domingo, 20 de outubro de 2013

(DES) CAMINHOS DE UM TEXTO EM NOITE DE DOMINGO

Já tinha escrito bem umas trinta linhas sobre a polêmica das biografias não autorizadas quando me irritei, rabisquei tudo com raiva (ainda tenho o antiquado costume de escrever primeiro à mão, para depois transportar os garranchos para o computador), fiz uma bolotinha de papel amassado, devidamente arremessado em seguida no cesto dos recicláveis. O texto estava muito chato, nenhuma novidade, ao contrário, era muito mais do mesmo que já havia sido dito e repetido durante a semana. Ainda tentei pedir ajuda aos universitários cadernos especiais dos jornais de domingo, a ver se encontrava alguma inspiração, um "gancho" original, como a gente costuma dizer em linguagem jornalística. Nada. Vai ver o assunto esgotou-se mesmo. Além do mais, para mim a questão é tão cristalina, biografias devem ser livres, sem necessidade de prévia autorização, a consagrar não apenas a máxima da liberdade de expressão e do direito à informação, mas também a premissa que diz que as histórias de pessoas públicas à humanidade pertencem, como patrimônio coletivo indispensável à construção de nossa memória e identidade. Sobre essas trajetórias, é possível construir diferentes narrativas, versões que se entrelaçam e se questionam, num exercício honesto e equilibrado de busca da melhor versão possível dos fatos. Parece-me tão óbvio. É? Não sinto entusiasmo algum em investir outras tantas linhas nesse discurso. Melhor tomar banho. Quem sabe aparece alguma ideia melhor, mais palpitante, como diria uma de minhas primeiras chefes e editoras, ainda no início dos anos 1990, quando eu era um jovem primeiro anista do curso de Jornalismo, a perseguir pautas relevantes e arriscando textos que pudessem ser encantadores (assim eu achava) para os professores. Ela me deixava experimentar, corrigia, sugeria, com toda a paciência do mundo. Era delicada até para dizer "meu querido, aqui não dá, está piegas demais, literatice sem sentido. Vai lá e melhora". Pois neste domingo me lembrei dela e lá fui eu então para o chuveiro tentar esquecer as biografias e deixar vir à tona outro assunto. Pode parecer tremenda sandice, só coincidência, mas o banho tem sido momento mágico para desencalacrar pautas que se anunciavam ameaçadoras, incógnitas indecifráveis, ajudando a água morna ainda a jogar luz sobre trechos de textos com os quais já tinha brigado com todas as minhas forças, sem ficar satisfeito com o que tinha escrito. Um artigo sobre a atual fase do Santos? Não quero. Chato. Monótono. Repetitivo. A cara do time. É, o time anda numa draga danada, jogos sofríveis, de dar nervoso - ou sono. Está certo, ganhou ontem. Não fez mais que a obrigação. Foi goleada? Só fez a lição de casa. Quero só mais cinco pontos e vou finalmente respirar aliviado, Claudinei. Duas vitórias. Exatamente. Outro estalo. É, pode ser, resenhas dos últimos livros que li. Pensei em dois, em especial. "A maçã envenenada", do Michel Laub, que rompe com a narrativa linear, investe nos períodos longos e tem como pano de fundo um show do Nirvana para mais uma vez combinar angústias individuais com tragédias coletivas e contar uma história de liberdades e prisões da alma, incluindo suicídios. "Reprodução", do Bernardo Carvalho, faz uso de fluxos de consciência e das repetições de falas e raciocínios de um jovem estudante de chinês e de uma delegada descontrolada para criticar duramente a sociedade da avalanche de informações, consumidas rapidamente em blogs e colunas de ditos "formadores de opinião", numa tendência que só faz reforçar a carência de conhecimento mais aprofundado e a fragilidade dos argumentos como marcas do nosso tempo, a "era das redes". Concordo, são dois bons livros, mas não foram arrebatadores, ao menos para mim. Não quero escrever sobre eles. O drible, do Sergio Rodrigues? Esse me tocou profundamente, na alma! E não só porque fala de futebol. Mas ainda não terminei. Não, ainda não. Estou no finalzinho. Decidi corrigir provas, à espera da tão desejada inspiração para um texto. E, sei lá, num estalo, lembrei que, depois de quase quinze anos atuando como professor universitário, posso dizer modestamente que ajudei a formar 24 turmas de jornalistas. Não sei se isso é bom ou ruim. Noutro relâmpago de memória, e comecei a gargalhar sozinho, me veio à cabeça uma situação recentemente vivida na universidade. Estava no posto bancário, pilha de boletos na mão, aproveitando o intervalo da aula para resolver as pendências financeiras do mês. Comecei a ouvir as vozes de duas meninas, uma mais aguda, outra mais grave. "Meu, aquela vadia agora resolveu me ignorar. Não respondeu as mensagens que mandei no final de semana. Sabe o que é isso? Fal-ta de pê-nis! Fal-ta de pênis!", cantava uma delas, a mais estridente, no ritmo do "é cam-pe-ão" entoado nas arquibancadas. Não pude resistir. Abandonei o caixinha e virei para ver quem eram aquelas figuras. Ficaram vermelhas. "É... então, vamos ao Hopi Hari no final de semana?", emendou sem conseguir remendar a de voz mais forte. Engraçadíssimo, mas também não rende mais do que isso. É a história quem nos diz o tamanho que quer ter. Não adianta forçar. Enquanto ainda ria com as lembranças da cena, Daniel vociferava na frente da televisão, contra o vídeo-game. "Ah, meu deus, assim não dá. Esse cara é muito ruim. Grosso! Não acerta um chute. É uma calamidade! E esse juiz é um roubão, não marca uma falta. Torce para o outro time! Só pode". Comecei a rir de novo. E nada de aparecer um texto, curtinho que fosse. Fui acompanhar a rodada do Brasileirão. Futebol sempre alimenta boas histórias. Vi a vitória do São Paulo, o empate entre Internacional e Grêmio, o empate entre Vasco e Botafogo. Nenhuma novidade. Nenhum texto. Já é final de noite de domingo, primeiro dia do horário de verão, por quem não tenho apreço algum. Vai tocar a maldita musiquinha do Fantástico. Não quero mais escrever.

Um comentário:

  1. Professor, vi o email sobre seu texto de biografias e vim parar aqui. Texto muito bom, como eu esperava. Espero um dia conseguir fazer algo à altura :)

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