segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

POR QUE DETONAR O ENEM?

Há cheiro de fritura ministerial no ar. A grande mídia limpinha, sem esconder sorrisos marotos de felicidade, anda sorrateiramente anunciando que, por conta dos problemas recentes ocorridos com o Enem (o Exame Nacional de Ensino Médio), mais especificamente com o Sistema de Seleção Unificado, o  Sisu (situações como pontuação zerada de candidatos, dificuldades para acessar o sistema, exposição indevida de informações sobre notas de estudantes), o ministro da Educação, Fernando Haddad, estaria sendo observado de muito perto pela presidenta Dilma Rousseff. Tradução (se é que é necessária): Haddad estaria na marca do pênalti, com os dias contados, podendo ser muito em breve demitido do governo.

A saída de Haddad representaria uma vitória política estratégica importante para os jornalões e companhia que, como já procurei discutir em outro post do blog, fazem o papel de oposição no Brasil. O atual titular da pasta da Educação, afinal, foi bancado pelo ex-presidente Lula. Investir na queda do ministro significaria matar dois coelhos com uma cajadada só: atingir duramente uma das áreas prioritárias do governo Dilma, que vem, desde antes da posse, recebendo atenção especial da presidenta, além de “reforçar” (sempre segundo a versão midiática que se pretende construir) a incompetência de Lula na escolha de seus auxiliares próximos e a “herança maldita” que teria deixado para a sucessora. Eis o efeito dominó midiático: atingir o Enem para derrubar Haddad, chamuscando Dilma e queimando Lula.

Não será de se estranhar também se tal queda estiver sendo sutilmente estimulada, nas catacumbas do poder, pelo “fogo amigo”, pelas disputas intestinas do próprio PT. Haddad, afinal, é invariavelmente lembrado e citado como possível candidato do partido à eleição municipal de 2012, na capital paulista. Seria uma forma de o PT, com sangue novo e renovado, tentar recuperar a administração da maior cidade do país, que já governou por duas vezes (com Luiza Erundina, entre 1989 e 1992, e com Marta Suplicy, entre 2001 e 2004).

Não menos importante, é preciso dizer com todas as letras que poderosos grupos privados têm agido sistematicamente, muitas vezes na surdina, com intuito de não deixar muitas marcas ou pistas, para minar o Enem, que mexeu com gente graúda. Por isso mesmo, assumiu a condição de uma importante vitrine (e vidraça) do governo federal. Penso ter sido positivo que o exame tenha se transformado em processo seletivo para as universidades públicas federais. Até então, a rede atuava com vestibulares dispersos e fragmentados, desconectados.

Foi avanço também a prova passar a valorizar conteúdos críticos, reflexivos e interdisciplinares, o raciocínio, e não mais decorebas. Pois é justamente aí que o bicho pega novamente e que entra o desconforto dos cursinhos pré-vestibulares: musiquinhas fáceis e apostilas têm agora pouca serventia. O mesmo vale para o ensino médio privado, que não raro, e salvo honrosas exceções (generalizações são sempre injustas), preocupa-se apenas em “preparar” (melhor seria dizer adestrar) os alunos para responder questões dos vestibulares, em uma proposta pedagógica muito distante da formação crítica e cidadã que deveria ser garantida aos jovens. No ensino médio, a imensa maioria das escolas formata projetos, grades e conteúdos, trabalha com conteúdos apostilados e pasteurizados, para garantir sucesso nos exames - e depois as instituições fazem marketing dos feitos, quando alcançados.

Como reforça o sociólogo Rudá Ricci, em texto publicado pela Agência Carta Maior em novembro do ano passado, o novo cenário incomodou. “Existe uma movimentação para politizar o tema. Vamos ter o avanço de uma oposição organizada, que junta as forças políticas que perderam a eleição nacional com escolas particulares e com cursinhos que têm muito interesse na manutenção do sistema de vestibular”.

O neurocientista Miguel Nicolelis, que conhece a fundo o Standart Admissions Test (SAT), exame norte-americano com o qual o Enem guarda muitas semelhanças, disse em entrevista publicada pelo blog Viomundo, também em novembro passado, que “o vestibular transformava o colegial numa câmara de tortura. Uma pressão insuportável. Um  inferno tanto para os meninos e meninas quanto para as famílias. Além disso,  um sistema humilhante, porque as pessoas que não podiam frequentar um colégio privado de alto nível sofriam com o complexo de não poder competir em pé de igualdade. Por isso os cursinhos floresceram e fizeram a riqueza de tanta gente, que agora está metendo o pau no Enem. Evidentemente  vários interesses estão sendo contrariados devido ao êxito do Enem.”

Tudo isso, no entanto, não isenta o governo federal de erros (e alguns foram graves mesmo) no gerenciamento do processo. Em 2009, as provas foram "vazadas", ainda na gráfica; no ano passado, foi uma grande bobagem impor aos estudantes condições estapafúrdias (não usar lápis!), no momento da realização do exame. Ajudou a criar animosidades. Questionários repetidos e cabeçalhos trocados não são erros aceitáveis em uma proposta pedagógica dessa magnitude e com essa importância. Da mesma forma, não cabem vazamentos de informações sigilosas dos estudantes, dificuldades de acesso, sistema lento, notas erradas, transtornos recentemente enfrentados pelos alunos que participaram do exame.

É preciso aceitar que o Enem cresceu – é muito difícil uma prova para quase cinco milhões de pessoas não comportar algum tipo de desvio. Por isso, torna-se urgente quem sabe pensar em avaliações periódicas de menor alcance, distribuídas ao longo do ano, em datas diferentes. Também seria razoável aplicar o exame de forma regionalizada e descentralizada. O procedimento ainda abriria espaço para avaliações mais sintonizadas com as especificidades regionais, sem perder noção de conjunto. O Enem, tal como está formatado, representa uma conquista, um grande avanço para a educação brasileira.

Ciente dessa conjuntura, Nicolelis destaca, na mesma entrevista já citada, que “o Brasil está tentando iniciar esse processo. Quando você inicia um processo dessa magnitude, com milhões fazendo exame,  é normal ter problemas operacionais de percurso. Isso faz parte do processo”. E o neurocientista candidatíssimo ao Nobel completa: “estamos caminhando para o Enem ser a moeda de troca da inclusão educacional. As crianças vão aprender que não é porque elas fazem cursinho famoso da Avenida Paulista que elas vão ter mais chance de entrar na universidade. Elas vão entrar na universidade pelo que elas acumularam de conhecimento ao longo da vida acadêmica delas. Elas vão poder demonstrar esse conhecimento sem estresse, sem medo, sem complexo de inferioridade. De uma maneira democrática. E, num futuro próximo, tanto as crianças de escolas privadas quanto as  de escolas públicas vão começar a entrar nesse jogo  em pé de igualdade”.

Sim, o Enem precisa ser debatido publicamente, criticado, melhorado, aperfeiçoado. Mas jamais abandonado, detonado, desqualificado  ou desconstruído. “A sucessão de problemas relacionados à aplicação do Enem tem gerado reações acaloradas. É compreensível que seja assim, especialmente entre alunos que se veem prejudicados com falhas tanto na organização quanto no conteúdo de provas. São erros que obviamente exigem correção. No entanto, o calor dos protestos não deveria ofuscar a lógica por trás do novo Enem, uma iniciativa de mérito, que pode trazer numerosos benefícios, uma vez superados problemas iniciais, muito deles relacionados a questões de logística”, escreveu na Folha de São Paulo Jorge Werthein, doutor em Educação pela Universidade de Stanford (EUA). Para ele, "a lógica do Enem faz sentido, pois se fundamenta em uma nova visão educacional, mais compatível com o século XXI". 

Feitas as contas, é preciso muita atenção e cautela nesse debate, para não aceitar a sedução de cantos de sereias, e disposição firme para defender o Enem. Afinal, como se viu, o exame incomoda gente graúda – e essas forças não são tão ocultas assim.  

2 comentários:

  1. É bom lembrar que as provas vazaram da gráfica da Folha de SP. Coincidência?

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  2. Concordo, o ensino médio privado e os cursinhos de vestibular transformam o professor num palhaço sem graça que engana os alunos com musiquinhas e decorebas estéreis.

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