domingo, 29 de novembro de 2015

‪#‎nãofecheaminhaescola‬ ‪#‎ocupasãopaulo‬

Voltamos ao Colégio Fernão Dias, em Pinheiros, para deixar com os guerreiros e guerreiras que ocupam a escola desde o início de novembro o colchão que havíamos prometido. "Caraca, mano, agora vamos poder dormir melhor. Valeu, mano!". Pela manhã, havíamos passado por lá para entregar mantimentos (arroz, feijão, legumes, ovos) e livros, muitos livros. Nesse retorno, fomos gentilmente convidados a visitar a ocupação. "Entrem, entrem, vamos sair da chuva". Cumprimentos, abraços, acenos e apertos de mão. Meu pai e meus tios estudaram aqui nos anos 60, contei aos garotos que nos receberam, saguão principal do prédio. "Sério mesmo, mano? Aqui? Da hora". Passamos pela secretaria e pela diretoria. Tudo organizado, arrumado e preservado. Sentadas no chão, duas garotas preparavam cartazes com a agenda da semana. Disse aos estudantes que tinha me cadastrado para as aulas livres, mas ainda não tinham me chamado. "Não, mano, vamos chamar, vamos chamar. O senhor pode deixar os seus contatos com esse rapaz aqui, por favor?". Claro. Passei meu celular. "Sobre que assunto o senhor quer falar?". Posso falar de jornalismo, de literatura, de futebol... podemos juntar tudo isso e fazer uma grande roda de leitura e conversa, sugeri. Conversem e vejam o que preferem, o que é melhor para vocês. "Combinado. Da hora! Vamos te ligar ainda hoje". Para mim, pedi, melhor se puder ser durante a semana à tarde ou no final de semana, qualquer horário. "Pode deixar". Passamos pelo refeitório. "O pessoal está preparando o almoço". O cheirinho que vinha da cozinha estava para lá de convidativo. "Querem comer com a gente?". Agradecemos. Já tínhamos almoçado. Passamos pela pátio, as cadeiras cuidadosamente ajeitadas em roda para a apresentação de dança marcada para o meio da tarde. No final da noite, sessão de teatro. De manhã, tinham participado de um sarau. "Essas atividades têm sido muito boas, da hora, ajudam a movimentar a escola, a não ficar parado. E a gente vai aprendendo". Perto da entrada do ginásio, uma caixa com livros. "É aqui que a gente dorme. É coberto, protege do frio e da chuva. Agora está arrumadinho, já demos uma geral. À noite, esparramamos os colchonetes, cobertores, caixas, lençóis. O que tiver. Mas não é fácil dormir no chão duro, mano". O pessoal do Colégio Oswald veio aqui durante a semana, não?, confirma a Lui. "Sim. Ajudaram bastante também". Cacoete de repórter, não me contenho e pergunto como foram os dias com a polícia militar isolando a escola. "Foram tensos, mano. Foi na primeira semana. Fizeram um cordão e não deixavam ninguém entrar nem sair. Ficamos com medo, mas não abandonamos a escola. A gente tinha um colega que conseguia pular o muro num lugar que os pms não sabiam, não conheciam. Ele levava e trazia tudo o que a gente precisava. Agora foram embora. Está mais calmo. Mas a gente sabe que podem voltar, mano". Não há líderes. Não há hierarquias. Tudo é discutido coletivamente, em assembleias. As tarefas são divididas. Na saída, encontro um jovem abraçado ao colchão que doamos. "Poxa, valeu, valeu mesmo, muito obrigado, vai ajudar um montão. É bem molinho...". Me despeço e digo que, aqui fora, estamos acompanhando e aprendendo muito com eles, tentando construir redes de solidariedade. "Sério, mano? Puxa, obrigado, obrigado mesmo. A gente não vai desistir". Senta e chora, governador. No portão, desejamos força e paciência. Continuem resistindo. Atravesso o portão inebriado, leve. Há algo de politicamente muito bonito e singelamente transformador acontecendo em São Paulo. Com a alma tocada por uma esperança renovadora, agradecemos. Valeu, garotos e garotas. O futuro certamente não será mais como era antigamente, mano.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

MENINA BOLEIRA

Saio de casa pedindo 'torça direitinho, hoje é quarta. Tem jogo'. É um código nosso, mandinga que costuma dar certo. Lanço em seguida o mesmíssimo pedido. 'Você sabe, estarei em aula. Vá me mandando notícias'. Ela sorri com os olhos enigmáticos de jabuticaba e balança a cabeça afirmativamente, chacoalhando os cachinhos castanhos que me hipnotizam desde que a peguei no colo pela primeira vez. Ninguém mais no mundo tem esses cachinhos. Continua com os fones no ouvido, celular sintonizado em alguma série do Netflix. Once upon a time? Friends? Anos Incríveis? Não pergunto. Estou atrasado. 'Pai, sim, nem vem, eu já estudei', antecipa-se, esboçando caretinha de reprovação. Não perguntei também. Tudo bem, reconheço. Ia perguntar. 'Tchau. Vai com cuidado', faz questão de dizer, me abraçando apertado. Volta a se esticar no sofá. Não falha. Na hora combinada, lá está ela. Cumpre à risca o bordão 'missão dada é missão cumprida'. Quando busco apressado o celular na pasta, intervalo da aula, a narração da peleja via zapzap é precisa. Em cima de cada lance. José Silvério, Fiori Gigliotti, Osmar Santos  e Milton Leite não fariam melhor. 'Times em campo. Começou. Estamos mal, sem pegar na bola. Só bicão. Dez minutos. Melhorou um pouco. Ricardo Oliveira machucou. Nada grave. Time passou a atacar bem. Três chances perdidas. Uma delas na cara do gol. Pênalti! Gol! Fim do primeiro tempo. Um a zero para nós'. No melhor estilo Primavera Feminina, Simone de Beauvoir no ENEM, meu corpo, minhas regras e #foracunha, conversa de igual para igual com os boleiros da escola. 'Pai, fiz uma aposta com um garoto da perua. Ele ficou espantado. Disse que sei muito de futebol'. Nas férias de final de ano no hotel em Atibaia, gincanas na piscina, desafiou um rapaz que duvidava que existem dois Borussias na Alemanha. De bate pronto, sem deixar a bola pingar no chão, a boleira emendou: "Borussia Dortmund e Borrusia Mönchengladbach. Tudo bem, não sei pronunciar esse nome direito. Mas existe esse time'. Golaço. O garoto pediu tempo para consultar os universitários. Voltou a campo reconhecendo o acerto. E aplaudiu. Vá lá, às vezes ela é turrona, cabeça dura, demora a dar o braço a torcer, mesmo depois de perceber o equívoco. Outro dia um professor nos disse: 'é muito respondona essa menina. Das mais respondonas que conheço. No bom sentido, claro'. Era um elogio. Além do Santos, gosta de acompanhar os campeonatos espanhol, inglês e alemão. Torce um tiquinho para o Barcelona (efeito Neymar), um tanto para o Chelsea ('David Luiz é maravilhoso') e um montão para um dos Borussias - o Dortmund ('Lewandowski foi para o Bayern de Munique, principal rival, é um traíra'). Conseguem ouvir? É certamente uma das grandes corneteiras do futebol contemporâneo. Cornetadas de gente grande. Profissionais. Resmunga, reclama, detona, xinga, diz que está tudo errado. Bufa. Provoca o irmão. 'Que cara horrível. Como pode jogar no Santos?'. Adora ser o centro das atenções. Sei não. Suspeito que às vezes seja só para me irritar. Para a gente começar a discutir. E dar início a mais uma mesa-redonda entre pai e filha. Às vezes a gente briga, bate de frente. Sou ariano torto, metido a perfeccionista. Atormento. Duelo de titãs. 'Pai, chega, deixa de ser chato'. É a senha para colocar ponto final no debate. E começar a pensar na próxima rodada. Lembro-me com ternura da primeira vez em que estivemos juntos na Vila Belmiro. Santos e Santa Cruz, última rodada do Brasileirão de 2006. Ela tinha quatro anos. Viu o time do coração fazer 3 x 1. Pulou, comemorou, cantou. Quando faltavam cinco minutos para o fim do jogo, esgotada, apagou. Dormiu no meu colo. Profundamente. Não a acordei. Encostei o rostinho dela no meu ombro, transformado em travesseiro de pena de ganso. Como fazia desde que ela era bebê, urrando de cólicas e sem conseguir sossegar, comecei a cantar o hino do Santos no ouvido dela, bem baixinho, suavemente, das sociais da Vila até o carro. Uns dez minutos. Cantiga de ninar. Acomodei-a na cadeirinha. Prendi os cintos de segurança. Subi a Serra em silêncio, transbordando alegria. Sorriso do rosto. Peito estufado. Coração enternecido. Minha filha no estádio comigo, na cadeira cativa que tinha sido do meu avô. Afetos, ontem e hoje. Sempre. Como acorda cedinho - também desde pequenina - e corre para abrir a internet e pegar os jornais, é a Lui quem tradicionalmente me faz um resumo das notícias futebolísticas do dia. Adora os programas da ESPN Brasil. 'O Trajano é muito engraçado'. Não perdoa nem os escorregões ou deslizes dos comentaristas profissionais. Às vezes deixa escapar um sonoro 'nossa, quanta besteira esse cara está falando'. E o machismo nosso de cada dia teima em afirmar que futebol não é esporte para mulheres. Somos uns pobres idiotas.  

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

OBJETIVIDADE FUTEBOLÍSTICA

É um dos primeiros conceitos discutidos no curso de Jornalismo. Objetividade. Mantenha a neutralidade e a imparcialidade, busque sempre A verdade, sugerem os mais puristas, como se fosse possível a um sujeito que narra as histórias do tempo presente esvaziar-se de todas as suas percepções e registros de mundo para se isolar numa redoma de vidro, inodora, incolor e insípida, impenetrável e higienizada, para dali apenas relatar assepticamente o que vê. Mas nossos olhos não são também filtros? E como exigir que um ser humano embriagado por experiências e sensibilidades atue como uma máquina, um robozinho? 'São os idiotas da objetividade', contestaria mestre Nelson Rodrigues. Nas brechas desse discurso, aparecem professores às vezes tidos pelo mercado como rebeldes e mais sintonizados com a complexidade do mundo contemporâneo - que não cabe mais num relato gelado e puramente técnico - para sugerir ponderações, nuances, cinquenta tons de cinza entre o branco e o preto, equilíbrio, transparência e honestidade. A notícia como a melhor versão possível da realidade.
Inevitável. Sempre que preparo essa aula, questionando a neutralidade da verdade e sugerindo o equilíbrio da melhor versão, fico me imaginando repórter de campo de uma rádio, escalado para cobrir final de Copa do Mundo no Maracanã contra a Argentina. Vamos esquecer o oito de julho de 2014, por favor. Não houve Alemanha. Tomo posição atrás dos bancos de reservas. O eterno Mário Filho está lindo, colorido, abarrotado, urrando em festa de esperança. O jogo é duríssimo. Não tenho mais unhas. Numa bola perigosa do Brasil, que passou triscando o pé da trave direita hermana, o fone de ouvidos ganhou vida e saiu voando. O narrador estranhou os ruídos esquisitos. Meus lábios estão feridos. De tanto andar dois metros para lá, dois metros para cá, segurando o microfone, acabei desenhando uma trilha, linha retinha, na área da imprensa. Numa das minhas entradas para dar informação sobre substituição, os argentinos explodiram petardo no travessão do Brasil. Quase soltei um palavrão cabuloso, ao vivo. Segurei na garganta. A galera respondeu cantando ainda mais alto. Ainda bem, não era "com muito orgulho e com muito amor". O som do Maraca ensandecido seria capaz de abafar as conversas da minha família em festas de aniversários e de pulverizar os gritos de guerra dos godos, ostrogodos e visigodos, na iminência de invadirem o Império Romano.
Eu cantava junto. Baixinho. Tudo bem, reconheço, não muito. E no finalzinho da partida, quando já imaginava ver prorrogação e pênaltis ajoelhado, numa bola espirrada na área e mal rebatida pelo zagueiro hermano, Neymar entrou dividindo. De carrinho (até pensei em escrever sobre mais uma pintura do menino-gênio, sei lá, um chapéu, um voleio, dribles enfileirados... mas acho que um gol feio seria mais bonito, nesse caso). Só consegui ver a pelota cruzar a linha. Dei três cambalhotas para lá, outras três para cá, naquela trilha já traçada. Terminei com um peixinho, deslizando, braços abertos, indo parar bem perto da arquibancada, quase na grade de proteção, onde um mar de torcedores comemorava com o camisa 10 da Seleção. Deu tempo de ouvir o final do 'goooooooollllllll' narrado pelo locutor. Ainda deitado, dei os detalhes do lance, o que só eu tinha visto. Arfando. Quando o professor árbitro apitou o final da decisão, arranquei a camisa da rádio e deixei à vista a da Seleção. Corria sem rumo pelo gramado. Aparvalhado. 'É hexa, é hexa, é hexa...", berrava. Pulava com o microfone na mão, no embalo das comemorações dos jogadores, tentando entrevistá-los. O locutor pediu que me acalmasse. "Vai ter um piripaque". Minha resposta: "fulano, isso não é um tribobó da serra versus caixa prego qualquer. É final de Copa do Mundo!". Êxtase. Imaginar como seria meu comportamento se fosse um Santos campeão da Libertadores contra o Corinthians? Consigo. Voltem o filme. As mesmíssimas cenas e roteiro, só que ainda mais tensas e dramáticas, com as devidas adaptações: a camisa alvinegra praiana por baixo e o "é tetra" no final. Tirem as crianças da sala.
Quando volto à realidade mundana, dou risada e penso com meus botões - há mais mistérios entre a atuação de um repórter de campo torcedor do Santos e da Seleção em dia de final e a objetividade da sala de aula do que imagina a vã Filosofia do Jornalismo.

sábado, 7 de novembro de 2015

LULA E FHC - QUANDO UNS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS

Não tenho procuração para defender A ou B e penso que crimes de qualquer natureza ou 'tamanho' devam ser todos investigados, independentemente do cargo ou status do suspeito, respeitados todos os trâmites e procedimentos determinados pelo Estado de Direito. Mas vamos lá, um minutinho de atenção para um modesto e simples exercício de análise de discurso. Observem as duas matérias abaixo, publicadas hoje pelo 'Estadão'. Estão na mesma página. A notícia sobre o ex-presidente Lula recebe destaque, está no alto, embora as doações já fossem conhecidas. O título sugere que foi Lula, pessoa física, quem recebeu o dinheiro, e não o Instituto Lula, o que faz muita diferença. A empresa é nomeada - Odebrecht. E quem faz a afirmação tem nome também, é a Polícia Federal, estratégia discursiva que pretende garantir legitimidade à afirmação. Argumento de autoridade. Passemos agora à segunda notícia, que vem abaixo, com menos destaque, embora essa fosse, jornalisticamente, a novidade - pela primeira vez, foram identificados repasses para o Instituto FHC. Notem também que, enquanto lá 'Lula recebeu...', aqui a 'empreiteira doou...'. Faz toda a diferença. Ações atribuídas a sujeitos diferentes. Além disso, a empreiteira não tem nome, é genericamente chamada de 'empresa'. O destinatário da grana é o Instituto FHC, não o ex-presidente FHC. E quem chancela a denúncia é um 'laudo', e não mais a PF. Generalidades, de novo. Pergunto - esse tratamento narrativo absurdamente diferenciado e seletivo é casual? Mera coincidência?

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

DE ONDE VEM ESSA MALUCA PAIXÃO?

Vem desde antes de eu nascer. Dos chutes de primeira na barriga da minha mãe. Dos sonhos inocentes que já tinha com futebol enquanto era aconchegantemente protegido pela placenta e alimentado pelo cordão umbilical. Vem da primeira bola que ganhei, molequinho de tudo, ainda aprendendo a andar e a chutar. Do uniforme cinza de goleiro tão desejado, com luvas e joelheiras, que chegou naquele Natal dos meus cinco anos. Sim, fui arqueiro quando criança. Por pouquíssimo tempo. Não demorei muito para descobrir que minha bola era outra. Essa paixão tresloucada surge de modo incontido graças àquelas peladas que eu jogava sozinho no terraço estreito e comprido da chácara da minha querida São Bernardo do Campo de tantas lutas políticas, correndo atrás de uma pelota dente de leite, oval e murcha, imitando voz de locutor para narrar partidas épicas, inesquecíveis. E que golaaaçççooo!!!! Ela ficou pedindo me chuta, me chuta, ele encheu o pé! É culpa das bolas de meia, bolas de gude. Das bolinhas de tênis. De papel. Das tampinhas. Dos potinhos de iogurte. Das latinhas e garrafinhas de refrigerante. Tudo era bola. A gente chutava o que viesse pela frente. Num arroubo infantil de empolgação, bica sem medir a força, meu sapato (que não tinha cadarço) saiu voando. Só parou na vidraça da sala da diretoria na escola. Cacos espalhados. Meus pais foram chamados. Encanto que vem das caneladas e disputas heroicas com os primos Bicudinhos no quintal em ladeira e cheio de árvores ardilosas da casa de meus avós paternos em São Paulo. Daquele primeiro título paulista que comemorei, em 1978. Os primeiros Meninos da Vila. Da Copa de 78, na Argentina. Nelinho, Amaral, Batista, Zico, Roberto Dinamite, Dirceu. A batalha de Rosário contra a Argentina. A farsa da seleção peruana, que tomou de seis para colocar os hermanos na final. A ditadura sangrenta no país vizinho. Nos países vizinhos. Amor sublime e cego que explode graças à mágica Seleção de 1982, do mestre Telê Santana. Arte pura. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Jamais haverá meio-de-campo como aquele. Nunca mais. Do choro doído e inconformado imposto pelo italiano Paolo Rossi. Três gols. Brasil desclassificado. O que faço agora? Reforço a paixão ouvindo as histórias que meu avô materno narrava sobre Pelé e o único e absoluto Santos da década de 60. Orgulho que nem todos podem ter. Revela-se forte e implacável nas sístoles e diástoles aceleradas um sentimento que recorda o sangue escorrendo do joelho ralado no chão de ladrilhos vermelhos da escola. a canela roxa atingida pelo bico da chuteira do desleal adversário no torneio interclasses, a calça rasgada do uniforme (a bronca da mãe), o dedão do pé direito (sou destro!) quebrado e a distensão na coxa que escondi do técnico do time para poder disputar torneios contra outras escolas (mesmo manco), as pernas em brasa lanhadas nos campos de terra. É amor desmedido que lembra os clássicos jogos de botão no estrelão (meu Santos de acrílico era imbatível), o pênalti que bati na tabela de basquete numa final de campeonato (salão, não botão), as partidas que acompanhei com ouvido colado nos meus vários e queridos companheiros radinhos de pilha, os terceiros tempos invadindo as madrugadas, o dizer para a namorada 'espera só mais um pouquinho, está terminando o jogo' ou 'amanhã não dá, é dia de Santos', as aulas que matei em diferentes séries para ouvir ou ver amistosos da Seleção. Vem dos estádios, do cimentão das arquibancadas da Vila Belmiro, do Pacaembu, do Morumbi, do Canindé, do Parque Antártica, da rua Javari, da Comendador Souza. É tão forte a paixão tresloucada que foi capaz de sobreviver à seca de títulos da Seleção, ao Brasil do técnico Sebastião Lazaroni, aos dezoito anos de fila, das vacas magras e de times medonhos do Santos. Para explodir novamente, desavergonhadamente com os gols de Bebeto-Romário, Rivaldo-Ronaldo-Gaúcho, Giovanni, Robinho-Diego, Neymar. É paixão pelo drible. Pelo improviso. Pelo inesperado. Pela ginga. Pela malemolência. Pela malícia. Pela delícia de uma bola debaixo das canetas. Pelo chapéu. Pelo voleio. Pelo sem-pulo. Pela bicicleta. Pelo cruzamento milimetricamente feito, na cabeça do atacante. Pela meia-lua. Pelo drible da vaca. Pelo rolinho. Pela pedalada. Pelas improvisadas e impagáveis mesas-redondas com os amigos num bar, cerveja gelada e sem hora para acabar. Pela coleção de camisas. Pelas crônicas de Nelson Rodrigues. Pelas memórias de uma Copa no Brasil. É amor que me faz acompanhar os jogos da série A. Da B também. E da C, por que não? Partidas da D. Da série Z. Não existe? Inventemos já. Estaduais. Regionais. Várzea. Desafio ao Galo. Campeonato italiano. Espanhol, inglês, russo, argentino, mexicano, francês, português, holandês. Libertadores. Liga dos Campeões. Liga dos Perdedores. Liga dos Mais ou Menos. Qualquer liga. É paixão que obrigou a me virar nos 30 (ou nos 43) para acompanhar o maior número de jogos da rodada do último final de semana. Quando acaba, já começo a suar frio, síndrome de abstinência, e a pensar na do próximo final de semana. Cansa? Nunquinha. É eterna paixão imortal. Esclareci sua dúvida? Ave, futebol.