da tarde, horário de Brasília, perto dos quarenta minutos do segundo tempo de Brasil e Colômbia, ouviu-se em alguns cantos do planeta um urro gutural vindo do topo do Himalaia. Foi assustador. O presidente do conselho dos deuses do futebol, um senhorzinho barbudo atarracado, mas muito forte, misto de entidade maia com deus iorubá, alguns traços humanoides, estava parado na frente do telão, atônito. Estarrecido. Transtornado. Não tirava os olhos das imagens que repetiam à exaustão a violentíssima joelhada do lateral colombiano Zuñiga nas costas do camisa 10 brasileiro. Gritava "levanta, Neymar! Levanta, Neymar! É uma ordem. Eu te protejo". Mas sentia que forças estranhas obscuras e nefastas estavam a agir naquele momento também. Não conseguia ter controle da situação, por mais que tentasse. Quando a fratura na terceira vértebra do moleque foi confirmada, bateu com o cajado no chão, com toda a ira que conseguiu reunir. Teve um ataque histérico. Sem perder mais um minuto, classificação brasileira carimbada, começou a disparar pelas redes sociais divinas mensagens para todos os membros do conselho que tinham participado da reunião no dia anterior. O que vocês fizeram? Que sacanagem é essa? Combinamos que todos os craques estariam protegidos. Todos. E Neymar está fora da Copa. Justo ele. Estúpidos! Cretinos! Traíras! Já viram assembleia do PT sem discurso do Lula? Já viram reunião do ministério brasileiro sem bronca da Dilma? Já viram cédula eleitoral ou urna eletrônica em São Paulo sem os sobrenomes Serra ou Alckmin? Já viram fala da Marina Silva onde não apareça com destaque a expressão desenvolvimento sustentável? Já viram uma edição da revista Veja (e aqui ele fez questão de em seguida limpar a boca) sem acusações contra o movimento comunista internacional que quer tomar o poder no Brasil? Já viram novela do Manoel Carlos sem uma Helena chorona? Como é que vocês podem conceber ou querer uma Copa do Mundo no Brasil sem o Neymar? Não existe. Que tragédia. Lamentável. Quando ele estava lá caído, no gramado, tentei reverter a situação. Não consegui. Forças muito poderosas agiam em sentido contrário. Alguém queria vê-lo seriamente machucado. É grave. Temos um traidor entre nós. Já abri sindicância. Uma comissão de notáveis, todas entidades da minha mais estreita confiança, já está investigando o caso. Exijo conclusões rápidas. Rito sumário. Quero todos aqui para uma reunião extraordinária na próxima segunda-feira. Todos. O debate sobre as semifinais acontecerá somente depois que essa porcaria tiver sido esclarecida. E me liguem com o Felipão, por favor. Agora. Preciso conversar com o gaúcho de bigode. Imediatamente. Papo confidencial". O próximo conclave no Himalaia promete ser bastante tenso.      

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