Contra
fatos não há argumentos – em primeiro de abril de 1964, um golpe civil-militar
derrubou no Brasil o governo democraticamente eleito do presidente João
Goulart, instalando a partir de então no país um regime de terror que silenciou
vozes, censurou a imprensa (aquela que ousou dizer o que a ditadura não queria
que fosse dito, que fique bem claro), suspendeu eleições e o funcionamento
livre dos partidos políticos e do Congresso Nacional, transformou os movimentos
sociais e os sindicatos em inimigos que deveriam ser trucidados e fez dos estudantes,
intelectuais e artistas “perigosos terroristas”. O regime ainda prendeu,
exilou, torturou, matou e é responsável pelo desaparecimento de corpos e de
histórias de vida de dezenas de militantes que sonharam com outra sociedade e resistiram aos tempos terríveis
do arbítrio, da intolerância e da truculência.
A
história dos opressores já está contada - é aquela cantada em verso e prosa pelos militares
e por aqueles que os apoiaram e que tenta nos convencer que “a revolução salvou
o país da ameaça comunista”. Só ela não nos serve. Porque esconde
informações fundamentais sobre nosso passado recente e nos sonega o direito à
memória coletiva. É uma outra história que a Comissão da Verdade Nacional tem o dever de buscar, de resgatar e de publicizar – a narrada pelas vítimas da ditadura,
que escancara as barbaridades cometidas pelo Estado e as violações de direitos
humanos patrocinadas pelos agentes públicos e que traz à tona as experiências daqueles que ousaram fazer valer o legítimo
direito à resistência contra o arbítrio, reconhecido inclusive pela Organização
das Nações Unidas (ONU).
O que a
gente quer? Cecília Coimbra, historiadora e presidenta do Grupo Tortura Nunca
Mais do Rio de Janeiro, responde, em entrevista publicada pelo Blog em janeiro
do ano passado: “A gente quer saber o que
aconteceu. A gente não quer a verdade única, trazida pelos governos. Nós
queremos as variedades das histórias que estão aí. Essas memórias precisam ser
contadas. Nós somos testemunhas do período e temos de dar esse testemunho. Os
militares precisam publicamente mostrar suas caras e dizer o que fizeram e que
crimes cometeram em nome da tal segurança nacional”.
Felizmente, esses mesmos princípios de atuação são defendidos
por dois membros nomeados pela presidenta Dilma Rousseff para compor a
Comissão. A professora e advogada Rosa Cardoso, que defendeu presos políticos
durante a ditadura, destacou no jornal “O Estado de São Paulo” que “essas
comissões, quando são criadas oficialmente, pretendem rever condutas de agentes
públicos. É isso o que fundamentalmente nós vamos rever: condutas de agentes
públicos”.
Também no “Estadão”, o pesquisador Paulo Sergio Pinheiro,
histórico militante dos direitos humanos, engrossa o coro: "o papel da comissão
está definido na lei e não há nada a ser inventado. A lei diz que seu objetivo
são as graves violações de direitos humanos, particularmente o esclarecimento
das circunstâncias em que ocorreram. A lei também especifica com clareza os
casos: tortura, morte, desaparecimento forçado, ocultação de cadáver e sua
autoria, ainda que ocorridos no exterior. (...) Vingança não tem lugar
no diálogo democrático e essa história de revanchismo está encerrada. (...) A moldura do trabalho da
Comissão é o que está na lei. E ali não há polêmica, controvérsia, vingança,
nem dois lados. O único lado é o das vítimas, as pessoas que sofreram violações
de direitos humanos”.
Em artigo brilhante, que merece
ser lido na íntegra (e relido, lido novamente, mais uma vez...), o jornalista
Paulo Moreira Leite, colunista de “Época” e uma das raras vozes lúcidas da
grande imprensa, escreve que “a
Comissão não foi criada como um seminário genérico sobre desrespeito aos
direitos humanos – onde caberia avaliar erros e desvios de conduta de qualquer
pessoa, autoridade ou não, de direita ou de esquerda, em qualquer tempo e
espaço do território brasileiro. Caberia, nessa situação, discutir o papel dos
“dois lados”. Ou três “lados,” quatro, ou cinco… Criou-se a Comissão da Verdade
com uma finalidade específica, que é examinar os crimes da ditadura,
porque esta foi a lacuna deixada pela história. Estamos falando de crimes
cometidos por representantes do Estado, em nome dele, e não por qualquer pessoa”.
Ao final do texto, ele pergunta, com sabedoria: “guardando
todas as diferenças entre os dois casos, alguém acharia razoável que, para se
investigar Klaus Barbie, o carrasco nazista de Lyon, se apurasse a violência
organizada pela Resistência Francesa de Jean Moulin?”.
O que desejamos conhecer com
detalhes e finalmente é a história que foi escrita nos porões da ditadura
militar - terrível, mas necessária. Por isso, a Comissão da Verdade Nacional só pode ter um lado – o da
decência histórica.