quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

COMISSÃO DA VERDADE - PARA QUE SERVE?

(*)  João Batista de Abreu, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Artigo originalmente publicado pelo "Observatório da Imprensa", edição de 18 de janeiro de 2011. Reproduzido pelo blog com autorização. 



Professor, poeta, cronista e um dos maiores conhecedores da obra de Carlos Drummond de Andrade, o mineiro Affonso Romano de Sant’Anna tropeçou em pedras no meio do caminho ao condenar a criação da Comissão da Verdade, para investigar os crimes praticados em nome do Estado brasileiro durante o regime militar.

Independentemente da posição ideológica de cada cidadão brasileiro, as famílias têm o direito de localizar seus entes desaparecidos, assim como o Estado democrático tem o dever de colaborar para que seja recuperada a veracidade dos episódios da trama política, mesmo os mais escabrosos. Do contrário deixaremos insepulto um cadáver que mancha a tradição do país e, particularmente, das Forças Armadas brasileiras e de membros do Ministério Público, que fingiam ignorar as denúncias apresentadas pelos réus e advogados de defesa durante audiências na Justiça militar.

O livro Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira, em que Frei Betto narra os suplícios do frei dominicano Fernando de Brito, ex-preso político, traz um depoimento importante sobre a relação entre os torturadores e o Estado:

"A tortura no regime militar brasileiro é sistêmica; suas diretrizes foram definidas pelo Conselho de Segurança Nacional. Portanto não deriva de abusos. Os agentes do DOI-CODI usam codinomes, trajes civis e são impedidos de corte militar dos cabelos. Atuam em grupos de três a cinco, e seus endereços são preservados".


História preservada

Quase todos os países da América e da Europa Oriental que viveram sob ditaduras durante a Guerra Fria instauraram comissões para investigar os crimes de Estado. A vizinha Argentina – onde a repressão foi muito mais violenta do que no Brasil – tornou públicos documentos secretos e prendeu oficiais e ex-presidentes envolvidos em assassinatos e desaparecimentos. Uruguai, Chile e Peru seguiram o mesmo caminho e recuperaram a história dos tempos do arbítrio. Somente o Brasil insiste em varrer a sujeira para debaixo do tapete.

Se é verdade que um grupo de sete pessoas não tem poder bastante para levantar os nomes dos torturadores, que cometeram as maiores atrocidades em dependências militares como o DOI-CODI, em São Paulo, e o quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, então poderíamos questionar qualquer decisão da Justiça criminal, porque sete é o número de jurados que decidem a sorte dos acusados de crime de morte, nos julgamentos em primeira instância.

Por que não tornar público os nomes de empresários que financiaram a Operação – paramilitar – Bandeirantes (Oban), criada na ante-sala dos gabinetes oficiais? Por que não divulgar os nomes de donos de jornais que emprestavam veículos para operações antiguerrilha? A quem interessa manter os jovens brasileiros à margem dessa página obscura de nossa História?

O historiador francês Marc Bloch, herói da Resistência, cunhou um pensamento peculiar sobre a importância do conhecimento. Preso pela Gestapo em Lyon, à espera do fuzilamento, escreve uma carta ao filho de seis anos sobre o valor de se estudar História. Primeiro, ele questiona a idéia de que um conhecimento profundo evitaria a repetição dos erros do passado. Se assim fosse, não haveria nazismo. Para quem pensa que a História serve para combater as injustiças sociais, Bloch argumenta que, se assim fosse, não estaria ele prestes a ser fuzilado. Para que serve a História? Poderíamos dizer que serve para mostrar que em tempos de arbítrio, seja qual for o matiz da ditadura, os crimes de Estado não atingem apenas aqueles que se opõem ao regime, mas a toda uma geração que viveu sob o signo do medo.

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