FOTO - TUCA VIEIRA |
Sei não... Mas olho para esse mundão de todos nós e a sensação que tenho é que as peças estão caoticamente invertidas, uma bagunça geral. Perigosa. Esfrego os olhos e volto a tentar - mas as imagens insistem teimosamente em se apresentar de pernas para o ar. O que vejo causa estranhamento, repulsa, angústia. Incomoda. Dá um nó na garganta. Não me reconheço nessas fotografias.
A política, minha eterna paixão, saiu de casa sem deixar bilhete com explicações e abandonou também as ruas, encastelando-se nas telas de aparelhos de TV - é nelas que o debate político acontece, fundamentalmente. Deixou de lado sonhos, esperanças, utopias, bandeiras de luta, divergências ideológicas, resignando-se a um tecnicista "concordamos na essência, discordamos pontualmente, vamos ver quem está mais preparado para administrar e gerenciar, de forma pragmática, mecânica e asséptica". A esquerda fala usando o vocabulário da direita. A extrema-direita não esconde mais seu ódio. E avança.
As cidades transformaram-se em reinos de proibições, fomentando fiscalizações e punições, num abandono quase total do espaço público, onde a vida de fato acontece, para buscar refúgio em condomínios e edifícios de luxo, com guaritas, seguranças armados e cercas eletrificadas, a apartar e proteger os que têm e podem dos perigos da fome e da miséria. Como a cidade não mais pertence aos cidadãos, pode-se fazer com ela o que o egoísmo e o individualismo mais vorazes e predatórios determinam: jogar lixo nas ruas, estacionar em fila dupla e em locais proibidos, ocupar vagas de idosos e de portadores de deficiências, jogar o carro em cima do ciclista ou do pedestre que atrapalha a volta para casa, desperdiçar água indiscriminadamente, permitir que os cachorros emporcalhem as praças.
Nas arquibancadas, o torcedor em êxtase vibra com mais um triunfo do time que joga feio, porque entende que "futebol é resultado". O craque imarcável que dribla, cria, inventa, improvisa e brinca com a bola deve tomar cuidado, pois algum zagueiro mais afoito ou nervoso pode perder a cabeça e resolver entrar para quebrar as pernas do artista genial. Punimos a arte, a alegria e a ousadia. Incentivamos os brucutus. Caramba, está tudo errado.
Não é difícil perceber que tais comportamentos e espíritos são também (embora não exclusivamente) fomentados por um jornalismo que se transformou em narrativa do espetacular, preocupado em cutucar nossos instintos mais primitivos e em provocar sensações e histerias coletivas. O sujeito investigado pela Justiça toma cafezinho com repórteres de veículos de referência nacional e pauta a agenda pública de discussões. Já caiu o governador fulano de tal? Ainda não. Mas é questão de tempo. Raciocínios e reflexões? Para quê? Gritamos, praguejamos, queremos pegar e esfolar. Entendemos? E afinal é preciso entender? Nos programas de entretenimento, o humor que fazia rir com gosto converteu-se em grotesco e odioso desfilar de preconceitos contra as chamadas minorias.
Acelerados, procuramos as imagens. Ignoramos as palavras. Endeusamos e reificamos a TV, que o sociólogo Octavio Ianni já chamou de O Príncipe Eletrônico. Recusamos a chatice da literatura, o exercício paciente e persistente da leitura. Quem é que tem tempo para essa bobagem? Nos tornamos um pouco mais bestas-feras. Com a estética fragmentada do vídeo-clipe, estereótipos são reforçados. Desumanizamos a condição humana. Naturalizamos as injustiças. Cinicamente, impõe-se o silêncio cúmplice diante do assassinato de crianças e jovens pobres, de moradores de rua, de trabalhadores rurais, de negros, indígenas e homossexuais. Mas acompanhamos horas a fio, sem tirar o olho da telinha, o julgamento de anônimos alçados à condição efêmera de celebridades, a chacoalhar as grades e os portões dos tribunais e a exigir justiça. Defende-se a pena de morte - mas talvez apenas para os de baixo. Porque uns são mais iguais que outros, como escreveu George Orwell.
Quando bate o sentimento de culpa, o sujeito corre a procurar padres, pastores e mulás, suplicando apoio de religiões que mais servem como instrumento de dominação e de intolerância, a incentivar guerras santas e lavagens cerebrais, a espalhar que "afinal a minha religião é certamente sempre a melhor de todas, o meu deus é mais deus, está acima de todos os outros". Para triunfar espiritualmente, é preciso destroçar a racionalidade científica, fazendo dela a inimiga mortal dos dogmas e da fé. Já dizia o físico Albert Einstein que enfrentamos tempos complicados, quando é mais fácil quebrar um átomo do que desconstruir um preconceito.
O Estado é laico, mas há escolas que desdenham da Teoria da Evolução nas aulas de ciências, substituindo a origem das espécies e a seleção natural pelo paraíso bíblico e pelo criacionismo. Sai Charles Darwin, entram Adão e Eva. O Estado é laico, mas bancadas religiosas conseguem aprovar um Código (DES)Florestal que é o mundo dos sonhos da moto-serra. O Estado é laico, mas grupos religiosos combatem ferozmente a homossexualidade ("um pecado, coisa de gente anormal") e o direito ao aborto, impedindo a mulher de ter direitos sobre o corpo dela (são "assassinas, não respeitam a vontade divina"). O Estado é laico, mas igrejas transformam grades de programação de emissoras de rádio e televisão (concessões públicas, que deveriam prestar serviço público) em púlpitos para proselitismo amplificado de suas crenças. Isso tudo sem falar na mercantilização da fé, nas contribuições que garantem acesso ao reino dos céus.
Nas empresas, no mundo do trabalho, a ordem é competir para aniquilar o concorrente. Quem trabalha o faz por pura necessidade - há muito o prazer se perdeu, em algum lugar do passado. Convive-se com pressões, cobranças, constrangimentos, avaliações desmedidas e esdrúxulas, acúmulo de tarefas, metas inatingíveis e tresloucadas. O sono e o descanso rareiam. Finais de semana transformam-se em dias úteis. Longe se vai a premissa marxista de "oito horas de trabalho, oito horas de descanso, oito horas de lazer". O homem-máquina não pára. Não tem tempo para dar risadas com os amigos. Nem mesmo para uma só cerveja gelada. Só uma. Ah, mas tudo bem, temos as redes sociais, mandei uma mensagem por celular, passei um e-mail. O espaço real é substituído pelo virtual.
O "é preciso se destacar" tão presente no mundo corporativo contamina desde cedo as cabeças das crianças e adolescentes que, pressionadas pelos grupos, acocadas pelos pais, ávidas por reconhecimento e fama, preferem deixar de lado princípios éticos e de cooperação, os laços com o conhecimento, a dúvida, a pergunta, a curiosidade e as boas leituras para se destacar pelo saber levar vantagem, pelo empreendedorismo, pelo enganar e colar nas provas, por comprar e clonar trabalhos, por consumir a gastar. Cada vez mais - sejam gastos obsessivos com a busca do corpo perfeito, segundo padrões da moda, e moldados em academias e por meio de dietas malucas, sejam gastos com viagens para o exterior a cada três meses (Disney, de preferência, e para comprar mais um pouco, claro), além de ostentar para os amigos os carrões de última geração que pertencem aos pais, verdadeiras máquinas que parecem saídas de filmes futuristas, também trocadas a cada ano (ficam obsoletas, é verdade), e geralmente dirigidas por motoristas fardados.
Os responsáveis por "formar" essas crianças talvez devessem ouvir o filósofo Mario Sergio Cortella, quando ele diz que "o mundo que queremos para nossos filhos depende muito dos filhos que criamos para atuar neste novo mundo". Mas aí já seria exigir demais. Ouvir para quê? Não dá para parar, não dá para ouvir. É preciso acelerar. É preciso ganhar dinheiro. E, afinal de contas, o dinheiro é deles mesmo, fazem com a grana o que bem entenderem. Têm. Podem. Fazem. A equação é simples.
Anda mesmo da pá virada esse mundo, como diria meu avô. Alguma coisa está fora da ordem, já cantou Caetano Veloso. Muita coisa está fora da ordem, Caetano. Ou, sei lá, vai ver que o ranzinza sou eu. Um chato de galocha, como também costumava falar meu avô. Talvez seja a idade, os 40 já chegaram, os cabelos brancos aparecem... quem sabe apenas uma fase mais amarga da vida. Tomara. Mas será? Será mesmo?
Não é fácil mesmo professor..Mas temos que fazer nossa parte, colaborar no que pudermos para um mundo melhor... Procurar suavizar um pouquinho as dores desse mundo, seja com um sorriso, com uma ajuda financeira, com nosso suor ou (como o senhor faz) com textos que ajudem a abrir nossos olhos.
ResponderExcluirMas, tenho absoluta certeza, o mundo melhorará! A humanidade já caminhou tanto..O que hoje é precário, insuficiente, há séculos, milênios sequer existia..
Assim como o mundo medieval criou todas as condições para que o capitalismo se desenvolvesse, acredito que o atual sistema gerará todos os elementos que necessitamos para que um novo sistema se firme. Quiçá mais justo, mais feliz e verdadeiro! Fé no futuro Prof! =)